domingo, 22 de março de 2015

[1454] Continua o diálogo sobre a língua cabo-verdiana, em 6.º encontro dos dois amigos

VI Parte
 (ver partes I AQUI, II AQUI, III AQUI, IV AQUI e V AQUI)
(Este diálogo tem decorrido entre duas personagens fictícias, mas desta feita surge um convidado figurado)

Adriano Miranda Lima
Filinto:  ̶  Amigo, tivemos de interromper por uns dias o nosso diálogo por causa da arreliadora gripe que me deixou de pantanas por uns dias. Mas já aqui estou e pronto para outra. 

Em que ponto da nossa conversa nos quedámos  da última vez?  Ah, já me lembro, a questão do projecto do bilinguismo no ensino, não foi?

Elísio:  ̶  Isso mesmo, meu caro. Mas, desde  já, fique claro que, leigos que ambos somos no assunto, não temos qualquer veleidade de querer sentenciar verdades axiomáticas em áreas como a pedagogia e a linguística. Queremos apenas situar-nos na perspectiva do cidadão comum que lê, se informa, discute  e se interpela sobre os problemas candentes do país. O que já não é pouco.

Penso que não chegámos a esgotar o tema do ensino, aliás não é previsível o momento em que se possa pôr um ponto final nesta discussão, pois as dúvidas sucedem-se em cascata e há todo um encadeado de questões para as quais não é possível vislumbrar respostas objectivas e conclusivas no horizonte temporal mais próximo. Pelo menos, é a impressão que tenho. Para começar, pensei em convidar(1)  para a nossa mesa o jornalista David Leite, para que ele nos fale sobre alguns aspectos aflorados no seu artigo intitulado “ALUPEC, um alfabeto nos ku nos. E os nossos emigrantes?”  publicado  em 19 Setembro 2009, no jornal A Semana.

Assim sendo, eis uma primeira pergunta. David, qual a sua opinião sobre o ALUPEC e a real capacidade desse alfabeto para a padronização da escrita do crioulo e com isso tornar-se, alegadamente, mais fácil o ensino/aprendizagem do português e outras línguas, tal como  se propõe o governo? 

“David Leite”:  ̶  Bem, antes de mais, lembre-se que  “…. o ALUPEC  surgiu na decorrência directa do que ficou conhecido por “alfabeto do chapéu”. Aprovado, a título experimental, em Dezembro de 1988, o ALUPEC exprime um compromisso entre o modelo etimológico (pela sua legitimidade histórica) e o fonológico (mais económico, sistemático e funcional) ao reintegrar os dígrafos (dj, lh, nh, tx). O ALUPEC fundamenta-se numa ortografia fidedigna e inalterada do verbo: para cada fonema um único sinal gráfico. Contrariamente ao modelo etimológico, em que a pronúncia deriva (e varia) de uma ortografia muitas vezes híbrida, no ALUPEC a pronúncia determina, de certo modo, a escrita.”

Prosseguindo, “…. numa análise puramente técnica, o carácter funcional, utilitário e didáctico de um alfabeto fonológico como o ALUPEC simplificaria a ortografia da nossa língua. A bem dizer, pouco difere do alfabeto etimológico português, não tendo incorporado mais particularismos gráficos do que as demais línguas neo-latinas. A grande diferença reside na grafia de vocábulos como: “pur izemplu” em vez de “por exemplo”; “jerason” em vez de geração”; “prizidenti” em vez de “presidente”; “desendenti” em vez de “descendente”. Quem diz diferença diz dificuldade, não por ser a nova grafia mais complexa mas porque não estamos a ela habituados.”

Filinto:  ̶ Tendo sido criado, como pensam os seus críticos, mais para responder às exigências fonológicas do falar da ilha de Santiago, poderá, todavia, o ALUPEC adaptar-se à escrita das variedades das restantes ilhas, designadamente as do Barlavento?

“David Leite”:  ̶  Vamos lá ver. “Note-se que (em relação aos exemplos que anteriormente citei) “prizidenti” e “desendenti” pertencem à variedade da ilha de Santiago. Nas ilhas de Barlavento escrever-se-ia (em ALUPEC) “prezident”.  Quanto a “descendente”, não faço ideia, sendo o C o grande ausente do alfabetu kabuverdianu! Também não sei o que é feito do ditongo “ão” quando tivermos que dizer “em vão, sirurgião”... Em S. Vicente como noutras ilhas, o “ão” subsiste (mesmo em ALUPEC) em vocábulos como pão, calsão, vulkão, cumilão, confuzão, selesão, kartão, leitão, senão... e em nomes próprios como Adão, João, Conceição.”

Elísio:  ̶ Depreende-se então que o ALUPEC não é aquela resposta tão linearmente híbrida ou dúctil como defendem os seus mentores, assim como não é pacífica a sua aceitação no Barlavento…

“David Leite”:  ̶ Ah, pois, “face à confusão que engendra, ao fraco entusiasmo ou clara aversão que suscita nas outras ilhas, particularmente nas de Barlavento, pode dizer-se  ̶  no sentido idiomático e “geográfico” do termo  ̶ que o ALUPEC é um alfabeto... “sem norte”. Mas também, convenhamos : não é fácil pôr no papel o crioulo de S. Antão ou S. Vicente. Numa perspectiva de padronização da língua cabo-verdiana, a variante de Santiago seria a mais adequada como substrato de referência. Mais inteligível, pronúncia mais nítida, palavras mais “inteiras”, o crioulo de Santiago presta-se, mais do que qualquer outro, à escrita... além de ser falado por quase metade da população. Porém, qualquer opção por uma variante regional (com a respectiva grafia) em detrimento das outras seria uma atitude hegemónica e liberticida.”

Filinto:  ̶  Disse “falado por quase metade da população do país”. Mas julgo que a demografia não deverá ser o único factor preponderante nesta matéria, se tivermos presente que as variedades dialectais são apenas a ponta do iceberg de diferentes sensibilidades socioculturais. Mudar a linguagem não mexe necessariamente com o substrato cultural onde ela mergulha, pelo que o efeito pode ser tão superficial como o da brisa que faz ondular a erva do campo sem no entanto abalar as suas raízes. Pressinto que tudo o que seja interferir com essa realidade  poderá ser contraproducente. Seria como obrigar Maomé a rezar o terço, não é verdade? Passe o exagero dessa figura sacrílega…

“David Leite”:  ̶ “No entanto, vozes e penas em Santiago não têm resistido a essa tentação hegemónica. Não por ser essa ilha o berço e o bastião do ALUPEC/alfabetu kabuverdianu, até porque os alupecianos estão no seu direito e em boa hora tomam posição. O que incomoda é essa ortodoxia pouco permeável a opiniões contrárias. Opiniões de resto raramente expressas, como raras são as pessoas de outras ilhas que até agora ousaram aventurar-se pelos meandros do ALUPEC. Como não reflectir neste vaticínio de um acérrimo defensor do ALUPEC segundo o qual seremos recordados pelas gerações vindouras como “un kambada di palhasus (...) pabia nu sa ta uza lingua strangeru pa nu komunika nos ku nos”.

Elísio:  ̶  Vê-se de onde vem o insulto. Os defensores do ALUPEC e da padronização do crioulo não aceitam o contraditório, e todos os que se lhes opõem são alvos dos mais diversos apodos soezes, inclusivamente tratados como “apologistas do colonialismo” e “inimigos do povo cabo-verdiano”, e sabe-se lá que mais impropérios. Eu até penso que a pessoa que oficiosamente tem dado a cara em defesa deste projecto, insultando quem dele discorda, está a prestar um mau serviço aos seus autores. Tantos anticorpos tem ele criado, que admira como a “Comissão Nacional para as Línguas” ainda não lhe disse para meter a viola no saco.

Filinto:  ̶  Pois é, tens razão. Estou convencido de que tivesse sido outra a atitude oficial perante esta questão linguística, não se teriam criado tantas clivagens e tantos anticorpos na sociedade cabo-verdiana. Não deve haver um único cabo-verdiano que se oponha a uma acção dignificadora do crioulo e de tudo o que a “língua materna” significa para as nossas vivências sociais e o nosso imaginário artístico. O que o cabo-verdiano comum não percebe e muito menos aceita é este assunto ser encarado como um tratado de teologia ou uma profissão de fé. Não pode servir para alguns investirem na sua futura ressurreição, neste ou noutro mundo.

Elísio:  ̶  Sim, Filinto, porque tudo o que raia o radicalismo ideológico pode  exaltar os fiéis e os prosélitos, mas dificilmente semeia a concórdia e a harmonia na comunidade. 

“David Leite”:  ̶  Sim, “salvo o devido respeito por opinião contrária, estimo que o ALUPEC reflecte uma atitude isolacionista, um “nos ku nos” em flagrante contradição com a abertura propugnada pelo nosso País, sendo esta uma necessidade vital mais do que uma simples opção político-diplomática dos tempos hodiernos. Os nossos filhos clamam por professores competentes, por um ensino pragmático que os habilite a melhor aprender o português, o inglês, o francês, o espanhol, o italiano... Em qualquer dessas línguas, “cultura” escreve-se com C e não com K!”

Filinto:  ̶  Creio que já ficou claro que o cerne do problema residirá na aprendizagem simultânea e dual do crioulo e do português, uma aposta que se quer pôr em prática no mais curto prazo, sem dar tempo ao tempo, isto é, sem se debruçar atentamente, e com a melhor metodologia científica, sobre os resultados das poucas experiências que parece terem decorrido ou estão a decorrer. Com efeito, parece que em duas escolas básicas de Santiago se iniciou no ano passado uma experiência-piloto com esse objectivo, baseada em algo similar ocorrido numa escola portuguesa frequentada por um grande número de alunos de origem cabo-verdiana. A intenção é generalizar esse projecto às escolas do ensino básico, na crença de que é a solução correcta para a valorização da “língua materna” e a via conducente à aprendizagem mais eficaz do português e outras línguas.

Elísio:  ̶  Mas não antevejo esse projecto com pernas para andar se a pressa e a precipitação impedirem uma ponderada e correcta validação das suas etapas. É que se afigura deveras problemático confrontar simultaneamente os jovens alunos com dois alfabetos distintos  para a  aprendizagem, respectivamente, das duas línguas co-oficiais, isto enquanto o português se mantiver como língua creditada no país. Se com o ALUPEC será mais fácil à criança assimilar que o grafemas “Z” e “S” produzem sempre o mesmo som, logo com vantagens na simplificação da escrita do crioulo, é de perguntar como será quando tiverem de utilizar o alfabeto latino e seguirem outra regra para escreverem em língua portuguesa. A confusão será enorme, tanto mais que a maior parte do vocabulário crioulo provém da língua portuguesa, daí ser irrecusável que haverá dificuldade em distinguir entre o que está verdadeiramente de um e do outro da linha que separa as duas línguas. Como já foi dito, gerar-se-á uma mini Torre de Babel entre o crioulo e o português. 

Mas o que diz o David em relação à diáspora, onde a generalidade da nossa gente fala o crioulo, mas sem que se preveja viável ensinar aí o crioulo mediante o ALUPEC?

“David Leite”:  ̶  Olhe, só posso responder com outras perguntas. De facto, “quem se lembrou dos nossos emigrantes, aqueles que levaram o crioulo e a morna para a terra-longe ? Em que escola irão os nossos emigrantes e os seus filhos (a estudar na Itália, em França, na Holanda, na América ou no Senegal) aprender o ALUPEC?…” Veja-se que “…os nossos emigrantes levam com eles o crioulo da sua terra, que aprenderam em casa. Lá fora tiveram que aprender o holandês, inglês, francês ou italiano para poderem integrar-se no país que os acolhe. Essa aprendizagem é-lhes facilitada pelo facto de o alfabeto português, que levaram da escola, ser o mesmo nos demais países lusófonos, assim como na Holanda, Estados Unidos, França, Itália e outros países que acolhem a nossa emigração. Imaginem as sérias dificuldades que não terá na escola uma criança ainda nas primeiras letras, que só domine o ALUPEC, cujos pais decidam ir viver para o Senegal ou a Itália! E não falemos naquelas que voltam da emigração para virem residir na sua terra... Mas se virmos bem, não são apenas os emigrantes que ficarão do outro lado dessa ponte que nos liga à nossa diáspora e que um punhado de fanáticos isolacionistas quer deitar abaixo. Os defensores mais ferrenhos do ALUPEC vêem como “estrangeiros” todos aqueles cabo-verdianos que recusam pensar como eles. Sendo o português, do ponto de vista dos alupecianos, uma “língua estrangeira”, é “estrangeiro” todo aquele que ousa falar essa língua…”

Filinto:  ̶ Bem, amigos, sugiro-vos que fiquemos hoje por aqui. Continuaremos esta conversa noutro dia a combinar, estando desde já convidado o David Leite, caso nos volte a honrar com a sua presença.

(1) O jornalista e funcionário diplomático David Leite é, figurativamente, um convidado especial neste debate, com base no seu artigo intitulado “ALUPEC, um alfabeto nos ku nos. E os nossos emigrantes?”, publicado  em 19 Setembro 2009, no jornal A Semana, assim como numa intervenção por si produzida sobre o assunto no espaço dos Comentários alusivos ao artigo.

Tomar, 22 de Março de 2015
Adriano Miranda Lima

2 comentários:

  1. Sim senhor Adriano mais um excelente artigo sobre forma de um diálogo ficcionado de grande nível intelectual em que desta vez introduz uma pessoa real que deu a cara valentemente para denunciar o fundamentalismo Alupekiano, David Leite: e não é qualquer um

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  2. Mais uma obra do cabo-verdianissimo Adriano que foi buscar, para o "diàlogo a três" (a) agora sobre o famigerado "alfabeto letal unificado para envenenar cristão", David Leite que de certeza é descendente de uma sô familia Leite que chegou a Cabo Verde (b). David vem de hà muito defendendo o que parece ser a morte dos oito falares do nosso Pais, o que realmente nunca sucederà de certeza na medida em que outras tentativas se fizeram em vão.
    Força, Adriano !!!
    Braça rije
    V/

    a) - Alusão a um anùncio que dizia "O Dueto era constituido de três mùsicos"
    b) - So o Prof. José Manuel Nobre de Oliveira pode afirmar isso mas, enquanto
    não editar o seu livro, continuo a valer-me do que ouvi da minha Familia que
    é descendente dos Leite que residiram viveram primeirmente em Sto. Antão.

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