Para comemorar, e por ser coisa ainda actual, aqui fica um dos nossos cerca de 60 artigos publicados no defunto e agora renascido jornal.
13 Jan, 2006 06:35h
A coluna de Joaquim Saial
CABO VERDE DI MEU
DE EDEN PARK A QUÊ?
O Luíz Silva, o Adriano Lima, o Zizim Figuera, o
Djô Martins, cada um a seu modo, já deram valiosíssimo, certeiro e
atempado contributo à causa da manutenção deste templo mindelense da
Cultura. Ponto final, então? Parece-me que de modo nenhum. Contudo, é
necessário não ter ilusões. Nos tempos que correm, de vídeo e DVD, um
cinema com aquelas características, naquelas condições, se não levar
uma grande volta, está condenado à morte lenta. E o giro é possível,
mantendo-se o espírito da coisa, mantendo-se a magia, conservando-se a
matriz primeira, de sítio cultural. Neste ponto, parece-me que o
inteligente depoimento de Adriano Lima oferece grandes possibilidades
de sucesso. E dou aos leitores um exemplo semelhante em que participei,
ainda que a nível modesto.
Como alguns leitores sabem, apesar de
transportar uma forte costela mental mindelense, sou natural de Vila
Viçosa, Alto Alentejo, Portugal. E nesta minha terra, um grupo de
figuras locais construiu nos meados do século XX um Cine-Teatro
baptizado com o nome da poetisa local Florbela Espanca. Edifício
grande, com vasta capacidade de público, alguns lugares cativos, como
era usual, grande luxo de ferragens e de mármores, pedra abundante nas
imediações da vila, e máquina de primeira qualidade para a projecção
das fitas.
Tudo correu bem, até ao advento do vídeo.
Depois, foi o descalabro. Algures no início dos anos 80 vi ali o meu
último filme, por acaso português, da autoria de Monique Rutler. Era
Inverno, o frio mais que muito e eu tiritava. Ainda por cima, não
percebi metade do que os actores diziam, apesar de falarem na minha
língua. A dado passo, a fita partiu-se. Daí a pouco, partiu-se de novo.
E à terceira, quando ela começou a arder, com projecção do incêndio no
ecrã, jurei a mim mesmo que nunca mais ali poria os pés enquanto não
houvesse alterações ao estado de coisas que aqui descrevo. E assim foi.
Os anos foram passando e o Cine-Teatro Florbela
Espanca a definhar, num marasmo de cortar o coração, degradando-se e
aviltando os seus pergaminhos. Até que a Câmara Municipal de Vila
Viçosa, em boa hora, resolveu adquiri-lo aos antigos proprietários e
dar a tal volta de que falei atrás. Abriu-se concurso público, a fim de
remodelar o interior do edifício, com novas valências, embora mantendo
as anteriores de teatro e cinema. E o projecto surgiu, com autoria dos
arquitectos da terra Manuel Lapão e José Carlos Ramalho e uma
colaboração minha na área da memória cultural do teatro e do cinema em
Vila Viçosa. A grande sala manteve mais ou menos a mesma volumetria,
dando embora possibilidade de divisão em duas, uma maior, outra mais
pequena, do tipo cinema de bolso, para realização de palestras, por
exemplo. Uma zona lateral foi dedicada a galeria de arte, que tem
mantido programa quase contínuo de exposições nos últimos quinze anos.
E implantou-se um moderno sistema de ar condicionado.
Pelo menos duas vezes por semana, há sessões de
cinema, com filmes de estreia, o que faz com que o público, que de há
muito abandonara o Cine-Teatro, tenha vindo paulatinamente a regressar
e a fixar-se. E grande parte das cerimónias municipais já ali se
realiza, a par do uso público mais rotineiro, de cinema, teatro e
espectáculos musicais. Ou seja, a casa salvou-se.
Em Vila Viçosa, não se recorreu à inclusão de
lojas ou outros equipamentos comerciais no Cine-Teatro. Mesmo assim,
não consta que a Câmara Municipal esteja a ter prejuízo com a
administração deste espaço. No Mindelo, porém, a situação será outra. E
por isso a ideia de Adriano Lima, deve ser estudada por quem de
direito. Para além de que lojas e algum bar ou restaurante darão mais
vida à Praça Nova durante a manhã e a tarde, para não falar em algumas
noites da semana em que está deserta. Afinal, só há um sábado e um
domingo por semana…
Pergunto eu, em título: “De Eden Park a quê?”.
Parece-me que só há três respostas prováveis: a primeira, “de Eden Park
a condomínio privado”, deve estar para sempre longe dos nossos
horizontes de gente civilizada; a segunda, “de Eden Park a ruínas”,
pelo mesmo motivo, também; a terceira, “de Eden Park a Eden Park”,
parece-me a mais aceitável e única permissível, com as necessárias
alterações que os tempos modernos exigem. O progresso é bom, não
sejamos complexados, e é sabido que há coisas que não podem cristalizar
no tempo. Mas com calma, mantendo-se as memórias, as finalidades, não
destruindo mas adaptando. Um Eden Park jovem pode conviver
perfeitamente com a ideia de lucro. Basta utilizar os miolos, basta não
ser empedernido, basta ter espírito mindelense, de generosidade.
Um dos últimos acontecimentos que presenciei no
Eden Park foi o que teve como protagonista o Coro dos Antigos
Orfeonistas da Universidade de Coimbra que ali cantaram e encantaram na
noite de 26 de Julho de 1999 (e não de 1998), como por lapso se indica
no site do próprio coro. Foi a Dr.ª Ana Cordeiro, do Centro Cultural
Português, quem me ofereceu o bilhete para o espectáculo, do qual o pai
era um dos componentes. Lembro-me de que fui acompanhado pela minha
amiga, professora D. Zinha Lima. A sala estava a rebentar pelas
costuras. O coro arrancou, o público num silêncio impressionante,
apenas interrompido por trovoadas de aplausos de cada vez que as peças
terminavam. Até que se aconteceu uma surpresa: o Ildo Lobo surgiu no
palco do Eden Park, para acompanhar o coro. “Tchapéu di Padja” e
“Sôdad” foram duas das canções em que a hoje saudosa voz rouca do homem
dos Tubarões acompanhou a mais doce dos doutores de Coimbra.
Após uma primeira parte de canções, seguiu-se
outra de tradicional fado coimbrão. No fim do espectáculo, como é
hábito, um dos componentes do coro chamou os elementos do público que
tivessem sido antigos alunos da Universidade de Coimbra para, em
conjunto com os orfeonistas, cantar a canção da despedida. Logo, um
grupo de umas duas dezenas de pessoas se dirigiu ao palco. Entre elas,
encontrava-se a Dr.ª Isaura Gomes…
Por favor, não me rasguem aquele cinema, como o
porteiro rasgava o bilhete quando eu ali entrava; ou como me rasgaram o
Café Royal; ou como me rasgaram o seu companheiro de infortúnio Park
Miramar; ou como me rasgaram a Central Eléctrica, símbolo ímpar de
arqueologia industrial; ou como me rasgaram a Matiota; ou… Enfim, é
preciso ter fé nos homens e mulheres de boa-vontade. Acho que o período
de sete palavras (número de sorte) com que rematei o penúltimo
parágrafo deste CABO VERDE DI MEU diz tudo das minhas esperanças (e das
do povo de São Vicente) sobre um desfecho feliz para o “affaire” Eden
Park.
Mais palavras para quê? É um cinema mindelense…
De onde se prova que os BONS EXEMPLOS só o são para os possuidores de alguma honestidade mental e orgulho nas coisas das suas terras e da sua História...Coisa rara!
ResponderEliminarBraça esperançoso,
Zito
Artigo comovente actual um texto que os decisores e os arquitectos deviam ler. ""Por favor, não me rasguem aquele cinema, como o porteiro rasgava o bilhete quando eu ali entrava; ou como me rasgaram o Café Royal; ou como me rasgaram o seu companheiro de infortúnio Park Miramar; ou como me rasgaram a Central Eléctrica, símbolo ímpar de arqueologia industrial; ou como me rasgaram a Matiota.""
ResponderEliminarÉ para dizer que isto tudo nos enche de grande tristeza. O sentimento de impotência em relação a esses assuntos é total e exasperante
Ficam avisados: Alguém que toque no fio de cabelo do Eden Park e verão saiar do chão todos os mindelenses vivos e mortos (como se diz em crioulo de Soncente 'ques que são') reclamar um pedaço desta pedra. Portanto que guardem todo o grãozinho de areia!!
ResponderEliminarFicam avisados: Não será construido na Praia, EdenParK nenum com a areia e as pedras do nosso EdenPark !!!
ResponderEliminarO exemplo que o Djack aqui nos relata não foi único em Portugal. Em Tomar aconteceu exactamente o mesmo com o Cine Teatro de Tomar. Também não incorporou outras valências que não fossem as do cinema, do teatro e de espectáculos musicais. E também não consta que o cinema de Tomar esteja a ser um encargo prejudicial para a câmara municipal local.
ResponderEliminarAcontece que o caso do Eden Park até suplanta em importância o dos cinemas das cidades portuguesas. É que o Eden Park é um património que excede o âmbito de uma ilha, de um concelho, pois projecta-se no espaço nacional cabo-verdiano. É pena que a Câmara Municipal de S. Vicente não tenha movido uma palha para salvar esse cinema histórico.
Este belo texto do Djack em boa hora foi aqui reeditado.