O PRAIA DE BOTE conheceu muito bem o "Senhor das Areias"... por fora, fundeado na baía do Porto Grande - que não por dentro, ao contrário deste miúdo felizardo (e dorminhoco), o pequeno Adriano. Era de facto um navio pesado e lento, mas belo na sua imponência poderosa, um dos mais característicos que fizeram a cabotagem das ilhas e em carreiras mais longas como a Guiné e o Senegal. Como se pode ler no blogue "Navios e Navegadores", o "Senhor das Areias" chamou-se antes "Villalonga". Com 120 toneladas, fora construído em 1920 nos estaleiros de Noya-Obrés na Galiza. Vendido a João Alves Cerqueira, passou depois para as mãos de José Amador que o matriculou na praça de Luanda. Só tomou o seu derradeiro nome em Cabo Verde, onde acabou por ser abatido em 1968.
"Senhor das Areias", atracado ao cais de Bissau. Foto Crocodilo, reproduzida com a devida vénia (clique na imagem) |
“SENHOR DAS AREIAS” E A MEMÓRIA DA MINHA PRIMEIRA VIAGEM MARÍTIMA
Adriano Miranda Lima |
Em Maio de 1950, aos meus 6 anos de idade, a minha avó materna, nascida em S. Antão, convenceu os meus pais a levar-me consigo para uma temporada que ela desejava passar na ilha natal, para matar as saudades dos tempos de menina e moça nela vividos. Essas férias iriam durar até Setembro seguinte, altura estabelecida para o meu regresso, já que eu tinha compromissos com a preparação pré-escolar.
Essa viagem, a primeira da minha vida, ficou-me imperecível na memória e seria o início de uma cumplicidade telúrica com uma ilha que volta e meia me solta asas para devaneios poéticos. Lembro-me como se fosse hoje, decorridas já 6 décadas, de ínfimos pormenores relacionados com essa viagem e da excitação que ela injectou no meu coração infantil.
Saímos de casa por volta das vinte e uma horas, em direcção ao cais de embarque (antigo Cais Novo), acompanhados dos meus pais. Entrámos num bote dos muitos que freneticamente disputavam passageiros no cais, e lá nos dirigimos de remada em remada, sacolejando as águas nocturnas da baía, em direcção ao lugre “Senhor das Areias”, o navio da nossa viagem. O mar estava calmíssimo, como azeite em repouso. À medida que a distância se consumia, sob o impulso do músculo dos remadores, o “Senhor das Areias” ia ficando cada vez mais nítido de pormenores, até que o bote se lhe acostou e o seu imenso casco em plano destacado derrogou todas as minhas referências visuais precedentes. Içado para o interior do navio, fiquei espantado com a grandeza do seu deck e a altura da mastreação e confusão do cordame, mais ainda quando entrei para o subterrâneo dos camarotes. Eu não tinha nem podia ter noção dessa realidade orgânica intrínseca aos navios quando os via ancorados na baía ou a navegar ao largo, porque as noções de escala e perspectiva espacial não eram ainda do meu domínio.
Descemos a escada que conduzia aos camarotes e nunca me esqueci do reparo de um tripulante: «- Não ponham a mão no corrimão que ele está envernizado de fresco.» Ocupámos os nossos beliches, e, como já seria hora para isso, foi entrar na cama e cair logo nos braços de Morfeu, embora a minha avó talvez se não tenha dispensado das suas habituais rezas antes de dormir, dessa vez com justa razão para pedir protecção “aos que andam em cima da água do mar”. E assim foi que nem dei pela largada do navio, apenas ouvindo, sempre que a espaços acordava, sons de música oriundos de um aparelho de rádio algures situado. Decerto que àquela hora não seria emissão das rádios cabo-verdianas. A minha avó se queixaria mais tarde do aparelho de rádio que a não deixou dormir.
O “Senhor das Areias” era um navio penosamente lento, por razões que mais adiante explicarei com base em informação recentemente recebida. Por esse seu andamento de caracol é que só na manhã seguinte fundeámos frente a Paul, altura em que fomos acordados para ir apanhar um ar puro em cima. Mas admito que tenhamos escalado antes disso o porto de Janela, a avaliar pela duração da viagem.
Ao chegarmos ao piso superior do navio, pude ver as casinhas de Paul recortando-se ao longe, no sopé de uma imponente montanha, coqueiros bordejando a ourela do mar, onde as ondas se espraiavam em espuma branca. Botes recebiam carga transportada no navio, subindo e descendo ao longo do costado, depois remando agilmente de regresso ao cais da localidade. Tivemos de recolher de novo ao camarote, antes da retoma da viagem com destino a Ponta do Sol, e é bem possível que eu tenha voltado a adormecer porque não guardo qualquer memória do que aconteceu a seguir até aportarmos àquela vila.
Penso que seriam mais ou menos doze horas quando, de novo no deck, avistei o casario esbranquiçado de Ponta de Sol. Do que se seguiu até chegarmos à vila de Ribeira Grande, nosso destino, poucos pormenores guardo a não ser a estrada sinuosa e alcandorada ao longo da encosta da montanha, por onde seguimos, com as ondas lá em baixo a desfazerem-se em ruído abafado. Não me lembro se ingerimos algum alimento, desde o embarque em S. Vicente, sendo que o navio não fornecia refeições aos passageiros naquelas curtas viagens, tanto quanto hoje penso. E se a minha avó levou alguma merenda também não me recordo, mas pode ter acontecido.
O meu deslumbramento infantil com a ilha de Santo Antão é matéria para outra crónica, para não alongar demasiado este texto. Os meses que lá passei tinham de me deixar marcas indeléveis na memória, porque não é em vão que um menino vê alteradas as suas rotinas, mormente quando tudo corre de feição, na paz e no sossego da relação familiar entre um neto e uma avó.
Chegou o dia em que tive de regressar a S. Vicente. A minha avó ia permanecer mais algum tempo, pelo que fui entregue aos cuidados de um seu afilhado que também viajava para S. Vicente. De novo, o “Senhor das Areias” era o senhor do meu regresso à casa paterna. Partimos para Ponta de Sol e à chegada lá deparei com o navio fundeado no porto da vila, altaneiro como sempre, fazendo jus à sua imponência. A avó acompanhou-nos, com uma “carregadeira” atrás transportando à cabeça um enorme cesto de cana entretecida e com a boca tapada com um pano de serapilheira cosido no bordo periférico. No cesto iam aquelas coisinhas que se produzem nas “meradas” (*) das ribeiras da Ilha das Montanhas, muito apreciadas na ilha irmã, e, por isso mesmo, a avó recomendou-me para dizer ao meu pai, quando me fosse buscar a bordo, que ia uma encomenda. Desconheço por que não encarregara directamente o afilhado dessa incumbência, mas o certo é eu ter recebido o encargo do recado.
Ao despedir-me da avó, antes de ser transferido para o bote, desfiz-me em pranto convulsivo, ela própria contagiando-se visivelmente com a emoção do neto. Sentia uma especial ligação espiritual a essa avó, que ainda hoje perdura intacta naquele limbo misterioso em que radica a essência do ser e suas múltiplas fulgurações. De facto, não era coisa pouca para um coração de menino iludir a nostalgia da despedida, que no caso era suscitada simultaneamente pela avó e pela ilha. Ao longo da minha vida, as duas imagens se têm confundido, ambas exalando fecunda maternidade, numa visão existencial em que vejo a alma humana como o reverso ontológico da terra em que labuta e lavra o seu destino.
Mal entrámos no navio, o afilhado levou-me a um bote salva-vidas colocado no deck do “Senhor das Areias” e disse-me para me deitar no seu fundo raso e não sair de lá durante a viagem. Está mais que claro que nessa feita não houve o aconchego de camarote. O navio partiu por volta das treze horas e haveria de largar ferro no Porto Grande de S. Vicente cerca das vinte e uma seguintes, tanto quanto me lembro. Como mergulhei logo no sono, desconheço se houve paragem pelo caminho, nos portos de Paul e Janela, mas admito que não, a avaliar pela duração do trajecto e se a comparamos com a da viagem anterior feita em sentido inverso. É irrecusável registar que essas minhas duas viagens a bordo do “Senhor das Areias” decorreram sob a égide de boas sonecas.
Só acordei no fundo do salva-vidas com a presença do meu pai que, ainda me lembro, pareceu indignado por eu ter viajado em tais condições, interpelando o tal afilhado da minha avó, que lhe retorquiu ser esse o lugar mais seguro. Mas tive o cuidado de logo o advertir que ia uma encomenda a bordo, pressuroso como estava em cumprir a recomendação da avó, ao que ele se riu com gosto. E lá fomos a pé até casa, com a sacramental “carregadeira” atrás levando a encomenda à cabeça. Chegados a casa, e acolhido emotivamente nos braços da minha mãe, voltei a cair no pranto de saudade quando ela me perguntou se a avó tinha ficado bem. Como, muito emocionado, não me dominava, ela, para me distrair, levou-me ao nosso quintal ao fundo qual havia uma recente aquisição: uns patos, novos inquilinos de suposto galinheiro. Outra lembrança do meu regresso é o riso gozado dos meus pais quando viram o fato que a minha avó mandara confeccionar numa costureira local para a minha viagem de regresso. Eram umas calças e casaco de cor creme, mas creio que de um corte muito desactualizado, talvez de modelo dos anos 20 ou 30, e de tão desadequado que nunca mais mo vestiram.
E assim se encerra esta memória da minha primeira viagem marítima. Nunca mais voltaria a viajar no “Senhor das Areias”.
Resta concluir esta crónica de viagem, inserindo a seguinte informação que me foi prestada pelo meu amigo Vladimir Koenig, professor universitário aposentado no Brasil, e que teve a gentileza de me enviar também, a meu pedido, uma fotografia do “Senhor das Areias”:
“O Areias era lento e aproveitava muito pouco a força do vento porque na última viagem que fez regressando da Terra Nova (era lugre bacalhoeiro) para Portugal, o casco foi posteriormente modificado aumentando o calado (altura da linha de água para o convés) para poder transportar passageiros entre as ilhas e transformar as câmaras frigoríficas em porões para transporte de carga. O motor era um enorme e ultrapassado motor auxiliar que servia apenas para manter o rumo em caso de o vento provocar algum desvio e evitar que o navio bolinasse. Por isso é que o máximo da velocidade do Areias era de 3 milhas / hora.”
(*) Merada – Nome que se dava a horta ou terra cultivada, em Santo Antão. Não sei se ainda se usa.
Tomar, 27 de Outubro de 2011
"Senhor das Areias" |
Alguns dados: O Lugre bacalhoeiro "Senhora das Areias" foi construído em 1920, em Noya-Obrás, Galiza, tendo pertencido a João Alves Cerqueira que o mandou motorizar e vendeu a José Amador que o matriculou em Luanda. Aparece, depois, em Cabo Verde, sob o nome de "Senhor das Areias" matriculado em S.Vicente, tendo sido desmantelado em 1968. Voltarei outro dia com as minhas memórias de uma viagem inolvidável S,Vicente, Sal, S.Nicolau, Brava...Um especráculo!
ResponderEliminarMais uma vez me esqueci da assinatura:
ResponderEliminarZito Azevedo...
Caro Zito, agradeço os dados, mas eles já estavam lá em cima, na abertura do artigo, no lead. Não reparou, na primeira leitura.
ResponderEliminarFico então à espera do relato dessa viagem que me parece um belo petisco. Mande para o meu endereço electrónico. Eu me encarregarei de editar o material, colocando imagens, etc. De preferência, artigos não muito grandes, pelo que podemos fazer vários capítulos. Passaria então a ser mais um colaborador do PRAIA DE BOTE, auferindo o salário correspondente: aquel braça pertóde de mnine de Soncente.
Lá meti "a pata na poça"...As minhas desculpas pela desatenção e pela falta de indicação do local da colheita dos dados...Voltarei!
ResponderEliminarZito Azevedo
Não é preciso pedir desculpas. Quando calha, eu faço o mesmo.
ResponderEliminarPeça desculpas é se não mandar o petisco prometido. Se não cumprir a promessa, farei tudo para que nhô Djunga o meta no sótão do Liceu, país de gongons e outros demónios horrorosos.
Braça
Djack
Este texto do amigo Adriano que, como se sabe é mais novo que eu de uma década pelo menos, leva-me aos tempos de menino em que ia ao cais ou à Matiota ver os barcos e ouvir os marinheiros falar com entusiasmo das suas viagens entre as ilhas que, embora curtas, tinham o sabor de odisseias pelos oceanos deste mundo.
ResponderEliminarComo autêntico ilhéu, nascido a um quilometro apenas do mar, vivia tudo como se tivesse sido um deles. Mas este marinheiro era (e é?) só de agua doce porque devia ser o único do seu grupo que não sabia (não sabe?) nadar. Ê verdade. nadar era um dos interditos e, quando fazia comparações (como fazem todos os meninos ao Pai) vinha logo a resposta que só mais tarde apercebi-me que tinha sua lógica: "Não te deixo aprender a nadar porque podes ir sozinho e afogar-te!" Como nunca fui um menino rebelde aceitava como aceitei muitas outras coisas que podia ter feito às escondidas.
Voltemos ao "Senhor das Areias", que nunca ganhava nas "contendas" com os outros barquinhos. Conhecido "Pé de chumbo" porque andava como tartaruga, ganhou mais outra antipatia porque - segundo contavam e nunca procurei saber da veracidade - quem realmente mandava a bordo era o telegrafista por ser representante do armador.
Mas, gente de nossa terra conta tanta coisa...
Essa é única, o telegrafista ser comandante e o comandante imediato. Quase como os comissários políticos nos tempos soviéticos que a bordo mandavam nos comandantes.
ResponderEliminarDesencostei-me do "Na Esquina" e vim dar fé no que passava na ourela de mar e na "Praia de Bote". E não é que os meus amigos tinham feito o mesmo e estavam todos cá reunidos?! de certeza que já me tinham marcado falta. Sorê! Essa da minha Avó me ter proibido de vir para essas bandas me deixou muito traumatizado, que até tenho medo de meter os pés na água, rsss!!!Pronto, prometo dar umas escapadelas de vem em quando e vir cá pois o ar por essas bandas é bom e de muitas novidades e há gente "mais grande" que pode tomar conta de mim. Rsss!!! Abraça a todos.
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