domingo, 30 de outubro de 2011

[0139] Ainda o "Senhor das Areias". Mais um texto sobre este veleiro, da autoria de Zito Azevedo, nosso novo colaborador. Ver post 0138, de Adriano Miranda Lima

A   PEREGRINAÇÃO

Zito Azevedo
Chegado a S. Vicente em 1943 – tinha eu nove anos – a minha primeira tentação, depois de saber que me encontrava numa de dez ilhas que formavam um arquipélago de Cabo Verde, foi conhecê-las a todas… Conheci algumas nos anos 50 mas tive que esperar até 1969 para visitar as mesmas e as que faltavam. Por estranho que possa parecer, no entanto, nunca fui a Sta.Luzia!

Creio que, naquele ano as minhas notas não devem ter agradado a meu pai que, logo em Junho, me foi avisando que me tinha arranjado um emprego para as férias, no escritório do Sr. Mário Nascimento que, imagine-se, era o agente do “Senhor das Areias”… Não fiquei muito aborrecido, até porque o Senhor Mário tinha uma filha bem gira que, por acaso, nunca me ligou nenhuma. E lá fui, sentar-me a uma mesa minúscula, a passar bilhetes de passagem e documentos der carga para aquele que era o “paquete” dos navios que circulavam pelas ilhas no transporte de pessoas e bens, a todos levando a palma com a excepção da velocidade que raramente ultrapassada as três milhas horárias. Mas era um navio quase imponente,  ex-lugre bacalhoeiro, de três mastros e bojo alto, sempre imaculadamente limpo e escovado e com uma tripulação que até incluía um telegrafista residente, o Sr. José Pedro Afonso, que era meu amigo e haveria, anos mais tarde, de ser meu padrinho de casamento.

"Senhor das Areias"
Acontece que devo ter desempenhado muito bem as minhas funções, apesar da tenra idade, pois quando me despedi para regressar às aulas no Liceu Gil Eanes, foi-me oferecida uma viagem no “Senhor das Areias” à minha escolha. Como, na altura, lá namorava a que haveria de vir a ser minha mulher, resolvi ir até à Brava, sua terra natal, onde ela ainda estava de férias. Faltava mais de um mês para as aulas. Só que… enfim,  naquela viagem à Brava, o “Senhor das Areias” iria escalar S. Nicolau e Sal, o que alongava a viagem de forma perigosa. Mas como quem ama não pensa, embarquei nessa peregrinação, numa noite escaldante em que a expectativa me não deixou pregar olho apesar do colchão ser óptimo e o lençol cheirar a lavado… O toque da sineta para o pequeno-almoço apanhou-me debruçado na amurada, tentando apanhar peixes-voadores. Fiquei pasmado ao sentar-me à mesa do capitão, ao lado do meu amigo telegrafista e restantes oficiais de bordo, para um repasto de cachupa refogada com salsichas e ovos estrelados, leite com café, bolachas, manteiga, enfim, um autêntico banquete, isto se se tiver em linha de conta que, até aquele momento, o melhor que eu tinha comido a bordo de um palhabote, fora uma cachupa de olho-largo, em pé, encostado à casa-das-máquinas com toda a força para não ser atirado  borda fora…

A Ribeira Brava era uma vilazinha simpática, silenciosa, pintada de fresco, onde tive a felicidade de ir encontrar a Mary Melo, uma das mais belas pequenas de S.Vicente, que aí estava de férias e a quem tirei uma foto que ainda hoje conservo. Chegados à Pedra-de-Lume preferi aceitar uma boleia para Sta. Maria, tendo passado a noite no Hotel Atlântico que os italianos ali tinham construído e que tinha sempre uma tripulação da Alitália para rendição nos voos para e da África do Sul. Foi muito educativo, vê-los cozinhar a sua própria “pasta” e o molho de tomate em placas eléctricas sobre a mesa que ocupavam e, mais tarde, noite dentro, testemunhar as entradas e saídas, de uns quartos para os outros, das aeromoças italianas, em bicos de pés descalços, envoltas em lençóis brancos esvoaçando ao compasso da brisa nocturna, fantasmas brancos que sugeriam mais promessas do que temores. Um espectáculo…

Mal dormido, com a mente repleta de muitas perguntas e poucas respostas, lá reembarquei no “Senhor das Areias”, onde, recorde-se, se continuava a comer muito bem e a dormir melhor, para uma longuíssima estirada entre o Sal e a Brava. Tão longa e tão lenta que muitas vezes pensei se, para lá daquela onda não iríamos vislumbrar o Brasil…

A chegada à Furna foi, por isso, uma espécie de regresso ao futuro e um bálsamo para o meu equilíbrio emocional, num reencontro com o mundo, com as pessoas, com o ruído das coisas… A bordo de um navio relativamente estável mas extremamente lento e silencioso em que a única coisa que se ouve é o marulhar da ondulação baixa, vendo horas sobre horas, as mesmas caras, os mesmos gestos, a mesma rotina, uma pessoa acaba por se sentir só no mundo e nem olhar à volta resolve porque de norte para sul e de oeste para leste a miragem é a mesma: NADA!

(clique na imagem)

Quando, nessa tarde, cheguei à oficina de Nhô Manelinho, sapateiro, fui acolhido com um largo sorriso e um gesto cúmplice:  foi abrir as portadas da janela que dava para a casa da minha amada e através da qual, depois de revê-la, voltei a subir aos céus pouco tempo depois de ter descido à terra!

Não voltei a viajar no “Senhor das Areias” mas, à fé de quem sou vos digo que, de bom grado, repetiria a minha peregrinação dos anos 50 do século passado…

ZITO AZEVEDO
Queluz, 29.10.2011

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

[0138] O "Senhor das Areias", um senhor entre os barcos do Porto Grande. Texto memorialístico do nosso colaborador Adriano Miranda Lima


O PRAIA DE BOTE conheceu muito bem o "Senhor das Areias"... por fora, fundeado na baía do Porto Grande - que não por dentro, ao contrário deste miúdo felizardo (e dorminhoco), o pequeno Adriano. Era de facto um navio pesado e lento, mas belo na sua imponência poderosa, um dos mais característicos que fizeram a cabotagem das ilhas e em carreiras mais longas como a Guiné e o Senegal. Como se pode ler no blogue "Navios e Navegadores", o "Senhor das Areias" chamou-se antes "Villalonga". Com 120 toneladas, fora construído em 1920 nos estaleiros de Noya-Obrés na Galiza. Vendido a João Alves Cerqueira, passou depois para as mãos de José Amador que o matriculou na praça de Luanda. Só tomou o seu derradeiro nome em Cabo Verde, onde acabou por ser abatido em 1968.

"Senhor das Areias", atracado ao cais de Bissau. Foto Crocodilo, reproduzida com a devida vénia  (clique na imagem)

“SENHOR DAS AREIAS”  E A MEMÓRIA DA MINHA PRIMEIRA VIAGEM MARÍTIMA

Adriano Miranda Lima
Em Maio de 1950, aos meus 6 anos de idade, a minha avó materna, nascida em S. Antão, convenceu os meus pais a levar-me consigo para uma temporada que ela desejava passar na ilha natal, para matar as saudades dos tempos de menina e moça nela vividos. Essas férias iriam durar até Setembro seguinte, altura estabelecida para o meu regresso, já que eu tinha compromissos com a preparação pré-escolar.

Essa viagem, a primeira da minha vida, ficou-me imperecível na memória e seria o início de uma cumplicidade telúrica com uma ilha que volta e meia me solta asas para devaneios poéticos. Lembro-me como se fosse hoje, decorridas já 6 décadas, de ínfimos pormenores relacionados com essa viagem e da excitação que ela injectou no meu coração infantil.

Saímos de casa por volta das vinte e uma horas, em direcção ao cais de embarque (antigo Cais Novo), acompanhados dos meus pais. Entrámos num bote dos muitos que freneticamente disputavam passageiros no cais, e lá nos dirigimos de remada em remada, sacolejando as águas nocturnas da baía, em direcção ao lugre “Senhor das Areias”, o navio da nossa viagem. O mar estava calmíssimo, como azeite em repouso. À medida que a distância se consumia, sob o impulso do músculo dos remadores, o “Senhor das Areias” ia ficando cada vez mais nítido de pormenores, até que o bote se lhe acostou e o seu imenso casco em plano destacado derrogou todas as minhas referências visuais precedentes. Içado para o interior do navio, fiquei espantado com a grandeza do seu deck e a altura da mastreação e confusão do cordame, mais ainda quando entrei para o subterrâneo dos camarotes. Eu não tinha nem podia ter noção dessa realidade orgânica intrínseca aos navios quando os via ancorados na baía ou a navegar ao largo, porque as noções de escala e perspectiva espacial não eram ainda do meu domínio.

Descemos a escada que conduzia aos camarotes e nunca me esqueci do reparo de um tripulante: «- Não ponham a mão no corrimão que ele está envernizado de fresco.» Ocupámos os nossos beliches, e, como já seria hora para isso, foi entrar na cama e cair logo nos braços de Morfeu, embora a minha avó talvez se não tenha dispensado das suas habituais rezas antes de dormir, dessa vez com justa razão para pedir protecção “aos que andam em cima da água do mar”. E assim foi que nem dei pela largada do navio, apenas ouvindo, sempre que a espaços acordava, sons de música oriundos de um aparelho de rádio algures situado. Decerto que àquela hora não seria emissão das rádios cabo-verdianas. A minha avó se queixaria mais tarde do aparelho de rádio que a não deixou dormir.

O “Senhor das Areias” era um navio penosamente lento, por razões que mais adiante explicarei com base em informação recentemente recebida. Por esse seu andamento de caracol é que só na manhã seguinte fundeámos frente a Paul, altura em que fomos acordados para ir apanhar um ar puro em cima. Mas admito que tenhamos escalado antes disso o porto de Janela, a avaliar pela duração da viagem.

Ao chegarmos ao piso superior do navio, pude ver as casinhas de Paul recortando-se ao longe, no sopé de uma imponente montanha, coqueiros bordejando a ourela do mar, onde as ondas se espraiavam em espuma branca. Botes recebiam carga transportada no navio, subindo e descendo ao longo do costado, depois remando agilmente de regresso ao cais da localidade. Tivemos de recolher de novo ao camarote, antes da retoma da viagem com destino a Ponta do Sol, e é bem possível que eu tenha voltado a adormecer porque não guardo qualquer memória do que aconteceu a seguir até aportarmos àquela vila.

Penso que seriam mais ou menos doze horas quando, de novo no deck, avistei o casario esbranquiçado de Ponta de Sol. Do que se seguiu até chegarmos à vila de Ribeira Grande, nosso destino, poucos pormenores guardo a não ser a estrada sinuosa e alcandorada ao longo da encosta da montanha, por onde seguimos, com as ondas lá em baixo a desfazerem-se em ruído abafado. Não me lembro se ingerimos algum alimento, desde o embarque em S. Vicente, sendo que o navio não fornecia refeições aos passageiros naquelas curtas viagens, tanto quanto hoje penso. E se a minha avó levou alguma merenda também não me recordo, mas pode ter acontecido.

O meu deslumbramento infantil com a ilha de Santo Antão é matéria para outra crónica, para não alongar demasiado este texto. Os meses que lá passei tinham de me deixar marcas indeléveis na memória, porque não é em vão que um menino vê alteradas as suas rotinas, mormente quando tudo corre de feição, na paz e no sossego da relação familiar entre um neto e uma avó.

Chegou o dia em que tive de regressar a S. Vicente. A minha avó ia permanecer mais algum tempo, pelo que fui entregue aos cuidados de um seu afilhado que também viajava para S. Vicente. De novo, o “Senhor das Areias” era o senhor do meu regresso à casa paterna. Partimos para Ponta de Sol e à chegada lá deparei com o navio fundeado no porto da vila, altaneiro como sempre, fazendo jus à sua imponência. A avó acompanhou-nos, com uma “carregadeira” atrás transportando à cabeça um enorme cesto de cana entretecida e com a boca tapada com um pano de serapilheira cosido no bordo periférico. No cesto iam aquelas coisinhas que se produzem nas “meradas” (*) das ribeiras da Ilha das Montanhas, muito apreciadas na ilha irmã, e, por isso mesmo, a avó recomendou-me para dizer ao meu pai, quando me fosse buscar a bordo, que ia uma encomenda. Desconheço por que não encarregara directamente o afilhado dessa incumbência, mas o certo é eu ter recebido o encargo do recado.

Ao despedir-me da avó, antes de ser transferido para o bote, desfiz-me em pranto convulsivo, ela própria contagiando-se visivelmente com a emoção do neto. Sentia uma especial ligação espiritual a essa avó, que ainda hoje perdura intacta naquele limbo misterioso em que radica a essência do ser e suas múltiplas fulgurações. De facto, não era coisa pouca para um coração de menino iludir a nostalgia da despedida, que no caso era suscitada simultaneamente pela avó e pela ilha. Ao longo da minha vida, as duas imagens se têm confundido, ambas exalando fecunda maternidade, numa visão existencial em que vejo a alma humana como o reverso ontológico da terra em que labuta e lavra o seu destino. 

Mal entrámos no navio, o afilhado levou-me a um bote salva-vidas colocado no deck do “Senhor das Areias” e disse-me para me deitar no seu fundo raso e não sair de lá durante a viagem. Está mais que claro que nessa feita não houve o aconchego de camarote. O navio partiu por volta das treze horas e haveria de largar ferro no Porto Grande de S. Vicente cerca das vinte e uma seguintes, tanto quanto me lembro. Como mergulhei logo no sono, desconheço se houve paragem pelo caminho, nos portos de Paul e Janela, mas admito que não, a avaliar pela duração do trajecto e se a comparamos com a da viagem anterior feita em sentido inverso. É irrecusável registar que essas minhas duas viagens a bordo do “Senhor das Areias” decorreram sob a égide de boas sonecas.

Só acordei no fundo do salva-vidas com a presença do meu pai que, ainda me lembro, pareceu indignado por eu ter viajado em tais condições, interpelando o tal afilhado da minha avó, que lhe retorquiu ser esse o lugar mais seguro. Mas tive o cuidado de logo o advertir que ia uma encomenda a bordo, pressuroso como estava em cumprir a recomendação da avó, ao que ele se riu com gosto. E lá fomos a pé até casa, com a sacramental “carregadeira” atrás levando a encomenda à cabeça. Chegados a casa, e acolhido emotivamente nos braços da minha mãe, voltei a cair no pranto de saudade quando ela me perguntou se a avó tinha ficado bem. Como, muito emocionado, não me dominava, ela, para me distrair, levou-me ao nosso quintal ao fundo qual havia uma recente aquisição: uns patos, novos inquilinos de suposto galinheiro. Outra lembrança do meu regresso é o riso gozado dos meus pais quando viram o fato que a minha avó mandara confeccionar numa costureira local para a minha viagem de regresso. Eram umas calças e casaco de cor creme, mas creio que de um corte muito desactualizado, talvez de modelo dos anos 20 ou 30, e de tão desadequado que nunca mais mo vestiram.

E assim se encerra esta memória da minha primeira viagem marítima. Nunca mais voltaria a viajar no “Senhor das Areias”.

Resta concluir esta crónica de viagem, inserindo a seguinte informação que me foi prestada pelo meu amigo Vladimir Koenig, professor universitário aposentado no Brasil, e que teve a gentileza de me enviar também, a meu pedido, uma fotografia do “Senhor das Areias”:

“O Areias era lento e aproveitava muito pouco a força do vento porque na última viagem que fez regressando da Terra Nova (era lugre bacalhoeiro) para Portugal, o casco foi posteriormente modificado aumentando o calado (altura da linha de água para o convés) para poder transportar passageiros entre as ilhas e transformar as câmaras frigoríficas em porões para transporte de carga. O motor era um enorme e ultrapassado motor auxiliar que servia apenas para manter o rumo em caso de o vento provocar algum desvio e evitar que o navio bolinasse. Por isso é que o máximo da velocidade do Areias era de 3 milhas / hora.”

(*) Merada – Nome que se dava a horta ou terra cultivada, em Santo Antão. Não sei se ainda se usa.

Tomar, 27 de Outubro de 2011
"Senhor das Areias"

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

[0137] Janeiro de 1943: o "São Miguel", com comida para Cabo Verde

O PRAIA DE BOTE está com alguma falta de tempo (trabalho, trabalho e sobretudo... trabalho). Por isso, nos últimos dias, não tem sido actualizado. Mas agora mesmo surgiu-lhe este petisco, relacionado com a grande fome do início da década de 40. Aqui fica então a imagem e o texto.


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sábado, 22 de outubro de 2011

[0136] «Bô ta sabe nesse roça!», lembram-se da frase?

A verdade é que, como sabemos, estar «sabe» em S. Tomé era mais para os donos das roças que para os infelizes trabalhadores cabo-verdianos. Alguns destes conseguiam de facto um pequeno pecúlio que lhes permitia regressar às suas ilhas e recomeçar a vida com mais esperança - o que era demasiado raro. Estar em S. Tomé, também significava de algum modo fugir à fome que ciclicamente grassava em Cabo Verde. Mas, comummente, os resultados finais eram estes que o jornal «O Futuro de Cabo Verde» assinalava em 4 de Fevereiro de 1915. Esta é que era a triste realidade da emigração para as roças do café e cacau.

O PRAIA DE BOTE é militante das coisas da Praia de Bote, do Mindelo e de S. Vicente. Porém, Santo Antão é a ilha irmã e por isso ela também aqui pode ter um lugar de carinho. E se iam muitos santantonenses para as roças, a nossa ilha também para lá enviou muitos dos seus filhos.

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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

[0135] Dezembro de 1939. Quem diria? Cabo Verde território colonizador da Guiné... assim se matando dois coelhos de uma cajadada!

O governador de Cabo Verde era Amadeu Gomes de Figueiredo, o mesmo que em 1933 mudou o nome de Porto Carvoeiros em Santo Antão para Porto Novo e que em 1940 mandou colocar uma lápide no túmulo de Eugénio Tavares, inserindo-o em discurso no panteão dos heróis da língua portuguesa. Foi também durante a vigência do seu governo, em 7 de Junho de 1934, que se deu a famosa revolta de Nhô Ambrose contra a fome que grassava no arquipélago, nomeadamente em S. Vicente.

O governador da Guiné, nesta altura, era Luís António de Carvalho Viegas, oficial do Exército, como o anterior.

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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

[0134] Patacho "Ildut". Ver poema de Adriano Miranda Lima no post 0132

Eis uma preciosidade que o PRAIA DE BOTE muito se orgulha de divulgar, por obra e graça do seu colaborador Adriano Miranda Lima que ao blogue a ofereceu: o patacho "Ildut", de velame desfraldado, cortando os mares, toda garbosa.

Grandes tempos, de coisas boas e más, como sempre. A pior de todas, o quase inevitável naufrágio. Nos últimos meses, temos conhecido, na nossa investigação diária, inúmeras escunas e barcas da carreira de Cabo Verde (EUA-CV). A maior parte naufragou, algures no vasto Atlântico, perto nas ilhas ou no regresso aos States, já perto de terra, com perda de vidas e carga. Muitos capitães se celebrizaram pelo seu heroísmo, sabedoria ou desgraça e pela tentativa quase sempre gorada de introduzir emigrantes ilegais na terra do Tia Sam. Multas e prisão eram vulgares entre eles e os seus passageiros.

Pouco sabemos do "Ildut". Os dados disponíveis são escassíssimos. Pensamos até que ela terá sido aplicada na cabotagem apenas em Cabo Verde ou eventualmente em solitária viagem a Dacar. Contudo, esta rara fotografia agora cedida por AML dá aos leitores do PB pelo menos a sua corporização, facto que muito agradecemos ao ofertante.

"Ildut" (clique na imagem)

domingo, 16 de outubro de 2011

[0132] Um poema de Adriano Miranda Lima

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Em memória do navio cabo-verdiano "Ildut", do seu capitão João Pedro Martins e de todos os antigos marinheiros das águas das ilhas, o PRAIA DE BOTE republica um conhecido poema do nosso colaborador Adriano Miranda Lima. Vale a pena a coisa, não só pela elegância e engenho do verbo limiano como pelo gosto do blogue pelas coisas do mar e dos navios.

Indica AML que a composição não é a  reprodução fiel de qualquer acontecimento da realidade. Contudo, no seu fundo temático, e com o adorno ficcionista apropriado à circunstância, faz o poeta o aproveitamento do episódio real do naufrágio do "Ildut" e da atitude dramática do seu valoroso capitão.

Não tendo conhecimento de qualquer foto do "Ildut", o PRAIA DE BOTE conseguiu apenas saber, embora sem confirmação, que o veleiro pesava 105 toneladas e que naufragou em 17 de Março de 1970.


NA ROTA DO DESTINO
                     
                     
 - Santa Luzia, vós que estais hoje oculta na bruma,
 vós que no céu sabeis que nunca é vã coisa alguma,
 rogai por este navio da nossa inteira e fiel devoção,
 assim como vos dedicamos o amor que vai no seu porão!
 Prece de capitão é assim mesmo com força de mar bravo,
 proferida com a fé de marinheiro que vive sem agravo,
 em convés perfumado de breu, cordame e maresia,
 varrido às vezes por ondas que não têm  cortesia.
 Velas enfunadas vão agora na soltura do vento em desatino,
 estai e bujarrona, irmãs desfraldadas no mesmo destino,
 em mar que balança desaforado em ritmo extremo,
 com  espuma oscilante a marcar o compasso supremo.
 S. Nicolau é  destino para lá dum mar que não está chão,
 mas capitão não precisa de instrumentos de navegação,
 ele menino-moço-homem-feito nestas rotas de cabotagem:
-Ah, tanta saudade dos tempos caloiros de aprendizagem,
 tempos  de sonhar com horizontes longes e dilatados,
 de tanto sangue na guelra e tantos namoros salteados,
 tempos de viagens constantes àquelas águas do Paul,
 de noites perdidas a ver a lua cheia a  pratear o mar azul
 e a iluminar o perfil de garça do  nostálgico navio;
 Oh, longe vai  a vida solta de moço de coração vadio!...
 - Toninhas, para onde ides hoje apressadas, criaturas,
vós que pareceis sempre incansáveis de aventuras?
Capitão é despertado com esta ralação de marinheiro
quando os animais passam velozes desafiando o veleiro.
Mais logo nuvens negras se acastelam em jeito traiçoeiro
e vagas se agigantam ameaçadoras além a bombordo.
- Capitão, ouvi um presságio antes de entrar a bordo!
Exclama alguém entre o gemido sofrido das enxárcias
presas com a mestria precavida para  as circunstâncias.
- Qual história, qual carapuça, marinheiro de água doce,
onde já se viu ânimo de gente de mar que assim desfalece?!
Estamos abençoados por S. Vicente, Santa Luzia e S. Nicolau,
e desconfiar de  santo é coisa de grogue a pedir sova de pau!
Nunca se saberá se houve mau agoiro ou simples premonição
ou se apenas a má cara do tempo inspirou simples intuição;
a verdade é que uma vaga alterosa baldeia o convés inteiro
de um modo em que o mar nem sempre é useiro e vezeiro,
e o  marinheiro volta a falar no presságio ouvido em terra.
- Fechar escotilha e segurar leme que tempo está de guerra,
brada alto  capitão no meio do rugido do mar e do vento,
mas mar e vento mostram aos santos a feição do seu portento,
e a água já tudo inunda com a força líquida do seu contágio.
- Adé capitão, juro que ouvi mesmo um mau presságio...
Irado,  capitão grita seu impropério aos quatro ventos:
- Ó gente receosa, este navio foi abençoado por três santos!
Contudo o lobo-do-mar olha já de soslaio para os cantos,
como querendo esconjurar uma maligna fatalidade
já vidrada nos olhos cansados e rendidos à verdade.
Ordena ainda mais um bombeamento ao porão do navio,
com a água já a roçar a orla das vidas presas por um fio.
E o veleiro começa a afundar-se no mar do tormento,
Mas ainda à espera de socorro náutico a todo o momento,
quando alguém jura ouvir a voz celestial de Santa Luzia,
como algo que entra fundo no espírito e não é pura fantasia,
voz que  parecia emergir do oceano para tudo  acalmar,
a rogar ao Todo Poderoso pela sorte dos filhos do mar.
Hora de esperança renascida na fé finalmente devolvida?
Mas capitão já vê seu navio com olhos de despedida,
e quer também mergulhar no abismo sua alma sofrida:
- Ó perda irreparável, deixem-me ir no último  amplexo!
Mas vozes amigas lembram-lhe  que ainda há mais nexo
em seu amor à terra chã e nas promessas de vida por viver,
e há um instante em que tudo se reconcilia no fundo do seu ser.
Abstrai-se completamente da procela e do corrupio a bordo,
e chegam-lhe ecos de longe trazidos pelo vento  a estibordo,
qual  canto mavioso de sereia  embalando  seu espírito,
levando-o de regresso a imagens e sentimentos do pretérito,
um mundo de afectos que  procela não pode destroçar,
mais fiel  e mais duradouro  que o navio prestes a soçobrar.
- Adé capitão, gostamos do senhor como nosso pai de verdade...
É confissão de corações próximos numa hora de fatalidade.
 - Abandonar o navio! Ordena vibrante e já recomposto o capitão,
olhos postos além no socorro náutico, presença visível da salvação,
afinal, prova provada  que Santa Luzia foi mesmo ouvida
por Aquele que controla  mar e vento e o poder sobre a vida.
Capitão sabe como são sempre efémeras todas as glórias,
mas sabe que o seu navio navegará sempre nas suas memórias,
sagradas memórias como a fé que alumia a sua paixão,
doces memórias como a bondade que irradia do seu coração.


Adriano Miranda Lima
Tomar, 1 de Abril de 2003

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

[0130] Conservas...

Agora se percebe o motivo que fez um "mnine" muito nosso conhecido ir para Génova, abandonando o Mindelo. A notícia tem a ver com a Praia, mas ele é "mnine de Soncente". De certeza que está metido neste "negoce". Quem é, quem é?

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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

[0129] Terá a noiva sujado o seu vestido branco no pó do carvão? Ou de como os ingleses também "adquiriam" gente da terra

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A coisa foi feita à moda da época. Alguém de importância, por conta do noivo, pediu a mão da noiva, menina da burguesia comercial mindelense, com a poderosa carvoeira inglesa Miller's & Cory como cenário - o que dava acrescida importância ao acto. E bifes, pelo meio, obviamente. Um "bife" querer uma local (ainda que da classe alta), era algo raro. Nunca foram muito dessas avarias os rapazes da britânica ilha, mais de apetites por carne nacional que não poucas vezes importavam para as suas colónias ou para outros lugares onde assentavam arraiais, como aqui. Ao contrário dos portugueses que nunca foram desses preconceitos e bastante se misturaram, originando excelentes produções genéticas...

Aqui fica então esta notícia (de Dezembro de 1932, mas só publicada em Janeiro de 1933), bem demonstrativa de que todas as regras têm excepção. Esperemos que a lua-de-mel em Cardiff tenha sido bem agradável. Pena nem ali o par se ter escapado ao carvão, produto mais abundante na época nessa cidade. Má escolha, má escolha...

domingo, 2 de outubro de 2011

[0127] (vídeo) Porto Grande mexe

[0126] Adriano Duarte Silva: pequena (grande) nota...

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Escarneceram a sua memória, derrubaram-lhe o busto de bronze (depois, com inteligência reerguido) e do modo mais canalha (que é o da força bruta e cega), destruíram a casa onda viveu.

Mas não conseguirão apagar a sua memória, a de um bom cabo-verdiano, de coração e alma, que sempre pugnou pelo bem-estar da sua terra. Aqui fica um exemplo, nota de discurso realizado a 14 de Dezembro de 1948.

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