sexta-feira, 30 de novembro de 2012

[0278] Cimeira Portugal-Cabo Verde, a 2 de Dezembro, no Mindelo

Clique na imagem, para aceder às declarações do primeiro-ministro de Cabo Verde ao jornal "I" (Portugal)

Rua de Lisboa, Mindelo - Imagem antiga, do nício do século XX

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

[0277] As tropas portuguesas em Cabo Verde durante a II Guerra Mundial

TROPAS EXPEDICIONÁRIAS PORTUGUESAS A CABO VERDE NO PERÍODO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

 8 - Levaram na mochila o espírito de solidariedade  comente, não se limite a ler  

Adriano Miranda Lima
Em linguagem castrense, o termo “impedido” significa um soldado colocado, com carácter mais ou menos temporário, num serviço alheio às funções da sua especialidade militar. Ou seja, um soldado com a especialidade de atirador, apontador de morteiro, sapador, ou outra, pode ser colocado num órgão administrativo como uma messe, o rancho geral ou um qualquer depósito ou armazém, para suprir uma eventual necessidade de pessoal. Em tempos já mais recuados, os oficiais, normalmente a partir do posto de capitão, tinham um soldado “impedido” ao seu serviço pessoal. Este intróito serve apenas para dizer que até as praças do contingente expedicionário arranjaram o seu “impedido”, glosando-se aqui, claro, o significado militar do vocábulo. E quem eram esses “impedidos”? Nada mais que a miudagem que se acercava dos portões dos quartéis à procura de um pouco de alimentação. As praças precisavam de alguém que lhes levasse a roupa a uma lavadeira, que lhes desse um recado ou até que lhes engraxasse as botas.

Já nesta narrativa foi aflorado o grave problema da fome em Cabo Verde naqueles anos terríveis em que as tropas metropolitanas ali estiveram destacadas (1). Em relatos que ouvi a muitos desses ex-militares, raros são os que não conservaram para sempre na memória o triste episódio da fome que assolava o arquipélago e dizimava impiedosamente vidas humanas (cerca de 50.000 mortos entre 1943 e 1945). É por esta razão que o coração dos militares não era insensível ao espectro da fome estampado nos rostos dos rapazinhos que se abeiravam dos quartéis. Muitos reservavam um pouco da sua alimentação diária aos seus “impedidos”, quer fosse pão quer fosse comida confeccionada nos caldeiros do rancho geral. Só quem nunca sentiu a tortura da fome não imagina o valor que teria naquela altura uma simples côdea de pão ou uma tijela com uns restos de sopa. Valdemar Pereira (2), cidadão de origem cabo-verdiana, que ao tempo andava pelos 9 e 10 anos de idade, recorda-se perfeitamente desse contingente de “impedidos” dos militares expedicionários. Outros conterrâneos contam episódios que nos revelam que algumas crianças podem ter sobrevivido graças ao espírito de generosidade dos militares.

Foto de origem desconhecida. Imagem expressiva da miséria das populações rurais do interior de Santo Antão naqueles tempos de seca terrível e devastadora.

Expedicionário 1.º cabo Luís Henrique, do Batalhão de Infantaria 5. Foto reproduzida, com a devida vénia, no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (Meu pai, meu velho, meu camarada).

De entre muitos testemunhos, vale a pena registar aqui o do antigo expedicionário 1º cabo Luís Henrique, do Batalhão de Infantaria 5, aquartelado em Lazareto, que me foi transmitido em mail pessoal pelo seu filho Dr. Luís Graça, sociólogo, autor e editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, espaço no qual o mesmo testemunho foi reportado há alguns anos, assim como factos relevantes da vida militar do seu pai em terra cabo-verdiana. Textualmente, transcreve-se esta seguinte passagem do citado mail: “O meu pai lembra-se da epidemia de fome que assolou as ilhas, no tempo em que lá esteve (1941/43). O seu “impedido”, o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (cerca de 16$00), para ajudá-la nas despesas do funeral”. Luís Graça explicou que o seu pai estava na altura hospitalizado mas que acompanhou o triste episódio da morte do seu “impedido”, que nunca mais se lhe deliu na memória. O senhor Luís Henrique faleceu aos 92 anos em 8 de Abril de 2012. Rendo-lhe aqui uma justa e sentida homenagem póstuma, que, estou seguro, é partilhada por todos os cabo-verdianos que são gratos àqueles que, por qualquer forma, foram solidários para com a nossa gente num momento de verdadeira tragédia humana. Não há exemplo mais tocante e mais grandioso do que o daquele que dá o pouco que tem para mitigar a fome e o sofrimento do seu semelhante. Foi o caso do senhor Luís Henrique e de muitas praças dos contingentes militares expedicionários.

Vista da cidade do Mindelo e Porto Grande obtida em 1943. Foto de origem desconhecida mas que parece ser da Foto Melo ou do José Vitória.

Mas se importa, e muito, a exemplaridade do gesto individual, ganham especial relevância acções de expressão mais colectiva, tanto mais quando se dispensam do selo da formalidade institucional. Em narrativas anteriores, referi a importância particular que para mim reveste o Batalhão de Infantaria 15, nomeadamente a sua 3.ª Companhia de Atiradores, a que ficou em S. Vicente enquanto o grosso do Batalhão foi destacado para a ilha vizinha. Vamos ver o porquê desse meu sentimento. Essa companhia, sob o comando do capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira, ficou aquartelada no centro do Mindelo, em instalações situadas na rua Senador Vera Cruz que pertenciam à Sociedade Luso-Africana. Tive ocasião de participar, em um ou outro convívio anual dos antigos expedicionários do Batalhão de Infantaria 15, o último dos quais foi em 1996. Por tudo o que lhes ouvi, posso afirmar que aquele capitão era venerado pelos seus antigos subordinados, que o recordavam pela sua competência profissional e pelo espírito humanitário oculto atrás do seu ar sóbrio e grave.

E então recordam que naqueles tempos difíceis, em que grassava a fome em Cabo Verde, vitimando muita gente entre a população, o capitão Oliveira assistia à distância a presença das pessoas que se aglomeravam à entrada do improvisado aquartelamento para receber alguma sobra de rancho. Um dia, o graduado de serviço diário tomou uma certa atitude de contenção receando que, por uma questão de segurança militar, o comandante de companhia proibisse aquele amontoado de pessoas mesmo em cima das instalações militares. Mas o capitão reagiu assim: “Não, deixem-nos estar, dêem-lhes todas as sobras que houver…”. Isto foi-me contado pelo então furriel miliciano encarregado do rancho geral, Herman Mendes Shultz Guimarães, que haveria de prosseguir a carreira militar chegando ao posto de capitão do serviço geral do exército. Condoído com aquela dramática situação, o capitão Oliveira ordenou ainda a montagem de um mais organizado serviço de distribuição de sobras de rancho, autorizando que aqueles pobres civis entrassem mesmo para dentro da área militar. À certa altura, reparando que o número de necessitados crescia a olhos vistos, disse ao furriel que tinham de arranjar um processo de maximizar as sobras de alimentação de forma a responder melhor àquela situação. Perante as dúvidas do subordinado, explicou-lhe que era preciso recorrer a todas as situações administrativas e meios possíveis. Persistindo o subordinado nas suas dúvidas, que aliás suponho seriam legítimas, o capitão deu-lhe instruções mais precisas para se conseguir aquele desiderato, o que, lembra-se ainda o antigo furriel, deixava os níveis do depósito de géneros da companhia abaixo do que estava estabelecido. Recorda-se ainda de o seu comandante de companhia ter ido falar com o comandante do Regimento de Infantaria 23, designação da unidade que englobava os batalhões de infantaria de S. Vicente, no sentido de sugerir ao seu superior hierárquico que todas as companhias procedessem de igual forma, e dentro dos possíveis, para ajudar as pessoas carentes de alimentação. E a verdade é que o gesto humanitário do capitão Oliveira em prol dos necessitados de S. Vicente não tardou a ser seguido nas outras companhias e baterias destacadas na ilha de S. Vicente.

Foto pertencente à família do capitão Paiva Nunes e por ela cedida ao autor. Os oficiais presentes são todos capitães. Na fila de trás só posso identificar o que está no meio. Chamava-se José do Peso e Sousa Benchimol e era de origem goesa. À frente, e da esquerda para a direita, o capitão Mário de Paiva Nunes e o capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira (aos 40 anos de idade), benfeitor do povo faminto do Mindelo.

O antigo expedicionário Shultz Guimarães transmitiu-me este registo visivelmente comovido com o desenterrar da sua memória. O seu comandante de companhia era realmente de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e alta estatura moral. Faleceu de morte súbita em 1975, aos 72 anos de idade, já general reformado, tendo tido como último cargo o de Comandante Geral da Polícia de Segurança Pública. Não foi por acaso que o seu funeral, realizado em Tomar, de onde era natural, foi acompanhado por um infindável número de antigos subordinados. Durante os anos que se seguiram, o aniversário do seu falecimento era sempre assinalado pela presença no cemitério de Tomar de um número elevado de militares e polícias, seus antigos subordinados, vindos de vários pontos do país. De igual modo, os veteranos do ex-3.ª Companhia de Atiradores aproveitavam a ocasião do seu convívio anual para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão depositados os restos mortais do “seu capitão". Escusado é dizer que, na companhia daqueles antigos expedicionários, me incorporei algumas vezes no séquito, em preito de homenagem a um oficial de estirpe e a uma grande alma cristã, sentindo que o fazia também em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome com o seu espírito de compaixão e amor ao próximo. Por alguma razão, a rua em que esteve aquartelada a 3.ª Companhia de Atiradores do Batalhão de Infantaria 15 durante muito tempo ficou conhecida como “Rua Infantaria 15”. Interessará ainda referir, segundo o que ouvi aos seus antigos subordinados, que o capitão Oliveira, na altura com 40 anos de idade, foi, durante a sua missão militar em Cabo Verde, convidado para o cargo de administrador do concelho de S. Vicente mas que declinou o convite. Como o capitão Miguel da Conceição Mota Carmo, comandante da 1.ª Companhia de Atiradores do mesmo Batalhão, exerceu esse cargo, admito que o convite lhe tenha sido dirigido em segunda escolha. E o Mota Carmo, que ficou conhecido pelo seu carácter autoritário e mão de ferro, algumas vezes roçando o despotismo, como rezam alguns, fez todavia um bom trabalho durante o seu mandato.

Antigo hospital de S. Vicente, posando à frente dois oficiais, possivelmente médicos. Foto de origem desconhecida obtida em 1942.

Mas o apoio e o espírito de solidariedade das forças militares tiveram uma expressão alargada e transversal, passando por actos individuais e colectivos e por diferentes sectores das estruturas militares. Destaca-se a acção médica e medicamentosa que a população recebeu durante a permanência das tropas de uma forma sem precedentes na história colonial das ilhas, sobretudo em S. Vicente. Essa acção permitiu salvar inúmeras vidas mediante intervenções cirúrgicas e uso de meios terapêuticos que não teriam sido possíveis sem a presença dos militares. A Dr.ª Risanda dos Reis Soares, na sua tese de mestrado (3) refere um eloquente testemunho do cidadão cabo-verdiano Sr. Arnaldo Lima, contemporâneo dos factos, que a dado passo afirma: “A população mostrou-se saudosa com a saída dos militares, reconhecendo principalmente a ajuda médica e medicamentosa que lhes tinham prestado durante a sua presença na ilha”. Sobre este assunto, o próximo texto terá como tema a acção de um oficial médico que foi o grande protagonista da solidariedade humana no capítulo da assistência médica – o capitão médico José Baptista de Sousa.

(1)    “TROPAS EXPEDICIONÁRIAS PORTUGUESAS A CABO VERDE NO PERÍODO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – A Actividade Militar e o Meio Físico Envolvente”, blogue Praia de Bote.
(2)    Vice-cônsul português em Tours (França), aposentado, autor do livro “O Teatro é uma Paixão, a Vida é uma Emoção”.
(3) “SÃO VICENTE DE CABO VERDE NO PÓS-GUERRA (1945-1960) ”, p. 26.


Tomar, 17 de Novembro de 2012
Adriano Miranda Lima

terça-feira, 13 de novembro de 2012

[0276] Continua o trabalho sobre as tropas expedicionárias portuguesas a Cabo Verde

TROPAS EXPEDICIONÁRIAS PORTUGUESAS A CABO VERDE NO PERÍODO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

7 - A incidência da morbimortalidade entre os militares expedicionários       comente, não se limite a ler   


NOTA: Devido a mudança de computador e às complicadas manobras que essa batalha implica, o PRAIA DE BOTE não sairá da sua trincheira durante algum tempo. O CIDADE VELHA 1462 e o NOVAS DE TARRAFAL continuarão a ser municiados, embora com alguma dificuldade técnica, própria da dita mudança de armamento.
 
Adriano Miranda Lima
Uma ou outra vez li ou ouvi algures que a morte é a namorada mais fiel com que o soldado pode contar. Este aforismo não obedece a nenhuma verdade axiomática senão no sentido em que exprime a ideia do sério risco de morte violenta a que o militar se expõe no campo de batalha. As tropas expedicionárias foram para Cabo Verde equipadas e preparadas para a eventualidade de uma situação de guerra, pois o conflito mundial poderia abrir um breve e circunstancial episódio local se os alemães tivessem pretendido ocupar as ilhas. Felizmente, isso não aconteceu, e as nossas tropas mais não fizeram que acompanhar à distância as notícias de uma guerra que ceifava vidas e dilacerava cidades a uma escala avassaladora. A civilização ocidental estava de rastos, renegando os valores com que cimentara os seus alicerces desde a Idade das Luzes.

No entanto, aquela namorada tem o sortilégio da omnipresença, seja na guerra seja na paz, e assim não escaparam ao seu beijo fatídico 40 militares na ilha de S. Vicente e 28 na ilha do Sal. Não disponho de elementos informativos sobre o que se passou na ilha de S. Antão, mas é de todo provável que alguns óbitos ocorridos nessa ilha tenham conhecido o seu desfecho em S. Vicente, para onde os militares gravemente doentes seriam naturalmente evacuados. Com a devida vénia ao blogue Luís Graça & Camaradas, reproduzo aqui os resultados de uma pesquisa efectuada nos Arquivos do Registo Civil de S. Vicente pela Dr.ª Lia Cordeiro Lima Medina, professora universitária, que desta forma prestou uma valiosa colaboração àquele estimado e prestigioso blogue que, para o efeito, contou com a valiosa acção do seu colaborador José Martins. A pesquisa da Dr.ª Lia Medina foi ao pormenor de registar os dados pessoais de identificação, e, na generalidade dos casos, a data e a causa da morte dos militares, assim como o número da campa e a rua em que foram inumados no cemitério de S. Vicente. Porém, com respeito à ilha do Sal, apenas existem os nomes, os postos e a data do falecimento.

Vejamos então os seguintes registos oficiais. Entre 1941 e 1946, morreram em S. Vicente 40 militares das forças expedicionárias, sendo 9 em 1941, 14 em 1942, 12 em 1943 e 5 entre 1944 e 1946. Compreende-se que o maior número de óbitos tenha ocorrido no período auge da permanência das tropas (1942 e 1943), porquanto só começaram a chegar a Cabo Verde no segundo semestre de 1941 e o regresso à metrópole do grosso dos efectivos começou a partir dos finais de 1943, nomeadamente das unidades de infantaria. Na ilha do Sal, registaram-se 28 óbitos entre 1941 e 1944, onde os efectivos eram bem menores que em S. Vicente. Pelo que se pode concluir que, em termos proporcionais, os óbitos foram em maior número nessa ilha.

Foto publicada no blogue Luís Graça & Camaradas, que aqui se reproduz com a devida vénia. Representa o funeral de um militar, cuja identidade se desconhece. Parece que o cortejo fúnebre está a passar pela zona da Praça Estrela, a caminho do cemitério.
Foto publicada no blogue Luís Graça & Camaradas, que aqui se reproduz com a devida vénia. Segundo esse blogue, trata-se de uma homenagem dos militares das duas baterias de antiaérea de Monte Sossego a seus camaradas falecidos. Pela forma como as campas se apresentam arranjadas, a homenagem pode ter sido na altura do regresso à metrópole daquelas unidades. Uma sentida homenagem de cunho marcadamente militar.

De entre os 40 óbitos registados na ilha de S. Vicente, a quase totalidade pertence à classe de praças (soldados e cabos), o que é compreensível atendendo a que em qualquer corpo militar as praças constituem cerca de 80% do efectivo. Mas em S. Vicente faleceram um major (53 anos), de que se falará mais adiante, um tenente (58 anos, possivelmente dos serviços administrativos ou secretariado, tendo em conta a idade), um aspirante do serviço de administração militar, um 2º sargento, por suicídio, de que se falará também mais à frente, um furriel miliciano e um cabo miliciano. De entre os 28 óbitos ocorridos na ilha do Sal, regista-se um tenente e um furriel miliciano. 

Foto de origem desconhecida, datada de 1943 ou 1944. Trata-se de pessoal do serviço de saúde no Hospital Militar Principal de S. Vicente, cujas instalações passariam mais tarde a pertencer aos Salesianos. Os militares da frente e sentados parecem oficiais médicos.

À excepção de um número escasso de casos de morte por causa acidental (três por arma de fogo, sendo dois por suicídio e um provavelmente por mero acidente; um por politraumatismo provavelmente relacionado com acidente de viação ou queda e um por congestão súbita dentro de água), todos os óbitos tiveram causa natural, ou seja, doença contraída durante a permanência em Cabo Verde. E é sobre esta questão que poderemos fazer algumas breves extrapolações. Para começar, é algo invulgar a taxa de ocorrência de tantas mortes por doença se fizermos uma análise comparativa com o historial das unidades que participaram na chamada guerra colonial na década de 1960 e primeiros 4 anos da de 1970. Falando da minha própria experiência, tanto no batalhão em que servi em Angola como no de Moçambique, não me recordo de um único caso de morte por doença, tendo todas as baixas sido causadas por morte violenta em combate (arma de fogo e rebentamento de minas anticarro e antipessoal).  A diferença é que à época em que as tropas estiveram em Cabo Verde os recursos terapêuticos e os meios profiláticos eram incomparavelmente inferiores ao que se viria a verificar duas décadas volvidas. Não existia certamente a bateria de vacinas a que os militares eram submetidos antes de marcharem para Angola, Guiné, Moçambique e outros territórios africanos.


As duas fotos em cima são da autoria de José Vitória, pai de uma minha tia por afinidade. O dono das fotos, expedicionário 1º cabo Custódio Jacinto, escreveu no verso as seguintes palavras: “Recordação do quadrimotor inglês que veio a S. Vicente em 25/1/1944 trazer as injecções contra a febre amarela”. No alto da colina pode ver-se o Fortim d’El rei ainda intacto e operacional. VER NOTAS SUPLEMENTARES APÓS O FINAL DO PRESENTE TEXTO

Com efeito, atentemos nas seguintes causas da maior parte dos óbitos registados em Cabo Verde para percebermos que o uso da penicilina e antibióticos teria em grande parte evitado a sua ocorrência, já que o seu desfecho fatal está associado a um predomínio de doenças infecciosas de origem bacteriana: febre tifoide, broncopneumonia, infecções intestinais, septicémia, paludismo e outras. Lembre-se que só a partir de 1944 é que a penicilina, inaugurando a era dos antibióticos na medicina, começou a ser utilizada à escala industrial em Portugal. No entanto, durante a II Guerra Mundial essa notável descoberta médico-científica salvou milhares de vidas de soldados, não sendo provável que as prioridades da sua distribuição tivessem contemplado o mundo português de então, mesmo em benefício dos militares destacados em terra distante e sujeitos a influências ambientais a que não estavam habituados.

Até porque, se o quotidiano dos nossos expedicionários estava afastado das agruras da guerra, para ela se preparavam, porventura sofrendo privações e arrostando alguns sacrifícios e contingências que lhe são típicos. Ou ambiente físico e económico-social em Cabo Verde naquela altura, caracterizado por graves carências alimentares locais e porventura sanitárias, terá sido em si mesmo indutor de reflexos negativos entre a população militar? É muito provável que sim. Testemunhos de alguns expedicionários referem uma alimentação insuficiente e de fraca qualidade para quem estava sujeito aos esforços físicos exigidos pela actividade militar de campanha. Outros factores  não terão sido favoráveis ao bom estado sanitário dos militares, como a escassez de água para dessedentar os corpos e para a higiene colectiva mínima nas situações de campanha  que exigiam o acantonamento em tendas em certos locais de S. Vicente como S. Pedro, Baía das Gatas, Salamansa e outras. Isto para não falar na ilha do Sal, onde as intempéries e a secura da terra tinham seguramente uma feição bem mais gravosa. Por outro lado, os horrores da seca e, consequentemente, da fome, que ceifavam diariamente a vida de muitos cabo-verdianos teriam provavelmente uma influência negativa entre a população militar metropolitana. O expedicionário 1º cabo Luís Henrique, falecido neste ano aos 92 anos, pai do editor do blogue Luís Graça e Camaradas, relatou ao seu filho o impacto negativo das notícias que chegavam aos militares sobre as mortes pela fome que ocorriam diariamente na população civil. Eu próprio ouvi relatos de expedicionários há alguns anos em que falavam da sua estupefacção e tristeza por saberem de cadáveres diariamente transportados para o cemitério em carroças e enterrados sem caixão.

Como atrás antecipei, merece aqui referência a morte por suicídio com arma de fogo do 2º sargento Ovídio de Deus da Silva Buíça, do Batalhão de Infantaria 5, visto que era muito estimado no Mindelo pelo bem que fazia a algumas pessoas. Segundo testemunho de uma tia minha por afinidade, o sargento Buíça suicidou-se por ver-se envolvido num processo em que era acusado de irregularidades na gestão da messe de sargentos, de que era encarregado. O militar era conhecido da mãe dessa minha tia, e esta ainda se recorda da consternação que a sua morte causou no meio civil. O Valdemar Pereira, vice-cônsul de Portugal em Tours, aposentado, confirma os factos relatados pela minha tia, embora ele fosse ainda criança à data dos acontecimentos. O sargento Buíça faleceu em 3 de Abril de 1943 e os seus restos repousam na campa nº14, rua 56, do cemitério do Mindelo.


As duas fotos em cima pertenceram ao capitão de infantaria Mário de Paiva Nunes e foram-me oferecidas pelo seu filho. Retratam as exéquias fúnebres do major de infantaria Nicolau de Luizi.
Satisfazendo o que páginas atrás anunciei, umas palavras agora sobre o falecimento do major Nicolau de Luizi. Este oficial era o comandante do Batalhão de Infantaria 15, que partiu do Regimento de Infantaria 15, de Tomar. A causa da sua morte, e segundo o que consta nos arquivos do Registo Civil de S. Vicente, foi “septicémia-broncopneumonia”. Este oficial recebera, em cerimonial militar de parada, das mãos do seu Comandante de Regimento, o guião da unidade, a bandeira heráldica que acompanharia e nortearia o batalhão no cumprimento da sua missão em Cabo Verde. Por certo, ninguém esperaria a sua morte, ocorrida aos 53 anos em 9 de Março de 1942, bem menos de um ano após a sua chegada a Cabo Verde. No entanto, alguns expedicionários seus subordinados que eu ouvi há cerca de 25 anos alegaram que o oficial não gozava de uma perfeita saúde quando embarcou, por nunca ter curado devidamente um padecimento contraído em Moçambique na sua actividade militar. A primeira foto retrata a passagem do cortejo fúnebre pela zona Praça Estrela, vindo da Igreja local, a caminho do cemitério. O corpo deve ter sido encerrado em urna de chumbo e mais tarde enviado para a metrópole. A segunda foto reporta precisamente o cerimonial militar de embarque do corpo com destino à metrópole. A urna está no jazigo familiar de Tomar, onde, por mero acaso, detectei há cerca de 20 anos o nome do oficial gravado na sua parede de mármore. Procurei na cidade de Tomar algum descendente deste oficial, mas sem resultado. Admito que outros oficiais falecidos em Cabo Verde possam ter sido trasladados para a metrópole, até porque os registos existentes não referem a sua inumação no cemitério de S. Vicente. 

Esta foto pertenceu ao capitão Mário de Paiva Nunes e foi-me oferecida pelo filho. Nela estão alguns oficiais do Batalhão de Infantaria 15. Não estou seguro, mas penso que o major Nicolau de Luizi é o que está no centro da foto (de camisa aparentemente mais clara). À sua direita está o capitão Paiva Nunes e à esquerda o capitão Marques e Oliveira, comandante da 3ª Companhia de Atiradores, a que ficou em S. Vicente enquanto o resto do batalhão guarneceu a zona de Porto Novo, S. Antão. Teremos ocasião de falar do capitão Marques e Oliveira pelo seu gesto humanitário para com a população do Mindelo.

Fotos de Emanuel Vitória Soulé, primo direito do autor desta narrativa

As duas fotos supra inseridas encerram este capítulo. Foram obtidas quando, a 23 de Julho deste ano, revisitei no cemitério do Mindelo as campas dos meus avós. Depois desse acto, dirigi-me ao talhão militar onde foram inumados os expedicionários que faleceram em S. Vicente na flor da idade, longe dos seus pais, esposas ou namoradas. Como pai e avô que sou, por momentos coloquei-me no coração dorido dos familiares destes soldados que aqui repousam para sempre, longe dos seus amores. Mas simultaneamente a minha condição de militar transportou-me para uma secreta dimensão interior difícil de explicar. Então, pensei nestes rapazes que, aos vintes ou vinte e poucos anos, não era eu ainda nascido, para aqui vieram no cumprimento de um dever cujo significado poucos certamente alcançavam senão na estrita relação de obediência ao seu comandante de pelotão ou companhia. Algumas vezes ouvi a alguns superiores hierárquicos, quando eu era ainda um jovem aspirante, que o soldado português não morre propriamente pela pátria mas sim por amor ao seu comandante. Com esta observação, pretendia-se instilar nos novos oficiais o cuidado, a atenção e o carinho que lhes deve merecer os soldados que comandam. Desconheço se todos os comandantes destes soldados aqui sepultados foram dignos do seu sacrifício. 

Voltaire disse: “A pátria é nos lugares onde a alma está acorrentada”. Eu diria que, numa época histórica em que a pátria portuguesa estava difusamente repartida e miscigenada, estes militares, mais do que acorrentada a sua alma, aqui ficaram para sempre irmanados com a terra cabo-verdiana. Por alguma razão este lugar piedoso está irrepreensivelmente tratado… por mãos cabo-verdianas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2012
Adriano Miranda Lima
Continua...  

A propósito da referência existente na foto de José Vitória sobre a data em que o o avião inglês levou a penicilina para Cabo Verde (indicada pelo 1.º cabo Custódio Jacinto), o PRAIA DE BOTE dá outra de 1945, que encontrou em notícias do Diário Popular sobre assunto similar. Aqui, o avião parece ser português, visto que tripulado por militares nacionais. Isto, numa altura em que o acesso ao milagroso medicamento se generalizou a toda a população portuguesa.

10.JANEIRO.1945
Pág. 1 – UM AVIÃO MILITAR SEGUIU HOJE PARA CABO VERDE ONDE VAI LEVAR PENICILINA PARA ACUDIR A UM MILITAR EXPEDICIONÁRIO EM PERIGO DE VIDA – Adoeceu gravemente um… [a palavra seguinte não é legível] da guarnição militar de São Vicente de Cabo Verde. A fim de tentar a sua salvação tornava-se necessária a aplicação de penicilina. O facto foi participado para Lisboa e esta manhã partiu para ali um avião militar tripulado pelos capitães Bettencourt e Eurípedes e pelo tenente Benjamim de Almeida e ainda dois mecânicos e dois rádiotelegrafistas, transportando as doses necessárias daquele medicamento.

16.JANEIRO.1945
Pág. 8 – A PENICILINATERAPIA FOI ASSUNTO DE UMA PALESTRA NO HOSPITAL MILITAR – [A notícia vem datada de São Vicente, 16, sem indicação de ser de Cabo Verde. Contudo, não parece que seja de outro local, dada a notícia de 10.Janeiro.45, p. 1, do mesmo periódico] Por iniciativa do dr. Judice Pargana, director do Hospital Militar, efectuou-se hoje uma reunião do corpo clínico hospitalar onde o dr. Janz, médico analista dos hospitais de Lisboa em serviço militar nesta cidade, tratou do importante problema da penicilinaterapia.
O militar para o qual se recebeu, por via aérea, a penicilina, continua melhorando.

20.JANEIRO.1945
Pág. 1 – UMA BOA NOVA: VAI HAVER PENICILINA PARA TODOS OS PORTUGUESES – [Esta notícia relaciona-se apenas indirectamente com Cabo Verde. Ver DP, 16.Janeiro.45, p. 8.] uma notícia agradável para os leitores: vai haver Penicilina para todos os portugueses, quer habitem nos continente, nas ilhas adjacentes ou em terras do Império.
 (…) O Laboratório Sanitas, conhecida organização industrial farmacêutica, fechou contrato com os impor-tantes Laboratórios Shenley dos Estados Unidos para o fornecimento das quantidades necessárias ao País.
(…) Como se sabe, a Penicilina tem sido fornecida em doses limitadas à Cruz Vermelha Portuguesa que tem feito a sua distribuição de acordo com uma Comissão de Médicos que avalia da urgência e especial indicação do tratamento pela maravilhosa descoberta do sábio inglês Alexandre Fleming. (…)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

[0275] "Crónicas do Norte Atlântico", novo espaço no jornal "Terra Nova"



A partir de Setembro de 2012, iniciou-se este novo espaço no jornal "Terra Nova", de S. Vicente de Cabo Verde. Trata-se de uma página cujos temas terão como principal sujeito assuntos do arquipélago, passados nele ou com ele relacionados mas vividos em Portugal, Estados Unidos da América ou até, mais esporadicamente, noutras latitudes. Numa perspectiva histórica, recordaremos pois as vivências das gentes das ilhas de Cabo Verde na sua relação única com o mundo. 

As CAN sairão cerca de um mês depois da sua edição em papel no blogue parceiro Esquina do Tempo e mais ou menos uma semana a seguir, aqui. Eis então a crónica inicial, desta feita alusiva às comemorações da primeira "Festa da Árvore" que teve lugar na cidade da Praia, em 1914. comente, não se limite a ler 




Crónica de Setembro.2012

1 DE MAIO DE 1914: A PRIMEIRA “FESTA DA ÁRVORE” EM CABO VERDE

A árvore sempre foi motivo de simbolismo para os povos. Em geral, personificando a vida em constante mudança mas podendo apresentar outras sentidos, segundo a sua adopção por religiões, grupos filosóficos ou políticos diferentes. Não vem ao caso discorrer sobre o tema, mas podemos recordar que é durante a Revolução Francesa, nos finais do século XVIII, que o cerimonial alusivo à árvore se populariza com a plantação das “árvores da Liberdade” – por sua vez lembradas dos “postes da Liberdade” erigidos nos Estados Unidos da América após a guerra da independência. Embora significando purificação, renovação e estabilidade, por exemplo, muito mais se associou a árvore a ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, divisa principal do movimento revolucionário. E, logo assim, próximos dos ensinamentos das cartilhas maçónica e republicana.


Julius Sterling Morton
Mas a generalização do “Dia da Árvore” deu-se mais concretamente na cidade de Nebrasca, no estado americano do mesmo nome, em 1872. O criador do “Arbor Day”, o jornalista Julius Sterling Morton, pioneiro do povoamento desse estado (aí se instalou em 1854), proveniente de Detroit, onde havia vivido rodeado de árvores – era grande amante da natureza. A primeira plantação oficial deu-se por sua iniciativa a 10 de Abril de 1872 e foi oficializada pelo Nebraska State Board of Agriculture. Julius Sterling ficaria a partir daí conhecido como o “pai do Dia da Árvore”.

Em Portugal, a ideia corporizou-se em 1907, no ocaso do período monárquico mas associada ao ideário republicano, sob a designação de “festa patriótica” ou “festa da árvore”. A primeira cerimónia do género teve lugar no Seixal, por iniciativa do farmacêutico, pedagogo, maçom e político republicano António Augusto Louro, em 26 de Maio desse ano. Da iniciativa bastante se sabe, devido a investigação passada a livro por um grupo de professores da escola do 2.º e 3.º ciclos Dr. António Augusto Louro (Arrentela, Seixal), com o título “António Augusto Louro e a Educação Cívica” (ed. 2002). E da primeira realizada em Cabo Verde (Praia, ilha de Santiago) também, bebida por nós no jornal “O Futuro de Cabo Verde”, de 7 de Maio de 1914 – curiosamente, com semelhanças entre ambas, nomeadamente ao terem as duas os alunos das escolas como actores centrais. A festa, que se realizara no dia 1, teve honras de três longas colunas no periódico republicano surgido exactamente um ano antes e que logo no primeiro número inseriu um texto de Albino Forjaz Sampaio sobre “os grandes vultos da República” António José de Almeida, Afonso Costa e Brito Camacho, com fotografias dos ditos…

Ant.º Aug.º Louro - Pint. de Franc.º Bronze
A comemoração desenrolou-se a partir das 15h00 (no Seixal também de tarde, mas com início pelas 13h30). A essa hora, entrou na praça do Albuquerque, “vistosamente ornamentada” (pelos senhores Sucena, Barão e António Pereira), o cortejo escolar que saíra do edifico escolar no largo do Guedes (por algum tempo com a designação de governador João da Mata Chapuzet e actual largo de Luís de Camões), depois de ter passado pela rua Serpa Pinto. O batalhão escolar encabeçava o desfile. Seguiam-no diversas individualidades: António Arteaga, oficial maior da Secretaria Geral do Governo (em representação do Secretário Geral Inspector de Instrução Pública, ausente da capital da colónia), o presidente da Assistência Escolar, as professoras Ermelinda Rosa Chor (sic) e Luísa Vieira de Vasconcelos, os professores oficiais e municipais João Rodrigues de Carvalho (noutro local designado como José), Alexandre de Almeida e José Barbosa e alunos e alunas das escolas oficiais e municipais e das de aprendizagem com os respectivos mestres de carpintaria e cantaria. Já na praça do Albuquerque, o cortejo dirigiu-se para a rua central da mesma, onde os intervenientes tomaram os lugares que lhes estavam destinados. Chegou entretanto o governador Joaquim Pedro Vieira Júdice Biker, acompanhado dos ajudantes de campo e do secretário particular.

Praça do Albuquerque, cidade da Praia
O primeiro discurso, dos três pronunciados, esteve a cargo de António Arteaga. Curiosamente, apesar do cargo oficial do orador, a sua alocução não foi anódina. Dela, vejamos o seguinte excerto: «Homens que me escutais e crianças que amanhã sereis homens, fixai bem em vossa memória que esta terra em que nascestes e onde viveis, tem sido muitas vezes assolada pelo maior flagelo que pode afligir a humanidade: - a fome! Fixai bem no vosso espírito que para evitar tamanha calamidade é necessário regularizar as chuvas nestas ilhas, para que possa nascer e medrar o milho, o feijão, a batata, a mandioca, que são a alimentação do povo, e para que possa nascer e crescer o pasto que é a vida dos gados, uma das riquezas destas terras. Para isso é preciso que haja arvoredo, mas muito arvoredo, por todos esses montes e vales, e para existir arvoredo é necessário que se plantem árvores e que elas sejam protegidas.» Após mais algumas considerações, incentivava os restantes cidadãos do arquipélago a seguirem o exemplo da Praia «para que todos os anos se [realizasse] a festa da árvore em todas ilhas, em todos os concelhos, em todos os lugarejos desta província» e rematava com dois vivas: um a Cabo Verde e outro à República (mas nenhum a Portugal…).

De seguida, foi a vez do professor José Barbosa que dissertou sobre o grande interesse da árvore em vários aspectos, tantos que segundo ele «se não fosse por temor de incorrer nas iras de muitas e várias gentes muito tementes a Deus, dir-vos-ia que em lugar de vos descobrirdes em face de uma porta de igreja, aberta ou fechada, o fizésseis perante uma árvore, por tudo o que de belo, de útil e agradável representa para a humanidade.» Neste caso, os sinais de anti-clericalismo e malquerença à religião católica, próprios da República inicial, não podiam ser mais óbvios…

O professor João (ou José) Rodrigues de Carvalho encerrou a parte oratória com um discurso onde agradecia a presença do governador e enaltecia o papel insubstituível da árvore que para ele tinha sobretudo «a alta significação de ser a matéria-prima empregada na construção da frota» que descobrira o arquipélago.

Findos os discursos, foram agraciados com um corte de fazenda para fato ou para vestido os alunos e as alunas melhor classificados de cada escola. Eram eles Manuel Santos Lopes, Bazílio Lopes, Lucas Corrêa, João Lopes Rodrigues, Ambrósio Reis Borges, Manuel Amadeu dos Santos, Dulce Martins e Maria Júlia Ferreira. Chegou depois o momento mais aguardado: a plantação de árvores na praça do Albuquerque, uma por cada escola. As árvores foram oferecidas por Augusto José Baptista e por José Antunes Oliveira, da sua propriedade de S. Martinho. Tal como acontecera no Seixal, cantou-se o hino maçónico “Sementeira” (música de Júlio Cardona e versos de Luís Filipe da Matta), aqui pelo batalhão escolar. Foi então a vez do desporto. Houve ginástica sueca e várias corridas, tendo esta parte terminado com evoluções do batalhão escolar comandado por Mário Wahnon.

Praça do Albuquerque (outro aspecto)
A festa continuou à noite. A partir das 20h00, na bem iluminada praça do Albuquerque, tocava no coreto uma charanga dirigida por Valentim Lopes Tavares. Diz “O Futuro de Cabo Verde” que «a alegria era imensa no povo ao ouvir música, o que há muitos meses não tinha ocasião de gozar». Pelas 21h00 começou o fogo de artifício que num dado momento fez surgir em letras coloridas um “Viva a República”… e pelas 22h00 a festa estava finalmente terminada.

No longo texto assinado pela comissão, ainda se teciam mais algumas considerações sobre o assunto: «Abriu-se o exemplo do culto da árvore na capital da província com a festa realizada em 1 de Maio, festa que há-de repetir-se nos anos seguintes com maior brilho e luzimento. Que o exemplo seja seguido por todas as outras ilhas de Cabo Verde e que a Festa da Árvore se realize, como disse o sr. António Arteaga, em todas as ilhas, em todos os concelhos, em todas as freguesias e em todos os lugarejos desta província, são os nossos desejos.»

Baseada não só em questões de interesse natural, ecológico e económico, mas também com fins de aplicação da teoria filosófica e ideológica maçónica e republicana, esta primeira festa da árvore na Praia (que seguiu de perto as da mãe-pátria, pois os anos próximos posteriores à implantação da República foram de auge destes cerimónias em Portugal) ficou pelo menos para a História como um forte alerta que pretendeu inculcar nas gerações jovens o culto da árvore, ainda hoje raro bem, por demais apetecível (e de obrigatória multiplicação) em Cabo Verde.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

[0274] Ainda a defesa de Cabo Verde durante a II Guerra Mundial

TROPAS EXPEDICIONÁRIAS PORTUGUESAS A CABO VERDE NO PERÍODO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

6 - A actividade militar e as suas múltiplas contingências (2.ª parte)         comente, não se limite a ler 

Adriano Miranda Lima
Na 1.ª parte da narrativa sob este subtítulo, procurou-se reconstituir o que foi a acção das forças de infantaria instaladas na ilha de S. Vicente, constituídas precisamente pelo Batalhão de Infantaria 5, pelo Batalhão de Infantaria 7 e pela 3.ª Companhia de Atiradores do Batalhão de Infantaria 15, este destacado para a ilha de Santo Antão, mas ficando aquela sua subunidade em S. Vicente.

Perguntar-se-á agora que actividade operacional terá sido desenvolvida em Santo Antão e no Sal. Em relação a estas duas ilhas, poucos testemunhos pessoais disponho que me permitam sequer um esboço de reconstituição daquela actividade, já que, como anteriormente foi referido, não me foi possível encontrar nos arquivos militares o pormenor descritivo dos planos de defesa das nossas ilhas. Mas o despacho de 12 de Agosto de 1942 do subsecretário de estado da guerra, Fernando dos Santos Costa, estabelecia o seguinte, no concernente às ilhas de Santo Antão e Sal:

"d) Para a Ilha de Santo Antão não poderão ser deslocados da Ilha de S. Vicente efectivos superiores a uma companhia de atiradores reforçada com um pelotão de metralhadoras pesadas e uma secção de morteiros de 81 mm. Visto não ser possível reunir nesta ilha efectivos que garantam a sua defesa integral em todas as circunstâncias devemos apenas contentar-nos com a vigilância do canal em frente do Porto de S. Vicente, tendo como base principal a ocupação de CARVOEIROS.
e) A guarnição da Ilha do Sal será constituída por um Regimento de Infantaria a dois batalhões e uma bateria A.A. [antiaérea] de 40 mm provisoriamente a 4 peças, mas elevada a 6 logo que o permitam as disponibilidades em material. Não sendo possível por dificuldades de reabastecimento ou de vida manter na ilha os dois batalhões do regimento deve ali ficar apenas o comando do regimento e um batalhão transferindo-se o outro batalhão para a Ilha de Santo Antão, onde permanecerá durante oito meses, recolhendo então a S. Vicente todas as tropas da guarnição desta Ilha.
Nesta hipótese o conceito de ocupação da ilha de Santo Antão deve prever a vigilância da sua zona Norte e Noroeste e a defesa a todo o custo da sua zona Sul. Em contrapartida o conceito de defesa da ilha do Sal deve modificar-se no sentido de ser apenas defendido a todo o custo o planalto da zona do aeródromo vigiando-se com elementos não superiores a um pelotão de atiradores cada um dos portos de Santa Maria e Pedra Lume."

Ora, este documento corresponde mais propriamente àquilo que se designa na esfera castrense por “directiva de planeamento”, documento que estabelece as linhas gerais de acção e a intenção do comandante, neste caso concreto, do decisor político, que por acaso era militar (major nessa altura). Porém, causa-me certa estranheza que este despacho seja datado de 12 de Agosto de 1942, quando a totalidade das forças militares, que foram embarcando fraccionadas em contingentes, já estava concentrada em Cabo Verde em Janeiro de 1942. Por outro lado, o que o documento reporta parece não condizer com o que na realidade se passou em Santo Antão no que respeita a efectivos. De facto, há testemunhos pessoais credíveis e confirmados por imagens fotográficas que o contradizem. Com efeito, embora talvez no início se destinasse também a S. Vicente, o Batalhão de Infantaria 15 acabou por ser destacado para Santo Antão (menos a sua 3.ª Companhia de Atiradores), e não somente uma companhia, como prescreve o despacho. Será que um estudo mais aprofundado da situação conduziu a uma reavaliação da decisão, com base em factores e condicionalismos que não terão sido considerados à data da formulação do despacho em causa?

Foto pertencente e autorizada pela família do capitão Paiva Nunes. (este oficial é o segundo da direita para a esquerda). Paiva Nunes escreveu nas costas da foto o seguinte: «Em Porto Novo, 5/4/942; tenente Sérgio, alferes Curto, eu, e capitão Mota Carmo (usando bigode); fotografia tirada à porta do barracão onde está o comando e o alojamento dos oficiais». (clique para ampliar)

Lembre-se que o capitão Mário de Paiva Nunes era o comandante da Companhia de Formação e Trem e o capitão Miguel da Conceição Mota Carmo o comandante da 1.ª Companhia de Atiradores. Atendendo à ordem numérica das companhias de atiradores, conclui-se que o Mota Carmo era o mais moderno (em termos de antiguidade) no posto de capitão. Lembra-se que este oficial viria a desempenhar o cargo de administrador do concelho de S. Vicente, terminada a sua missão nas forças expedicionárias.

O despacho do subsecretário de estado da Guerra já faz todo o sentido quanto às preocupações críticas a ter em conta na defesa da ilha de S. Antão, e é nessa conformidade que a Ordem de Operações n.º 1, do QG das Forças Expedicionárias (1), estabelecia a seguinte missão: “ocupar a povoação de Porto Novo, mantendo a posse da água de abastecimento e a vigilância do canal, em especial na zona correspondente ao Porto Grande de S. Vicente”. Deste modo, as forças instaladas na ilha devem ter guarnecido em primeira prioridade a sua região sul, entre o Porto Novo e Tarrafal de Monte Trigo, região que confina mais proximamente com o canal entre as duas ilhas vizinhas. No entanto, e em obediência ao despacho de Fernando dos Santos Costa, as zonas norte e noroeste da ilha, designadamente, entre Janela, Paul, Ribeira Grande, Ponta de Sol e Cruzinha, terão sido vigiadas, patrulhadas ou mesmo ocupadas descontinuamente por forças de efectivo pelotão. Há testemunhos orais que referem a presença de forças militares destacadas temporariamente nessas localidades tidas como de 2.ª prioridade. A actividade operacional terá sido em tudo idêntica à desenvolvida em S. Vicente, consistindo em organização de posições defensivas e em marchas de deslocamento em direcção às posições mais distantes, o que, tendo em conta a orografia da ilha, foram certamente difíceis e desgastantes.

O capitão Paiva Nunes e oficiais subalternos do BI 15. Observe-se o pormenor da mulher cabo-verdiana encostada à varanda do barracão e do atrelado militar atrás dos oficiais, que pode ser de água ou sanitário. Foto pertencente e autorizada pela família do capitão Paiva Nunes. (clique para ampliar)

Em relação à ilha do Sal, menos provido estou ainda de elementos sobre o seu dispositivo de defesa, mas aqui quase se poderá dizer que o despacho do subsecretário de estado da Guerra dispensará grande esforço de dedução, atendendo a que as características físicas da ilha e a sua fraca demografia àquela época não deixavam margem para uma concepção táctica muito divergente das linhas consignadas naquele documento. O único ponto crítico da ilha a justificar uma defesa a todo o custo era, sem dúvida, a zona do aeroporto (ou aeródromo). Calcule-se o quão difícil terá sido a vida das tropas face à secura extrema da ilha, à falta de água e à escassez de habitantes e, concomitantemente, de recursos locais. É possível que os militares do Sal tenham sofrido em maior escala as agruras da sede e de uma alimentação possivelmente escassa. Não é por acaso que se registou uma elevada taxa  de morbimortalidade entre os militares. Não disponho de elementos que confirmem a rotação das forças dos dois batalhões, mas a intenção expressa nesse sentido pelo subsecretário de estado da Guerra demonstra a preocupação da hierarquia superior com as más condições de vida então existentes na ilha.

Pergunta-se agora, e quanto ao papel da artilharia? Sendo óbvia a missão que competia às duas baterias de artilharia antiaérea de Monte Sossego (equipadas com peças de 94 mm e 4 mm), olhemos agora para as duas baterias de artilharia de costa instaladas, respectivamente, no Morro Branco e em João Ribeiro. Um projecto de Plano de Defesa do Porto Grande de S. Vicente elaborado em 1939 (1) incluía a seguinte análise: “Se examinarmos o Porto Grande, vemos que qualquer navio para o alcançar terá de entrar e caminhar por qualquer dos canais formados pela ilha de São Vicente com a de Santo Antão. O Porto Grande poderá começar a ser batido pela artilharia de qualquer vaso de guerra, antes de instalar baterias de costa que forcem esse vaso a manter-se a uma distância tal que a sua artilharia não possa alcançar o objectivo, ou a impedi-lo de forçar os canais e vir a atacar directamente o Porto”. Este estudo foi feito antes da decisão de incorporar na força expedicionária duas baterias de costa, pelo que só por uma questão de curiosidade histórica ele é aqui referido. Quanto aos “dois” canais entre as duas ilhas, depreende-se que o autor se queria referir à cada uma das suas entradas, designadamente, a nordeste e a sudoeste.

Fosse como fosse, o problema da defesa do porto viria a ser resolvido com a instalação das duas citadas baterias. O general reformado Arménio Nuno Ramires Oliveira, que, no posto de major foi chefe de estado-maior do Comando Territorial Independente de Cabo Verde, prestou-me a seguinte informação: as 3 peças da bateria de Monte Cara foram retiradas de uma fragata inglesa e eram de calibre 120 mm; as da bateria de João Ribeiro foram retiradas do couraçado português Vasco da Gama, adquirido em 1876, remodelado em 1901 e abatido ao efectivo em 1936. Aquele oficial general já não se recorda do calibre dessas peças, mas, por consulta através da net (www.areamilitar.net), e considerando o calibre do armamento daquele couraçado (2 peças de 203mm, 1 de 152mm, 1 de 75mm e 8 de 47mm), crê-se que em João Ribeiro estiveram (e actualmente estão os restos) peças daqueles diferentes calibres, sabendo-se, como nos mostram algumas fotos, que o material é ali diversificado.

Refira-se que a escolha das posições para essas duas baterias de costa não podia ter sido mais judiciosa, pois foram instaladas em locais opostos da entrada da baía, permitindo assim a execução do chamado “tiro flanqueado” contra meios navais que atacassem o porto. Resta saber qual seria a sua capacidade relativa face ao poder de fogo dos meios navais invasores. Em todo o caso, os nossos meios nunca seriam suficientes para resistir a um invasor bem apetrechado, sendo certo que a capacidade dessa artilharia de costa era, no seu conjunto, inferior em calibre e em número à de qualquer couraçado ou cruzador alemão que incorporasse o ataque ao porto. Repare-se no armamento e possibilidades de qualquer dos seguintes vasos alemães da época:

Couraçado "Tirpitz": armamento principal: 8 canhões de 380 mm/L45 (4 torres duplas); armamento secundário: 12 canhões de 150 mm/L55 (6 torres duplas); armamento Antiaéreo: 16 canhões de 105 mm/L65 (8 torres duplas), 16 de 37 mm/L83 (8 montagens duplas) e 18 simples de 20 mm; meios aéreos: 4 hidroaviões Arado Ar 196; tripulação: 2300 homens. (clique para ampliar)

Cruzador de batalha "Scharnhorst": armamento principal: 9 peças de 280 mm; 12 peças de 150 mm; armamento antiaéreo: 14 peças de 105mm; 38 peças de 20mm; outro armamento: 6 tubos lança-torpedos de 533 mm; meios aéreos: 4 hidroaviões Arado; tripulação: 1968 homens. (clique para ampliar)

Assim, tem de se reconhecer que, de facto, as forças de defesa de Cabo Verde não teriam capacidade para resistir por muito tempo a forças alemãs (ou outras) que quisessem invadir as ilhas com o apoio de vasos de guerra e, eventualmente, de meios aéreos instalados em Dakar (este território e outras colónias francesas da África Ocidental ficaram à disposição da Alemanha depois da capitulação da França). Contudo, num cenário desses, os aliados não iriam certamente ficar impávidos e serenos, porque o interesse era também deles, não obstante a neutralidade de Portugal.


Não é possível dizer se a actividade reportada nestas duas fotos em cima (colhidas no blogue Luís Graça & Camaradas) é um exercício de fogos reais ou uma demonstração de fogos reais das baterias antiaéreas de Monte Sossego. A ser exercício, a guarnição teria de estar, em princípio, equipada para o combate, o que não parece ser o caso. Assim, presumo que se trata de uma demonstração de fogos reais ou apenas uma apresentação do material aos oficiais trajando farda branca, que podem estar de visita às baterias de Monte Sossego. Dado que os oficiais do exército também usavam a farda branca nas colónias, não é possível dizer se os presentes são do exército ou da marinha de guerra. Mas se é um francalete o que o oficial mais à direita da segunda foto tem a segurar o boné, então é possível que sejam da marinha de guerra, pelo menos, em parte. Terá sido a guarnição de um navio de guerra que foi visitar a tropa de Monte Sossego? (clique para ampliar)

Aspecto actual e parcial do que foi a bateria de costa de João Ribeiro. A peça pequena em posição mais adiantada pertencia, segundo o general Ramires Oliveira, a uma bataria de salva de ordenança do Porto Grande. Eram duas e salvavam a todos os navios de guerra, nacionais e estrangeiros, que demandavam o porto. Foto publicada no blogue Luís Graça & Camaradas. (clique para ampliar)

Restos das duas baterias de Monte do Sossego. Foto publicada no blogue Luís Graça & Camaradas. (clique para ampliar)

Exercício de tiro antiaéreo com metralhadora pesada Breda no aquartelamento do BI 5 em Lazareto. Foto publicada no blogue Luís Graça &Camaradas. (clique para ampliar)

Resta acrescentar que “a missão das forças militares baseou-se na previsão de que a acção de um possível inimigo fosse inicialmente exercida por meios navais e aéreos, seguida de uma ou mais tentativas de desembarque de forças terrestres. A preparação para o combate das forças passava pelas seguintes atitudes:

─ Estado de Vigilância: todas as unidades mantinham nos quartéis os quadros necessários para poderem marchar uma hora depois de receber aviso, devendo cada batalhão ter uma companhia pronta no prazo de meia hora;
─  Estado de Alerta: observação e vigilância intensificadas, unidades nas posições de alerta duas horas depois do aviso, defesa antiaérea em posições de combate, controle da circulação nas estradas, condicionando o movimento de civis, e extinção de luzes nos pontos sensíveis;
─  Estado de Alarme: observação e vigilância em actividade plena, dispositivo de defesa instalado, circulação nas estradas reservada à actividade militar, transportes concentrados e abrigados nas posições de espera e extinção total de luzes (3).

Foi nestes termos que as forças expedicionárias realizaram, em princípio e como é habitual, exercícios e manobras de defesa a vários níveis. Poderiam os exercícios ser de âmbito local (ilha) mas no caso de manobras militares é natural que fossem em conjunto com todas as forças destacadas no arquipélago, numa simultaneidade de acções integradas que testariam a sua capacidade de resposta perante várias e prováveis hipóteses de invasão e ocupação do território.

Tomar, 27 de Outubro de 2012
Adriano Miranda Lima

(1) História do Exército Português (1910-1945), p. 453.
(2) Arquivo Histórico Militar – FO/029/10/365/236.
(3) História do Exército Português (1910-1945), p. 451.

Continua...