sábado, 19 de junho de 2021

[4950] Mais um conto, também possivelmente inédito, de Viriato de Barros (ver post 4941)


NOTA: O conto de Viriato de Barros exibido no post 4941 é um dos mais vistos nos últimos tempos no PdB - inexplicavelmente, com apenas um comentário, tal como este, apesar do óbvio interesse de ambos.

ELOS DE LIGAÇÃO  (2)

Mateus percorria as ruas de Boston numa incrível solidão interior. Não o incomodava o risco de se perder num meio desconhecido. Perder-se de onde? Perder-se de quê, de quem? Naquele momento irmanava-se a todos, num sentimento de unidade total com todos com que se ia cruzando. Homens, mulheres, crianças. Uma mulher interessante, atraente passou por ele. Olhou para ela sem reservas e a mulher sorriu. Mateus retribui-lhe o sorriso. Que estaria ela a pensar? Possivelmente nunca mais voltaria a vê-la, mas algo fica de cada um no outro por momentos quando se sorri assim um para o outro. O que leva duas pessoas desconhecidas a sorrirem dessa forma… Raro, mas acontece. Quem sabe, se se encontrassem de novo, talvez até conversassem Talvez se criasse entre eles um elo de confiança. Não valia a pena conjecturar, fantasiar. Naquele momento apenas queria reencontrar os caminhos de um rumo perdido nos percursos do erradio.

Foi-se aproximando da estação de metro de Government Center. Lá dentro, um sujeito bem-disposto, entre os trinta e oito e os quarenta anos, tocava viola e cantava

                                   “You are always on my mind…” .

Não, não fazia lembrar nada Willie Nelson, em nada absolutamente. Tinha uma caixa no chão para dentro da qual as pessoas iam deitando moedas e notas.

- Some people can get away with anything…, comentou uma mulher que, também, tinha ali parado para presenciar a cena - Why bother to get a job?

Quem sabe se era assim mesmo que o homem da viola pensava? Trabalho para quê, se assim se desenrascava?  Possivelmente, não exigia mais da vida. Ou talvez a própria vida o tivesse atirado para aquela saída. Quem sabia afinal da vida daquele homem? 

Tirou algumas moedas do bolso e deixou-as cair dentro da caixa. O tocador de viola agradeceu com um aceno e continuou a cantar, enquanto Mateus seguia o seu caminho e procurava a linha que o levava até Maverick Station. 

Fora da estação, o ambiente já lhe parecia familiar, de tanto circular naquele bairro. A maior parte das pessoas que ali viviam eram hispânicas, como eram hispânicos muitos dos estabelecimentos comerciais, sobretudo os pequenos restaurantes, onde serviam “burritos”, “tacos” e outras comidas típicas. Entrou num minimercado e, depois de alguma pesquisa, encontrou um pacote de alimento congelado, daqueles que se aquecem em micro-ondas, apanhou um pacote de pão, pagou e saiu.

Ao aproximar-se da esquina da rua que o conduzia até à casa dos seus amigos onde estava hospedado, viu um casal de meia-idade aí parado com um ar de quem procurava algo. Olhavam para uma rua, depois para outra de um dos cruzamentos da praça e falavam um com o outro. O que aconteceu em seguida foi uma espantosa coincidência, daquelas que contadas deixam dúvidas sobre a sua veracidade. A verdade, porém, é que foi precisamente naquela esquina de uma das ruas de East Boston, que Mateus se encontrou casualmente com aquele casal que ele, imediatamente, identificou  como sendo da sua ilha natal pela maneira de vestir, pelo modo de estar e um certo quê instintivamente perceptível logo à sua intuição. E aquele lenço azul claro na cabeça, amarrado à maneira da gente do campo da Brava e aquela saia cor-de-rosa, mais a blusa lilás de um tecido que parecia ser de seda não podiam enganá-lo. Assim que se aproximou deles, a mulher perguntou-lhe no seu inglês se ele sabia onde é que ficava um serviço de seguro social que havia ali perto. Em vez de lhes dar a informação que pediam, que ele tinha, disse-lhes em crioulo, à procura de uma confirmação do seu palpite. 

- Nhos pode papia cu mi na criolu…”

Estabelecido o reconhecimento mútuo da sua origem comum, o diálogo assumiu aquele à vontade natural entre patrícios, e a conversa tomou outro rumo. De onde eram lá na ilha, quem eram as respectivas famílias e assim por diante. Mas a coincidência mais feliz para Mateus era ter descoberto no decorrer da conversa que aqueles seus conterrâneos eram inquilinos de uma prima sua que vivia numa localidade não muito longe dali, do outro lado do rio Charles. Quando se despedirem deixaram a Mateus o seu endereço e número de telefone. Domingas, sua prima, tinha alugado àqueles amigos e patrícios o rés-do-chão da sua casa, ficando ela, o marido e o filho a morar no andar de cima.

Naquela mesma tarde Mateus telefonou à prima e dentro de pouco tempo o marido dela foi buscá-lo no seu carro à casa onde residia em Boston.

Mateus não via Domingas desde a sua passagem por Lisboa alguns anos antes, quando tinha emigrado para a América. Tinha ficado em casa dos seus pais durante bastante tempo, enquanto aguardava que a chamassem dos Estados Unidos. Não tinha mudado muito: magra, de modos comedidos, sorria pouco e tinha um timbre de voz forte quase sensual, que contrastava com os seus modos contidos e brandos. Sem elevar o tom de voz, e talvez por isso mesmo, mantinha esse timbre, o que a tornava envolvente ao falar com as pessoas. Não falava muito, mas escutava com muita atenção o que lhe dizia.

- Sabes, Mateus, passei um período muito difícil durante os primeiros anos da minha vida na América. O meu casamento correu mal, perdi um filho. Perdi interesse pela vida…

Domingas interrompeu ali o seu desabafo e ficou a olhar absortamente para um ponto vago da mesa onde estavam sentados.

- Sinto muito - foi a única coisa que Mateus soube dizer, no seu constrangimento.

Domingas levantou os olhos para o primo e continuou, enquanto como um gesto da cabeça apontava para o marido aparentemente entretido a arrumar alguns artigos num armário da sala.

- Esse homem foi a minha salvação. Não sei o que seria de mim se não o tivesse encontrado…

Mateus voltou a Chelsea duas vezes antes de deixar Boston. Da última vez foi para se despedir de Domingas e da família.

- Vou-me embora para a semana. Vim despedir-me de vocês. 

- Já para a semana?! Podias ficar connosco mais algum tempo. -, lamentou Domingas.

- Não posso ficar mais tempo. Acho até que já fiquei mais tempo do que previa.

- Estamos muito tristes desde ontem…

- O que é que aconteceu? - perguntou Mateus apreensivo.

- O meu filho foi espancado no meio da rua. Ele que não se mete com ninguém. Como sabes ele dá aulas de Educação Física numa escola de Chelsea.

- Mas como é que foi isso? – quis saber Mateus.

- Foi um grupo de porto-riquenhos. Ele ia a pé, quando sem mais nem menos parou um carro ao lado dele, saíram de lá uns indivíduos que se dirigiram a ele e começaram a dar-lhe socos e pontapés. Ele defendeu-se, mas eles eram três. Deram-lhe tanta pancada que ele caiu para o chão. Depois de ter caído ainda lhe deram pontapés na cara, deixando-o estendido no chão.

- Mas porque é que lhe bateram? O teu filho conhecia-os de algum lado? 

- Não, ele diz não os conhecer de lado nenhum, e não faz ideia por que é que o espancaram daquela forma.

- É muito estranho. Ele queixou-se à polícia?

- Queixou-se sim, vão procurar saber quem foram.

Domingas interrompeu o seu relato por alguns instantes, começando a chorar. Quando conseguiu conter o choro, olhou para o primo. O seu rosto reflectia perplexidade e revolta.

- Já vivemos em Chelsea há mais de 15 anos e nunca tivemos qualquer problema com ninguém.

- Não envolve história de mulheres? 

- Não, se fosse, ele contava-me. Conheço o meu filho. O que eu sei é que nunca mais vou sentir-me tranquila aqui. 

- Porque é que não se mudam para outro lugar? 

- Custou-nos muitos sacrifícios e trabalho para ter esta casa. E este sítio é sossegado. Temo-nos dado bem aqui e o Jorge tem um bom emprego. Toda a gente gosta dele na escola onde trabalha.

- Sim, mas pelos vistos nem toda a gente parece gostar dele.

- Coisas dessas acontecem em qualquer parte da América. Fugir para quê? Fugir para onde? O Jorge queixou-se à polícia, pode ser que descubram quem é aquela gente. Têm as suas guerras entre eles e ajustam as contas assim, quando não é pior. Podem até ter confundido o meu filho com outra pessoa. São muito parecidos connosco. Ou então embirrado com ele por qualquer razão.

- Tu é que sabes. Conheces este meio melhor do que eu.

Conversaram ainda durante algum tempo. O marido da Domingas pouco dizia. Mas a certa altura interveio.

- Sabes, Mateus, eu, por mim, era em Portugal que vivia. Foi sempre o meu desejo, mas nunca tive possibilidade de arranjar trabalho lá. Mas não desisto da ideia de um dia ir para lá viver. A Domingas é que prefere ficar cá. 

- Sabes, Mateus, eu tenho a minha vida por cá. Já me acostumei, tenho o meu filho que não pensa em sair desta terra, tem um emprego bom, as pessoas da minha família estão todas cá, incluindo a minha irmã, que mora aqui perto, em East Boston, e não pensa em sair. Não vejo o que é que vou fazer em Portugal...

Mateus não insistiu no tema da conversa.

- Bem, tenho mesmo que ir. Fiquem bem por cá. Oxalá um dia vocês decida ir até Lisboa. Era bom ver-vos por lá…

Mateus despediu-se dos seus parentes. Custava deixá-los num momento da vida deles como aquele, pois tinha consciência de que tão cedo não voltaria a vê-los.

Tinha quase que um compulsivo sentimento de dívida por pagar para com os seus parentes emigrados nos Estados Unidos. Dívida de deserção, dívida de não ter continuado com eles, não os ter acompanhado na sua luta, no seu caminho, que também era o dele. O seu afastamento modificou-o em muitas coisas, obrigou-o a adaptações mutiladoras de si próprio. Ao atingir a maturidade necessária, equivalente à capacidade de autonomia nas suas decisões, podia tê-lo feito. Podia ter retomado o seu caminho. Não o fez. Deixou-se arrastar pela sedução de outros caminhos. 

Nos tempos da sua infância, brincava com os outros meninos nas ribeiras da ilha do Fogo, secas ao longo de quase todo o ano. Mas no tempo das chuvas corria nos seus leitos água por vezes em torrente. Nessas alturas eram surpreendidos por vezes pelas águas que surgiam subitamente a montante, quando menos esperavam. Corriam em pânico para as vertentes para se livrarem da enxurrada. Então a salvo, livres do perigo, sentaram-se no topo da encosta a ver a água correr, lamacenta, implacável, levando tudo consigo no seu curso para o mar. A incomparável excitação do perigo, a alegria serena de se ver a salvo, contemplando o correr da água o rumor dos cascalhos por onde passava. A Ribeira de Tongon, a Ribeira de São Lourenço. Perder o que fica disso em nós seria como perder algo da nossa própria alma.

Nas suas deambulações pelas ruas de Boston, New Bedford, Providence e Pawtucket, não podia senão reavivar a memória dessas sensações. A Ilha Brava, sua ilha materna, onde só viveu os anos sem memória da sua infância, até aos dois anos, e um único ano, oito anos mais tarde, um ano de regresso à realidade mítica das histórias ouvidos da sua mãe, mas também do seu pai, um ano de fixação de raízes numa terra que nunca, afinal, tinha abandonado. Essa era a sua realidade, essa era a sua marca, quer estivesse lá, quer vivesse na América.

A sua visita a Boston e às outras cidades de Massachussets confirmaram-lhe essa convicção. Até os nomes das ruas lhe eram familiares: Water Street, Purchase Street, Pleasant Street de New Bedford, Tauntan Avenue, que tinha ficado nos seus ouvidos como Tantim, assim como Accushnet, ficara como Akuxineti.

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Mateus voltou à ilha. Mais uma vez, depois de uma ausência, suficientemente longa. para ter perdido o andamento das coisas na terra. Quase tudo tinha emigrado, na sua maioria para a América. Depois da independência de Cabo Verde deu-se um autêntico êxodo, em levas sucessivas. Lembrou-se de um comentário que ouvira de um indivíduo sentado num banco da Praça Nova de São Vicente, ao ouvir, através do altifalante da estação de rádio local anunciando os discos dedicados aos ouvintes. “Vamos agora ouvir” - seguia-se o título da música – “dedicado por fulano da Ilha Brava a sicrano, a caminho da América…»

- Lá vai mais um reaccionário… a caminho da América. -

Ao ouvir o comentário, não pôde deixar de pensar nos parentes e patrícios com quem tinha estado em Massachussets, muitos deles emigrados nessa altura. Muitos possivelmente nunca teriam saído da sua ilha, se não tivessem sofrido as pressões políticas daquele período, fomentadas e estimuladas, directa ou indirectamente, pelos novos donos do poder político e seus esbirros e denunciantes, que muitas vezes o eram mesmo sem que lhes tivessem solicitado essas atribuições.

A viagem de regresso à sua ilha foi diferente desta vez. Num voo de cerca de vinte minutos foi de Santiago para o Fogo, onde passou dois dias em São Filipe, hospedando-se numa pequena pensão que lhe transmitiu. durante aqueles dias. uma sensação de conforto e calma, e a confiança de se encontrar em porto seguro. Nenhuma outra pensão ou hotel onde tinha estado antes criou nele esse estado de espírito e tranquilidade. Os que vivem o seu dia-a-dia na ilha do Fogo em permanência possivelmente não avaliam o que sente quem, tendo ali nascido ou vivido a sua infância, regressa depois de ter passado muitos anos fora.

Uma vez instalado, Mateus deixou a pensão e foi daí até à Praça de São Pedro, onde se postou num ponto do rectângulo donde podia contemplar toda a praça e o ambiente à volta. Teve a sensação de entrar num templo aberto onde o silêncio que o envolvia parecia perguntar: “Onde tinha estado todo aquele tempo? Olha para mim, sou aquele mesmo lugar que tu deixaste”. 

Era o mesmo lugar, sim, mas o tempo não parecia ter passado por ele. Sempre bem cuidado, limpo e arrumado. Não se via uma ponta de lixo no chão da praça.

Depois daquele momento de contemplação, quase veneração, começou a andar. Os seus passos encaminharam-no até ao Presídio. A mesma sensação de estar num lugar estimado, impecavelmente cuidado. Aproximou-se do muro de protecção sobre o precipício que descia abrupto até à praia de Fontibila, olhou em frente e viu a silhueta da Ilha Brava, aí tão perto, coroada de nuvens como sempre foi. E viu o mar desse canal entre as duas ilhas por onde era preciso passar para chegar à ilha vizinha. Não era fácil aquele canal, lembrou-se Mateus. Não era manso. Havia alturas em que os pequenos navios à vela em que muitas vezes viajara pareciam estar no fundo de um vale entre montanhas colossais de mar que se erguiam azuis, impressionantes, ante os nossos olhos espantados.

Depois dos dias passados no Fogo entre o saudosismo do passado e a força telúrica do presente foguense, Mateus desceu até ao Vale dos Cavaleiros, designação que, segundo os estudiosos da toponímia local, é um fenómeno de hipercorrecção linguística do que originalmente era Barca Baleeira, e subiu para o ferry que havia de o levar à Ilha Brava, juntando-se aos outros passageiros com o mesmo destino. Depois de uma hora e meia de viagem entre os solavancos do navio e os berros incontroláveis dos que sofriam de enjoo, chegaram ao porto da Furna.

Pelos caminhos de outrora, só que em menos tempo agora, alcançou a Vila Nova Sintra pela sua porta de entrada, a Cruz Grande. Na vila procurou em primeiro lugar os seus parentes mais primos, primos irmãos que viviam na ilha na casa dos seus avós, como conservadores do património ancestral, com a mãe. Esta nova geração que habitava agora a casa emprestava um ar de frescura á antiguidade do prédio, do qual cuidavam com esmero. Todavia Mateus não se instalou nessa casa que tantas recordações lhe traziam. Em vez disso, procurou um amigo da família de nome Tui, comerciante da vila. Foi encontrá-lo sentado à porta da sua loja, no rés-do-chão de um prédio de dois andares. O lugar era-lhe tão familiar, como o eram as casas à volta e as próprias calçadas daquela rua polidas pelo tempo. O prédio não se tinha alterado muito, apesar dos anos passados sobre ele. Graças certamente ao seu novo dono pelo que se conhecia da sua maneira de ser. De seu nome completo António Santos de Pina, mas era conhecido por Tui. Pouca gente provavelmente saberia o nome de registo. O nome Tui, só por si, tinha peso suficiente para dispensar apelidos em série. 

A loja de Tui tinha duas portas abertas para rua da frente e uma para a rua do lado. Os que conheciam os primeiros donos diziam que prédio já tinha sido construído com essa estrutura, já calculada para ter um estabelecimento comercial daquele tipo rés-do-chão. Agora pertencia a Tui que, por mérito próprio, espírito de iniciativa e carácter, tinha ascendido a uma posição económica sólida na ilha. Noutra terra que não esta dir-se-ia “uma boa posição social” e assim por diante. Mas naquela ilha as coisas não funcionavam assim. Essa coisa de posição social era coisa estranha que não fazia parte do ambiente. Ilha Brava, a ilha habitada mais pequena do arquipélago de Cabo Verde, mas que já chegou a ser a densa em população.

Alguns estudiosos da história da ilha dizem que ela recebeu esse nome dos navegadores portugueses que a “acharam, porque o mar que a envolvia era bravo e dificultava o acesso à ilha. Sobretudo certas épocas do ano, razão por que, durante o tempo do Equinócio o porto de acesso mudava da Furna para a Fajã de Água, que substituía provisoriamente o primeiro. Durante o resto do ano era na Furna que os navios ancoravam, pois oferecia melhores condições não só em termos de acesso, como de infra-estruturas portuárias, de que a Fajã de Água não dispunha., uma vez que não lhe tinha sido destinada essa função. 

A maior parte das pessoas que pertenciam à família de Mateus, tanto do lado paterno como materno tinha emigrado e os mais antigos tinham desaparecido pela ordem natural da vida. Um reduzido núcleo de parentes formado por jovens primos seus de segunda e terceira geração assegurava o prolongamento genético dessa família. na ilha  A manter-se todavia a tendência migratória dos habitantes da ilha, é bem possível que estes seus parentes sejam a última geração da família na ilha.

Durante a sua estadia na terra que o viu nascer passou horas esquecidas a ouvir histórias, casos e “passagem”, presentes e passados, que lhe contava Tui tranquilamente sentado à porta da sua loja, enquanto o seu caixeiro, palavra aliás caída em desuso nas cidades de grandes superfícies e centros comerciais, atendia afável e rotineiro a sua freguesia habitual Tei era uma verdadeira biblioteca viva e uma fonte segura de informação sobre a realidade da ilha. Um dia, por exemplo, falando casualmente de Eugénio Tavares, contou uma pequena “passagem” da vida do poeta bravense, daquelas que vão passando de uma geração à outra.

“Um dia” – contou Tui acompanhando a sua narrativa de um sorriso constante nos lábios – “Nhô Eugénio, ao passar pela casa de um vizinho um tanto simplório chamado Benjamim, pachorrentamente sentado junto à soleira da porta, foi interrompido no seu passeio com o seguinte pedido do mesmo: “Nhô Eugénio, nhô fazê-n un versu”.

O poeta aproximou-se dele e respondeu-lhe neste improviso que naquele momento lhe veio à cabeça:


                                   “Lá vem o Benjamim

                                     com calças de cotim

                                     casaco de marfim

                                     sempre no boletim.

                                     gosta de pudim

                                     e quem quer saber de mim

                                     que venha aqui

                                     Benjamim do princípio até ao fim 

                                     Tintim por tintim


Estes versos “de brincadeira”, rimados em im são provavelmente inéditos.

Durante a sua estadia, certamente curta para quem se ausentou durante tanto tempo, Mateus ficou hospedado numa pequena residencial instalada numa antiga moradia que dispunha de poucos quartos. O conforto interior da residencial contrastava com a modéstia da moradia. Não que as instalações fossem luxuosas, mas pelo ambiente aconchegado que envolvia o hóspede como um afago.

Logo na primeira noite que Mateus ali passou, acordou de manhã com a sensação de que há muito não dormia tão bem assim. Desfrutou desse conforto durante uma semana como o único ocupante da residencial.

De dia revisitava as povoações e as estradas que outrora percorria a cavalo, quase todo o caminho a subir, aproveitando os percursos planos para uma irresistível corrida do cavalo que já conhecia bem os caminhos e os hábitos do dono. Inevitavelmente corria nas mesmas extensões de estrada e caminhos por entre cardeais e purgueiras.

Agora não se viam nem cavalos, nem mulas, nem burros pelos caminhos da ilha. Apenas automóveis, sobretudo carrinhas.

No último dia da sua estadia, procurou Tui para com ele para se despedir e fazer as contas da sua estadia na residencial. Encontrou-o sentado, como habitualmente, à entrada do seu estabelecimento.

- Tui, vim despedir-me. Parto hoje no Barlavento. Queria agradecer a tua hospitalidade e fazer as contas contigo dos dias que estive hospedado na residencial. 

- Tui olhou para ele com uma indescritível expressão no rosto e disse, serenamente: 

- Quer dizer, estás aqui há uma semana e temo-nos dado muito bem todo este tempo. E escolheste o último dia para me vires ofender. Achas que eu alguma vez ia cobrar-te?!

Só a Brava – pensou Mateus! E despediu-se com um abraço. Dizer o quê?


                                                                  Viriato de Barros Fermino de Pina

domingo, 13 de junho de 2021

[4941] Um conto, possivelmente inédito, de Viriato de Barros

Já aqui o dissemos e repetimo-lo agora: um blogue destina-se a imagem e a textos curtos. Ler textos longos no ecrã é cansativo e deve evitar-se. Porém, já abrimos algumas excepções e esta é mais uma. Primeiro, porque o texto é bom, se situa dentro dos interesses do Pd'B e, ao que parece, é inédito; segundo, porque o Viriato de Barros (grande e interessantíssimo conversador) foi nosso amigo e ainda por cima vizinho durante muito tempo; terceiro, porque o texto nos foi enviado pelo Arsénio, seu irmão e igualmente nosso amigo e longo colega de letras no jornal "Terra Nova"; e quarto, porque os manos Barros, Arsénio, Carlota e Viriato são sempre bem-vindos a este local de encontro de cabo-verdianos e aderentes. Segundo o Arsénio nos confiou, o próprio Viriato e Nhô Roque Gonçalves, entre outros, são personagens do conto.

Aqui fica pois, a suculenta prosa. Em breve, outra virá, pois de duas se trata.


ELOS DE LIGAÇÃO  (1)

Há muitos anos que João Mendes vivia afastado da mulher. Não que estivessem divorciados, ou coisa parecida. A mulher vivia noutra ilha, onde ele tinha uma casa, a que de longe em longe regressava por alguns meses, para depois voltar para o cubículo que alugara em São Vicente, onde tinha montado o seu escritório. O cubículo tinha duas divisões, uma que era o quarto de dormir e outra que funcionava como sala de estar, escritório, cozinha (um fogão Primus, uma frigideira, duas panelas e uma cafeteira). Tinha duas estantes com livros, alguns muito antigos, e uns poucos novos, mas bem manuseados. Sobre a mesa de sala havia sempre algumas revistas e um ou outro jornal. Um sofá e três cadeiras completavam a mobília. A um canto uma cortina separava a sala do espaço onde funcionava a casa de banho. Era uma daquelas casas antigas de um só piso muito comuns no Mindelo.

João Mendes vivia só. Uma rapariga dos seus vinte e seis anos aparecia a certas horas para lhe preparar as refeições e tratar-lhe das roupas, da arrumação e limpeza da casa. Falava muito pouco e não dava confiança, deixando muito claro que não estava lá para outra coisa senão trabalhar e receber o seu dinheiro no fim do mês. João Mendes era um homem de idade e tinha mau feitio, muito difícil por vezes de aturar. Os seus amigos constantes e de longa data conheciam-lhe o feitio e davam-lhe o devido desconto, porque, apesar  da sua má catadura, João Mendes era um homem de valor e amigo dos seus amigos. Era normalmente verrinoso nas suas críticas pessoais, mas com o tempo poucos levavam a sério as suas tiradas contra os que tinham a infelicidade momentânea de lhe cair na alçada maldizente, a que raros escapavam. Se não era por uma razão, era por outra.

Uma coisa era certa, ninguém o tratava por Nho Jon, ou se dirigia a ele dizendo-lhe “Ah nha Jon...”. Todos o conheciam por Senhor João. E assim se dirigiam a ele. Essa é, aliás, uma misteriosa distinção que em São Vicente se faz, difícil de analisar, mesmo pelos mais propensos a análises sociológicas. A começar pelas Senhoras, mas aí a distinção não é entre “Senhóra” e “Nha”, mas sim entre “Dona” e “Nha”. Há mulheres que são tratadas infalivelmente por Nha: Nha Rosa, Na Chica, Nha Bina, Nha Maria. Há outras às quais se cola definitivamente “Dona”. Dona Bibi, Dona Zizi, Dona Maria...Em certas situações a identificação com a camada social a que a pessoa pertence, ou em que se situa pela sua postura, é evidente. Sim, porque há uma postura de classe que corresponde a certos maneirismos ou conjunto de atitudes e posicionamentos que nem sempre correspondem à situação económica real da pessoa. A não ser talvez por mera herança nominal. Vai-se a situação económica e fica a postura, ou melhor talvez, a posição. Posição, aliás, um termo que entrou em decadência sob o efeito da liquidação revolucionária. Não que as posições tenham desaparecido. Ninguém diria “pessoa de posição” para se referir a alguém bem colocado na estrutura hierárquica da sociedade pelos cargos que exerce ou pelo seu poder económico. As posições, portanto, não deixaram de existir, nem tão pouco as suas vantagens relativas na escala social. 

A distinção entre nhô e senhor, nha e dona continua a não ser tão simples como parece. Pode ser que tenha a ver com o grau de familiaridade que as pessoas consentem aos outros. Há pessoas que não dão confiança. Nem um milímetro. Ninguém se lembra de as tratar por nhô ou nha. Senhor, ou nada.

João Mendes pertencia, portanto, a essa categoria de pessoas. Mateus cultivava a sua amizade como uma herança paterna, pois sempre fora um grande amigo do pai. Visitava-o religiosamente sempre que podia, e ultrapassava habilmente as suas manifestações de mau feitio com um certo humor, não as levando a sério, ou, então, respondendo-lhe taco a taco, quando isso se proporcionava.

Apesar da grande diferença de idades, não o tratava por Senhor, mas tão-somente por João Mendes, ou por Você, conforme os casos. Essa atitude parecia assegurar-lhe a necessária reciprocidade de respeito pela parte do seu amigo mais velho.

Uma outra visita assídua de João Mendes era o Professor, a quem ele tratava por Toi, seu contemporâneo de estudos e outras andanças e conterrâneo da mesma ilha. Era o período de transição para a independência e a situação política do momento vinha inevitável e frequentemente à baila nas conversas, entre dois grogues e os noticiários da rádio.

Mateus folheava uma das publicações que na altura circulavam. Entretanto, chamou-lhe a atenção um poema que, numa hiperbólica e retumbante metáfora, descrevia o partido recém-chegado, ainda que parcialmente, ao poder como um enorme vergalho que tinha penetrado as entranhas da terra cabo-verdiana, emprenhando-a num colossal coito telúrico, promissor de um parto auspicioso. 

Mateus leu em voz alta os primeiros versos do poema. Levantou os olhos para fitar os dois interlocutores e ver o efeito da leitura, feita com a ênfase que a natureza dos versos requeria. Mas perante a mudez dos seus ouvintes, não resistiu ao impulso de os provocar.

– Quer dizer, estamos f...

– Estamos não, está você! Você é que anda com eles. – reagiu imediatamente o Professor.

A conversa ficou por ali, e a poesia também. Mateus teve a sensação de que o tiro lhe saíra pela culatra ao ser identificado com “eles” daquela forma pelo Professor. O pronome plural atirado assim tinha uma inconfundível carga negativa. Mas não desistiu. Achou que, para ser consistente com o que lhe parecia ser a verdade, devia separar o milho da monda, mas não adiantou muito. Ele próprio tinha consciência de que, qual erva daninha que invade o chão onde o milho cresce, o oportunismo e o entrismo galgavam as encostas do poder, aproveitando os socalcos já erguidos por outros. Era-lhe difícil não reconhecer a condescendência dos novos senhores, que faziam vista grossa às “tropelias” dos vanguardistas de ocasião, convictos de que, em última análise, iam jogando a seu favor, ao executarem um trabalho de sapa que não ficaria bem à sua imagem assumir. A parte suja da política assumida como inevitável na lógica de que os fins justificam os meios.

Como então separar o milho da monda?

A verdade é que à sombra do poder abrigavam-se os oportunistas na mira de obter vantagens, e o novo poder rodeava-se de uma certa aura que os seus detentores iam distribuindo de acordo com o seu próprio e exclusivo critério e a sua simpatia. O núcleo dirigente centralizou-se na capital e dali irradiava, com extrema e cautelosa parcimónia, directivas vagas, ao sabor das informações que lhes iam chegando da periferia e daqueles a que chamavam as bases, através dos seus informantes mais iluminados.

Espontaneamente foram-se formando subgrupos e grupúsculos entre os estudantes, funcionários e trabalhadores cujos líderes ganhavam por sua vez auras próprias, constituindo-se em pequenos feudos politicamente neo-iluminados. Não sendo possível transformar-se de um dia para o outro a estrutura económica e social do meio em que se desenvolviam esses grupos, optavam por começar pelo imediatamente possível, ultrapassando todas as formas de contenção e os constrangimentos que anteriormente inibiam a sua acção, quebrando barreiras e eliminando normas e padrões de conduta, entretanto rapidamente substituídas por valores de ocasião. O entusiasmo idealista de muitos sobrevivia através de actos de solidariedade e acções conjuntas empreendidas dentro de uma ordem nova que se consubstanciaria na criação de novas estruturas em que se constituía um Estado emergente, na remodelação de instituições antigas e edificação de outras segundo um novo projecto de sociedade.

O vazio de poder que se tinha instalado durante uma fase de transição e os seus efeitos anarquizantes foram a pouco e pouco sendo preenchidos pelas novas estruturas organizativas, enquanto paralelamente se instituíam os novos símbolos e marcas do poder, do que constituía agora o Estado, a República de Cabo Verde. Ainda que muitas dúvidas subsistissem numa considerável parte, se não na maioria da população, os receios maiores foram-se diluindo, no dia-a-dia, na luta pela vida e daquilo que cada trabalhador, cada funcionário, cada homem, cada mulher e cada criança em idade escolar considerava ser as suas obrigações, e a caminhada prosseguia, aderindo uns por convicção, acomodando-se outros por conformação com o que lhes parecia inelutável, responsabilizando-se outros, quer por dever de consciência cívica, quer pelo que consideravam dever de militância partidária. O Estado de Cabo Verde surgiu desse esforço e consentimento conjuntos, mau grado os constrangimentos e receios quanto à sua viabilidade, sentimentos justificados pela consciência da exiguidade dos recursos que sempre marcou a vida da população das ilhas.

Os que confiaram cegamente nos novos dirigentes diziam: “Mas eles sabem o que estão a fazer. Não são pessoas irresponsáveis!”. O benefício da dúvida. Sobretudo quando se tinha investido tanto em esforço humano, para muitos, com o risco da própria vida.

Para muitos agora era uma questão de nadar, uma vez atirados ao mar. Para outros, uma confiança total na viabilidade do projecto cuja execução exigia não só uma direcção segura e hábil, mas forçosamente também, o empenhamento de toda a população, o que implicava uma acção mobilizadora e pedagógica a todos os níveis.

Até onde era possível levar esse idealismo? Qual era o limiar de resistência ao desgaste provocado pelos insucessos, pela fadiga, pelas frustrações a que não escapam todos os projectos de longo prazo? Como evitar ou controlar os entrismos e o oportunismo das aves de rapina que rondam esses processos, sempre à espera da melhor altura para aterrar em voo picado.

Mateus associou-se a um grupo de trabalho porfiado em manter-se fora da aura do poder com que muitos se fizeram crismar junto dos novos portadores dessa carismática capacidade. 

À mediada que se alargava a instalação das estruturas organizativas do partido único ou, como uma vez um militante comprometido em algumas acções significativas teve o cuidado de corrigir Mateus, do único partido.

Jogo de palavras ou não, de facto, depois da razia levada a efeito pelas extensivas tarefas de mobilização ou manipulação de massas conforme o ângulo de visão a partir do qual se aprecie o processo, acabou por ser o único partido. Pelo menos, o único visível, já que nenhum outro ousaria, nas circunstâncias, vir à tona para se expor. Criou-se uma nova entidade política chamada de “prisioneiros de consciência” e outra correlacionada designada como “auto-censura”. 

Com o tempo, os prisioneiros de consciência e da auto-censura, abrigaram-se numa forma silenciosa de resistência ao novo regime, ou aos que nele se apoiavam para o exercício dos seus abusos pessoais, enquanto no silêncio político essa entidade indefinidamente referida como o povo, ia gerando em si uma espécie de fastio, uma forma de repugnância específica em relação aos que supostamente tinha elegido como sendo os seus legítimos representantes, bem como em relação a todos os símbolos do poder que representavam.

                                                                 -----     

Era uma dessa muitas “sessões” promovidas pelos comités locais, a que chamavam “de esclarecimento”. 

– Hoje vieram outra vez falar para o resto dos burros que ainda não entenderam. – disse Marinela, que estava sentada ao lado de Mateus, no anfiteatro onde se realizava a sessão. 

– Ou será antes de aviso para os que não querem entender.

– Acho que é as duas coisas.

Eram três os membros do comité que assumiam esse papel de esclarecedores junto desse sector da população.

– Se neste momento eu estivesse para ter um filho, saía com a cara desse fulano aí.

– Explica-me isso melhor...

– Não sabes que quando uma mulher está para parir, o filho sai com a cara da pessoa que lhe dá mais raiva. Já não posso olhar para aquele homem... E vejo-o em todo o lado a ditar sentenças ...

Marinela era, por feitio e natureza, propensa a utilizar a crítica, a maior parte das vezes sarcástica, em todas as situações que implicavam com os seus critérios de apreciação do comportamento do seu semelhante. Não controlava esse insaciável apetite por uma boa tirada sarcástica, quando a ocasião lhe aparecia. Sendo uma mulher culta por formação académica, e que as pessoas em geral consideravam inteligente e dessa espécie de inteligência atenta às contradições e fraquezas do homo sapiens, Marinela parecia demasiado silenciosa nos últimos tempos, silêncio que intrigava quem a conhecia. Como estaria ela a encarar todas estas transformações mais recentes na sociedade mindelense, no comportamento das pessoas, nas mudanças bruscas e diametrais de posição política em tantos, nos aproveitamentos súbitos da confusão e das indefinições do momento. Mas perante este seu desabafo, Mateus, tranquilizou-se, como se isso lhe garantisse uma daquelas permanências que não se querem perder, como a do imutável carácter de Marinela. Já não era a Marinela apenas, essa que intimidava os rapazes mantendo-se sempre a uma distância de defesa, distância que manipulava pela destreza agressiva com que esgrimia com palavras. Era, por tudo o que valia aos seus olhos, a lucidez analítica de alguém que não parecia deixar-se arrastar pela corrente do momento, mas antes a acompanhava pela margem seguindo em frente o seu rumo. Observava e comentava.

Terminada a sessão, Mateus, abandonou o edifício e seguiu por uma das ruas que o levava a casa. Quase maquinalmente encaminhou os passos até à casa dos seus parentes que moravam ali perto. Encostado à porta, no seu posto habitual de observação, Júlio ia acompanhando a sua aproximação.

– Agora não fazem outra coisa, não é? É só reuniões... disse, quando Mateus se aproximou.

– É. É isso mesmo. E tu daí a tomar nota. 

– Não queres entrar um bocadinho? Queria falar contigo.

Mateus entrou, e mesmo sem lhe dar tempo para a troca costumeira de galhofas com a dona da casa, sua prima Gina, Júlio encaminhou-o para a sala de visitas onde nunca se sentavam a conversar. A sala era reservada apenas para certas ocasiões e situações.

– Senta-te aí – disse num tom e com uma expressão no rosto que não lhe eram habituais.

– O que é que se passa? – perguntou Mateus preocupado já com a estranha alteração no comportamento de Júlio.

– Vou-me embora desta terra.

– O que é que me estás a dizer?

– Vou-me embora com a minha família. Já não consigo viver cá.

– Mas porquê? E para onde é que vocês vão nesta altura?

– Sabes que a tua prima tem direito de entrada na América como imigrante por via do pai e dos irmãos que lá tem. Vamos embora para Boston. Já começámos a tratar dos papéis.

– De certeza que não se estão a precipitar? O que aconteceu para provocar uma decisão dessas, nesta altura da tua vida? Nunca quiseste sair de S. Vicente. Tu és como aquele passarão aí no cais da alfândega. Fazes parte disto. Sinceramente não consigo entender. Com essa é que eu não contava. 

– Já vais entender. Tu ainda não estavas cá quando essas coisas se passaram. Não sei o que é que lhes subiu à cabeça com o 25 de Abril. Começaram a espalhar por aí que eu era informador da PIDE. Um bando de arruaceiros transformados em juízes populares abordou-me num daqueles dias, começaram a insultar-me, a chamar toda a espécie de nomes. Queriam levar-me preso à força. O que me salvou foi ter aparecido o professor Martins que ia a passar e começou a falar com eles. Disse-lhe se não tinham vergonha, passou-lhes um raspanete dos diabos e eles, por respeito ao professor deixaram-me em paz. O professor veio comigo até a casa.

– Mas porquê? Insistiu Mateus.

– Vou mostrar-te o porquê desta história toda da PIDE, etc. 

Ao dizer isso, Júlio tirou do bolso uma carteira e daí um cartão verde meio estragado nos cantos e estendeu-o a Mateus.

Mateus tomou o cartão e observou-o. Tinha num canto esquerdo um emblema que lhe era familiar desde os primeiros anos de escola, o emblema da Mocidade Portuguesa.

– Há quanto tempo guardas isso?

– Desde os tempos em que andava no Liceu.

– Comandante de castelo?!

– Isso mesmo, comandante de castelo. Eu até tinha orgulho nisso…

– Mas o que é que tem esse cartão?

– O que tem é que, muitas vezes, mostrava-o a certos tipos para os impressionar, incluindo guardas de alfândega. Dizia-lhes que eu era da PIDE. Mas só lhes mostrava o cartão de longe e metia-o logo no bolso para não lhes dar a possibilidade de lerem  com atenção. Sabes que eu tenho os meus negócios de bordo, e essas coisas. 

– Mas que interesse é que isso tinha para ti?

– Às vezes, queriam chatear-me, e eu mostrava-lhes o cartão e dizia-lhes que era da PIDE. Impor respeito, estás a ver. E então?

– Agora andam a perseguir-me, dizendo que eu era da PIDE. Desde que se deu o 25 de Abril. Estás a ver a minha vida?

– Tiveste alguma coisa a ver com a PIDE?

– Eu?! Deus me livre! Dava-me com alguns deles, mas isso era nos meus negócios. Contava-lhes umas larachas e coisas. Convinha estar bem com essa gente. Sempre vivi de negócios. Não quero saber de política para nada. Isso é para vocês.

– Vocês, quem? – provocou Mateus.

– Vocês que tiraram cursos.

– Mas eu não ando na política.

– Sabes o que quero dizer. Não te faças agora desentendido.

A conversa continuou nessa toada e Mateus ficou a saber que o marido da sua parente tinha estado quase a ser preso como informador da PIDE. Foi salvo de ir para a cadeia in extremis pelo dito professor, que, tirando partido do respeito que tinham por ele, falou aos representantes da autoridade improvisados na refrega do vazio de poder que se tinha instalado no momento num tom suficientemente convincente para dissuadir o grupo dos seus propósitos. Passou o braço pelo ombro do amigo e acompanhou-o no caminho que o levava até a casa. Dado o respeito que tinham pelo professor, os autoproclamados representantes do poder popular deixaram-nos ir em paz, ainda não totalmente convencidos da inocência do seu arguido.

A certo passo Júlio interrompeu o seu relato.

– Vês por que não posso continuar nesta terra?


                                                  Viriato de Barros Fermino de Pina

Texto adaptado da Wikipedia

Viriato de Barros nasceu em Vila Nova Sintra, na ilha Brava, Cabo Verde. É autor dos livros "Identidade" (2001) e "Para Lá de Alcatraz" (2005). Depois de ter trabalhado como professor do ensino secundário em Portugal, S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Moçambique (Quelimane) regressou a Cabo Verde em 1975, tendo entre 1975 e 1985 exercido sucessivamente os cargos de Director do Ensino Secundário e responsável pelos Assuntos Culturais e de Cooperação do Ministério da Educação, Conselheiro de Embaixada e Chefe do Departamente de África, Ásia e Oceania do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e como membro do Quadro Diplomático foi Encarregado de Negócios de Cabo Verde em Washington (1978-1980) e Embaixador de Cabo Verde no Senegal e mais tarde Embaixador na Santa Sé, não residente (1984-1985), cargo que exerceu acumulativamente com o de Conselheiro do Presidente da República. Em 1985 deixou Cabo Verde, após ter sido seleccionado mediante concurso, para o lugar de jornalista da Voz da America, tendo trabalhado como jornalista daquele órgão de comunicação social em Washington de 1986 a 1988, ano em que regressou a Portugal, tendo-se então reintegrado na função pública portuguesa, novamente como professor do ensino secundário. Foi membro do Conselho Científico e investigador do Centro de Estudos Multiculturais, associado à Universidade Internacional de Lisboa. Faleceu em 7 de Fevereiro de 2018. Ver AQUI

[4940] Brava, mascarada...

Colaboração Artur Mendes

Trata-se de imagem surgida no jornal "Evening Standard" (supomos que o americano, pois também há o inglês e eventualmente outros, noutros países anglófonos - só o Artur Mendes nos poderá elucidar sobre isso) de 29 de Julho de 1905. É um slide de lanterna mágica que comporta um texto escrito à mão, o qual, segundo o periódico, é ilegível, só se decifrando a expressão "C. Verde". Ora se só "C. Verde" se consegue ler, onde foram buscar a "Brava"? A legenda da fotografia no jornal é "Bravas in Masquerade celebrating St. Valentine's Day". Não cremos que se celebrasse o dia de S. Valentim na Brava em 1905, ainda por cima com este aparato. Deve tratar-se de "enredo" do jornal, aproveitando uma foto alusiva ao Carnaval da ilha. Seja como for, nesta altura, a Brava era uma das ilhas cabo-verdianas mais conhecidas de nome, nos "States" (se o jornal é de lá, como parece), devido à chamada "carreira de Cabo Verde", com muitas viagens da Brava (e também do Fogo, de Santiago e S. Vicente) para a costa leste dos EUA.

Sobre "Lantern Slides" ("Lanterna Mágica"), ver AQUI e AQUI


segunda-feira, 7 de junho de 2021

[4938] Uma fotografia/postal ilustrado (ver post anterior)

Pois o meu comentário vai para o cuidado posto nesta criação da Foto Melo, cujo logótipo (um dos vários que a histórica casa utilizou) se pode ver em forma de delta, no canto inferior esquerdo (como sabem, basta clicar na imagem, para esta se tornar maior e logo mais visível).

Temos aqui uma fotografia do Mindelo e do Porto Grande, enquadrada por filete negro, mas nos cantos superiores vemos à esquerda uma bóia de salvação de navio, com as inscrições "Mindelo" e "S. Vicente", em vez do nome do barco e porto de pertença (do qual sai a bandeira portuguesa) e até um fiozinho, para dar maior verosimilhança, e do lado direito o antigo brasão de armas do Mindelo. Acontece que a bóia é uma pequena argola, talvez uma anilha, onde alguém (O Eduardo Ernesto "Papim de Melo", a sua mãe, D Natália, ou ambos) desenharam as letras, fazendo sair dela a bandeira. Como dissemos antes, do outro lado adicionaram uma estilização do brasão de armas da cidade (que tinha cinco torres no topo e não três, mas que assim resultava mais fácil de concretizar). Depois da colocação dos adereços, foi feita nova fotografia que é esta que aqui vemos e que era vendida na Foto Melo e talvez num ou outro local do Mindelo, como postal ilustrado.

É uma composição amadora, algo ingénua, mas que no entanto merece todo o carinho pelo trabalho realizado, com os parcos meios da época. Grande casa de imagem, a dos Melo, grande genealogia de dedicados profissionais da fotografia e do comércio cinematográfico que merecem sempre ser lembrados.

Para os três comentadores, seguirá não só esta imagem (sem marca de água) como o texto existente no verso, muito interessante também. Quem comenta no Pd'B, tem sempre "lucros"...





terça-feira, 1 de junho de 2021

[4933] Efeméride: o poeta e mornista Eugénio Tavares morreu há 91 anos

 


Cópia de texto, enviada por Artur Mendes


[4932] Poema de Carlota de Barros, no Dia Mundial da Criança

MENINOS


Corpos felinos

de lince

de malcata


olhos

de amêndoa

torrada ao fogo

de uma paixão

ardente


ecos de tambor

nas ondas

que rufam

nas rochas

suadas sensuais

e melancólicas

da terra vermelha

das avós

dos corpos felinos

de lince  de malcata


meninos roliços

de olhos redondos

sementes de ori

e tamarindo dourado

deitados ao acaso

nos campos

das vidas

das avós das ilhas

que dançam

perdidas

no mar agitado


dança maluca

erótica

exótica

de oboés e violinos

teclas e flautas

ao vento

das ilhas perdidas

das avós dos meninos

roliços de olhos

meigos de avelã


meninos 

de trancinhas

de missangas

tecidas com amor

pelas mãos

de maçala

das avós

das ilhas

perdidas no mar


meninos

de voz mansa

cantante

aroma  do mar

e café maduro

grãozinhos de ouro

da terra vermelha

das avós

que entoam

mornas de amor

nas doces madrugadas

das ilhas  que dançam


meninos roliços

corpos felinos esguios

meninos

de trancinhas de missangas

de olhos meigos de avelã

e figo maduro

com sabor

a manga e araçá

goiaba rosada

e mel de cana

pontuado pelas avós

das ilhas distantes


pintainho perdido

de olhar vazio

distante

que me olha

com a candura

da nuvem

nostalgia

do nada


menino

sem tempo

de brincar

com outros

meninos roliços

de trancinhas

coloridas

tecidas com amor

pelas avós

das ilhas

esquecidas

no mar


menino

sem tempo

de ser menino

e correr

com meninos

esguios

de corpos felinos

de lince

porque olha

pelos meninos

seus irmãos

de olhos tristes

inocentes

poema de ontem

escrito com dor

e amor de hoje


assim são

os meninos

que toco e amo

com a ternura

de veludo da guiné


assim são

os meninos

que tu vês

cruzando

a tua vida

dia a dia

ano a ano

e te fazem lembrar

maracujás e abacates

daquela terra

que não conheces

e já amas


porque  é a terra

das avós

dos meninos roliços

de olhos meigos

de semente de ori

e tamarindo dourado

ao sol risonho

das ilhas cantantes

que dançam

ao som da morna

da coladeira

e funaná.


              Carlota de Barros

              in  “A Ternura da Água”       



[4931] Excerto da terceira parte da biografia do cabo-verdiano "americano" Adalberto Rosário para o jornal "Terra Nova" de Maio