sexta-feira, 29 de junho de 2012

[0194] A VERDADEIRA, CELESTIAL-TERRENA E ATÉ AGORA DESCONHECIDA HISTÓRIA DO NASCIMENTO DO COLÁ SANJON, NA RIBEIRA DE JULIÃO

Nova  e última excepção nos próximos tempos, eis mais um texto longo, escrito hoje de manhã, melhorado em início de tarde e pronto para publicar agora. Cheira a pó, suor e peixe frito, mas ainda assim achamos que será bem apetitoso para os leitores. Chega uma semana depois da data de que fala, mas isso não o invalida porque para o ano que vem há novo Sanjon...

Como todos sabemos, depois de ter criado o Mundo, Deus sacudiu as mãos da terra que elas ainda continham, atirando-a para um sítio no Atlântico, mais ou menos entre as latitudes 14 e 17 Norte e longitudes 22 e 25 Oeste, perto do continente africano - o que deu dez ilhas, alguns ilhéus e mais umas quantas rochas anónimas. Tratava-se de Cabo Verde. Depois, Deus lavou as mãos nas águas do oceano e esqueceu-se do arquipélago que inadvertidamente tinha criado. Ainda por cima, nem gente lá pôs.

Coube essa tarefa a uns rapazes que da cara da Europa saíram nos alvores do século XV para o Mundo, em busca de comércio, aventura e terras para expandirem o pequeno rectângulo onde viviam. Claro que, a partir daí, os ditos cujos fizeram algumas tropelias. Mas também se portaram com categoria, noutras ocasiões. E numa dessas, em que estavam bem dispostos, após terem chegado às ditas ilhas, criaram o Homem e a Mulher cabo-verdianos, simpáticos seres como não há outros iguais à face da terra... excepto os portugueses, claro está, e talvez os brasileiros! Simpáticos, os ilhéus, porquê? Porque para além dos genes e cromossomas que muitos deles traziam de África, de onde emigraram forçadamente, herdaram dos mondrongue os de árabes, visigodos, celtas, romanos, lusitanos e sabe-se lá mais de quem que os portugas de há muito transportavam no sangue... Concluindo, tudo boa gente! Nem mais!...

Passou o tempo e os portugueses também se foram esquecendo de algumas das ilhas, sobretudo da de S. Vicente, talvez por esta ser uma das mais carecas de vegetação. Até que, para contrariar a incomodativa pirataria que nela de vez em quando se alojava, os lusos acordaram e resolveram povoá-la, quase no final do século XVIII. Segundo rezam as crónicas, vinte casais e cinquenta escravos foguenses, chefiados pelo capitão-mor João Carlos da Fonseca Rosado, natural de Tavira, criaram a pequena aldeia de Nossa Senhora da Luz à qual, o futuro governador Pusich se lembrou de dar em 1819 o estapafúrdio nome de Leopoldina... Graxa, dizemos nós, graxa queria ele dar à família real, pois Leopoldina era a austríaca esposa do príncipe Pedro, então em forçado (e dourado) exílio brasileiro, futuro imperador do Brasil e Rei Pedro IV de Portugal (neste caso, apenas por uma semana)...

Imagem eBay - Rbera d'Julion, talvez a horta de nha Camila de Café Cantante, de que muitos ainda se lembram

Mindelo foi o nome definitivo, liberal e chamativo, que no crioulo da ilha acabou por perder o finalizante "o", ficando ainda mais falável. E a ilha e a cidade foram crescendo, sob a égide de S. Vicente, o santo marítimo do dia do achamento e padroeiro de Lisboa que emigrou para Cabo Verde ao mesmo tempo que os descobridores aproaram ao território. Mas faltava qualquer coisa. Sentia-se uma necessidade de folia que ainda não tinha o Carnaval para ser saciada. Que se poderia fazer, que se poderia arranjar, para a suprir? Foi então que entrou em cena o santo onomástico. Que diabo, afinal era ele o defensor maior da ilha, aquele a quem, em caso de necessidade de qualquer ordem - embora sempre sob a égide de Nossenhora da Luz - competia interceder pelos mindelenses, sobretudo os que se aventuravam no Mar de Canal ou lá longe nos States, na pesca da baleia. Ora o santo, aproveitando um dia em que Jesus e S. João estavam a conversar, sentados numa nuvem do quadrante 46898/3 do céu, resolveu falar-lhes no assunto. E foi este, exactamente, sem tirar nem pôr, o teor da conversa tripartida que aqui relatamos:

Disse S. Vicente, ao chegar junto a eles:
- Jesus, S. João, bons olhos vos vejam, há que tempos não nos encontrávamos.
- É verdade, Vicente, há muito que não nos vemos. Senta-te aqui nesta confortável ponta da nuvem e diz-me: que tal a tua ilha? Como vai aquele pessoal? - perguntou Jesus, mostrando-se interessado.
- Triste, Senhor. Aquilo é muito boa gente, do melhor que há na Terra por Vós criada, mas falta-lhes qualquer coisa, algo que os divirta e lhes dê energias para prosseguirem o dia-a-dia com outro vigor. Eles bem trabalham, coitados, mourejam, tiram das rochas escalavradas e do mar o sustento mas andam sempre abatidos, sem nenhum ligria. Senhor, morabeza ca ta tchegá pa ser feliz (cabe dizer que S. Vicente já arranhava o crioulo...).
- E que achas que se pode fazer? - perguntou João, o santo pastor.
- Sei lá, talvez inventar-se uma festa. Um farra, um fistinha anual, qualquer cosa divertide, pa tude munde fcá filiz, c'um missa, dança, coladera, funaná, pastilim de midge c’pêxe, sucrinha, um grogue… Talvez, tude djunte.
Jesus cofiou as longas barbas, pensou, pensou e repensou, e ao fim de mais de meia hora resolveu responder:
- Uma festa religiosa, adoçada com coisas do mundo, queres tu dizer?
- Sim, Jesus, por exemplo no meu dia – avançou São Vicente, pensando dar mais cor ao seu 22 de Janeiro.
Mas João, sábio e expedito (e um pouco molestado, diga-se), retorquiu logo:
- Jesus, acho que aqui o Vicente quer açambarcar tudo. Desde 22 de Janeiro de 1462 que a ilha, mesmo sem gente, comemora o seu dia – que foi o da descoberta. Já lhe chega, acho eu. Bem podia ser no meu, que no Mindelo ainda não tem grande significado. Mas Tu, na Tua imensa sabedoria é que tens a última palavra.
Jesus coçou a cabeleira, afagou o bem delineado nariz, olhou para ambos – para o expectante João e para o não menos ansioso Vicente –, espreitou durante uns minutos por um vasto buraco que havia na nuvem e depois de matutar mais alguns uns minutos, disse:
- Tens razão, João, tens imensa razão, como sempre, meu bom amigo. O Vicente já é amado em toda a ilha, até possui uma bonita imagem na igreja de Nossenhora da Luz, de barquinho na mão e tudo, e a ti ninguém te liga, ao contrário do que acontece na terra do dragão, no norte do país dos descobridores, onde até martelinhos em seu nome inventaram e têm um São Jorge Qualquer Coisa da Costa, de carne e osso, para competir contigo. E virando-se para São Vicente, acrescentou: - Bitchenta, tu és bom rapaz, já se sabe, mas agora é a vez do Djon. Estive a observar aquilo lá em baixo e perto do Mindelo está um terreno mesmo adequado para um arraial anual a 24 de Junho: acho que lhe chamam Rbera d’Julion ou coisa parecida, até ali cresce milho quando é época de azágua. Bom sítio para a festa, acho eu, com espaço para as barracas de comes e bebes e para o bailarico. Assim, o Mindelo fica com festa religiosa vicentina, no início do ano, e joanina mista, a meio. Isto, para não falar das restantes como a de Nossenhora da Luz. Contenta-se a santidade toda. Que tal? Que dizes? Achas bem?

Imagem eBay - Quando o milho crescia do nada e a verdura não era miragem

São Vicente, que de facto era compreensivo, embora tenha ficado algo triste por perder uma festa que desde logo se afigurava bem divertida, acabou por cedê-la ao companheiro. E logo regressou ao arquipélago, numa longa jornada, desde lá acima até cá abaixo, incorporando de novo a imagem que ainda hoje vemos na igreja matriz do Mindelo, do lado direito ou da Epístola. De modo que foi dali que durante alguns meses inculcou nos fiéis, sem que eles disso se apercebessem, essa ideia que obviamente frutificou e no sítio pretendido, a Rbera. Claro que houve uns quantos exageros picantes na liturgia mundana da festa, como aquel stóra de “colá Sanjon”, que agora já é impossível remediar, de tão arreigada que está no coração do povo: está feito, está feito. Jesus não se tem mostrado preocupado com isso, Sanjon ainda menos e Sanbitchenta, esse continua todos anos à espera do 22 de Janeiro para comemorar com brilhantismo o seu dia e depois sair a correr da igreja da pracinha a caminho do aeroporto Cesária Évora, para apanhar o avião que o levará a Lisboa onde continua a festa, na Sé, à vista do Tejo que faz estrada com o Atlântico e o Porto Grande. E, quando no Verão tem tempo, ainda dá um saltinho ao lisboeta bairro do Alto da Cova da Moura, para ver o amigo Djon que ali também tem poiso certo a 23 de Julho, com homens dançando dentro de barquinhos embandeirados e apitos a soar e tudo…

Joaquim Saial


Barcos de Colá Sanjon, na Biblioteca Municipal do Mindelo
 Continua...

quinta-feira, 28 de junho de 2012

[0193] VIAGEM A SANTO ANTÃO - 23-25.Julho.1999 (09)


Continuação do post 0189

De súbito, numa curva da estrada, encontro um jipe acidentado. Parece coisa recente, pois ainda há óleo a escorrer da zona do motor que alastra estrada abaixo. Lá dentro, ninguém, nem sinais de que tenha havido problemas de maior com o condutor ou possíveis passageiros. Nas imediações, também não se vislumbra vivalma. Venho a saber depois que se tratava de uma viatura dos serviços judiciários.


A paisagem continua avassaladora. É o Santo Antão de que se fala nos folhetos e roteiros turísticos e que não foge ao que dele se diz. Em país de secas e terras escalavradas, a ilha foge ao padrão habitual, embora também possua zonas falhas de vegetação. Não é que haja exuberância de verdes, pelo menos nesta altura do ano e nesta zona, mas por todo o lado essa cor faz a sua aparição, com maior ou menor intensidade. Nos cumes mais altos, sempre uma bruma que tudo cobre.


Em mais uma curva do caminho, dou com uma casa em construção, no lado da estrada virada para o mar. Há alguns miúdos que me pedem para lhes tirar fotografias. "Tráme um foto, tráme um foto", pedem em coro, mas a película está racionada e como não sei que maravilhas ainda solicitarão cliques da máquina, limito-me a fotografar os tijolos dispostos em várias filas, fabricados no local com recurso a cimento e moldes de madeira. É hábito antigo fazer tijolos deste modo, aqui como em toda a ilha, devido à falta de argila. É este material que dá a cor predominante à paisagem urbana, em quase todo o Cabo Verde. Segundo me contaram, uma casa inacabada, sem reboco ou pintura, não paga impostos ou pelo menos a sua totalidade. Daí que muitas famílias terminem as casas por dentro mas as mantenham com os tijolos à mostra, por fora...


Vou espreitando o mar que ruge lá em baixo e que vejo através de gargantas profundas e perigosas. O rebentamento das vagas produz sons estranhos que se repercutem no ar até ao sítio onde estou.  
[Mais ou menos por aqui iria morrer em desastre de viação o músico Vadu, em 12 de Janeiro de 2010, quando a viatura em que seguia caiu ao mar.]


Estou próximo de Ponta do Sol. Do lado de terra, um pouco antes da localidade, perfila-se uma fiada de prédios, ainda em construção, com três andares e muito bom aspecto que não parecem corresponder à frase presente no cartaz que os dá como sendo de habitação social. O dono da obra é a Câmara Municipal de Ribeira Grande e os financiadores são esta e o Grão Ducado do Luxemburgo, um do maiores benfeitores estrangeiros de Santo Antão e país onde muitos santantonenses mourejam.

Passa por mim o casal de portugueses que não via desde o dia anterior, ao que suponho de regresso a Ribeira Grande. Não se vê mais ninguém na estrada. Cumprimentamo-nos com um educado aceno de cabeça mas não chegamos à fala. Suporão eles que também sou português? Pode ser que sim, embora não me tenham ouvido falar. A verdade é que não metem conversa e eu agradeço interiormente a gentileza...

 .CONTINUA

quarta-feira, 27 de junho de 2012

[0192] DE COMO UMA FOTO COM DONO PASSA A FOTO SEM DONO...

A coisa começa no dia 7 de Maio de 2012, em "A Semana", num artigo intitulado "Movimento para a salvaguarda da residência do químico Roberto Duarte Silva: edifício vai ser exploratório de ciências". E continua a 13 do mesmo mês, em "Funco - Portal de Arquitectura de Cabo Verde" (que cita como fonte, e bem, o dito artigo de "A Semana").

A imagem que ilustra ambos os artigos é aqui do PRAIA DE BOTE, digitalizada por ele, a partir de foto em papel que o mesmo PRAIA DE BOTE fez em Santo Antão no dia 23 de Julho de 1999 e mandou revelar em S. Vicente.

Esta nota é só para ficar o registo de propriedade intelectual. Que quanto ao resto, que se lixe, pois o excepcional Roberto Duarte Silva merece a apropriação e o PRAIA DE BOTE até sabe que só se copia o que é bom... Mas, com franqueza, o nome do PB podia ter sido inserido na primeira notícia... ai podia, podia, mas não o foi...

Aqui vai ela, mais uma vez, que noutro local do blogue também pode ser vista.


terça-feira, 26 de junho de 2012

[0191] PRAIA DE BOTE regressa, agora de vez!

Hoje: Um trailer do documentário "Dona Tututa", que alguns eventualmente já viram. Ao que parece, o filme estará pronto em breve. Nele, o PRAIA DE BOTE colabora com uma ajuda mínima mas ainda assim...

CLIQUE NA IMAGEM, PARA VER O TRAILER
PRAIA DE BOTE foi contactado, por causa de artigo que publicou em tempos no "Liberal", no qual citava um texto do "Diário Popular" de Lisboa (1952), sobre as noites do Mindelo, onde o correspondente anónimo dizia a dado passo: «Visitámos, à hora adiantada da noite, o Café Royal, onde uma negra toca melancolicamente piano numa alegria que se perdia nas trevas da noite, sem público que contagiasse… Depois, os músicos, negros também, acompanham os jornalistas que percorrem a cidade e vão, tal como numa serenata coimbrã, acordando a população com as suas mornas tristes, nostálgicas, cantadas por vozes dolentes e tocadas em ritmos cheios de sentimento pelo Mochinho do Monte – um cantor ambulante cheio de intuição e de talento. A noite cabo-verdiana ia-nos cercando gradualmente…»

Este excerto do dito texto, desenterrado pelo PB, um dos mais de 4000 que já armazena no seu arquivo sobre as ilhas, completará o documentário, o que muito nos honra. Esperemos, então, pela estreia...


Amanhã: Colocação do texto integral até agora escrito sobre a famosa viagem a Santo Antão
Destina-se a recordar o trabalho já feito - que será continuado, sempre em episódios e com fotos ilustrativas.

Depois de amanhã: Continuação da viagem a Santo Antão.

Em data oportuna: Talvez (repito!... talvez), muito boas notícias acerca de algo sobre Jorge Barbosa.

Obrigado por  terem esperado por este regresso.
Braça pa tude munde e leitura sabe.
Djack