Ao nosso velho amigo e condiscípulo do Liceu Gil Eanes, um braça pertóde de ratchá osso mode só menine de Praia de Bote e de Rua de Praia sabê dá. Outro ao primo Adriano Miranda Lima que no-lo enviou.
Amílcar S, Lima - Foto "A Semana" |
Por: Amilcar Sousa Lima
Publicado em "A Semana" de 7.Outubro.2012
Segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, a taxa de desemprego aumentou em Cabo Verde: passou de 10,7% em 2010 para 12,2 em 2011, um aumento de 1,5%. Em S.Vicente a taxa é muito maior: 18,3%
Travessa da Praia. Fiscais municipais, alguns polícias, com ar muito severo, estão de plantão. A travessa está completamente deserta, sem vida, sem movimento. Parece que algum ciclone varreu a zona. As lojas circundantes só têm moscas, com os empregados de mãos nos queixos a pensar na incerteza do amanhã.
Travessa da Praia. Aqui e nas proximidades prolífera uma miríade de estabelecimentos: Bento Lima, Casa Serradas, lojas chinesas, viação, Café Império, restaurantes, barbearias, telefones públicos, Firma Jovem, ZéZé, Mendes e Mendes, Tabacaria S. João, boutiques. Muito movimento em que todos debicam.
Rua de Praia - Zona da velha Capitania, da Vascónia e dos botequins - Foto Joaquim Saial |
A labuta começa cedo, dura de sol a sol. As mulheres vão chegando frescas, vivas, alegres, agradecendo a Deus por mais esse dia, com as suas tinas de plástico à cabeça, cada tina uma cor, cheias de produtos que a terra gerou para mais uma jornada titânica de luta pela sobrevivência. Procedem do Calhau, Madeiral, Ribeira de Vinha, Ribeira de Julião, Santiago, Santo Antão, Fogo e de outras paragens. Todas ainda novas, bem parecidas, graciosas, lindas, elegantes, limpas e vistosamente trajadas. Sobretudo espelham alegria e boa disposição naquilo que fazem. É o prazer do trabalho honesto.
As tinas, quais estojos de aguarela, exibem produtos que o trabalho paciente do homem fez brotar da terra: pepino, coentro, salsa, alface, couve, tomate, mandioca, batata, banana, cenoura, alho, repolho, limão, inhame, abóbora, papaia, espinafre, manga, veludo, calabaceira, mancarra, tamarino, todo o tipo de matos para chá. Um quadro deslumbrante policolor exalando as mais díspares e agradáveis fragrâncias. Um quadro que dá orgulho ver e apreciar, se se atender aos problemas que neste momento o planeta conhece em virtude dos produtos alimentares. De parabéns estão aqueles que os produzem. De parabéns estão os que fazem a sua distribuição.
Coitados dos homens dos campos de Maio, São Nicolau, Fogo que vêem o fruto do seu trabalho na terra apodrecer porque não há meios de transporte para fazer escoar a sua produção.
Travessa da Praia. As mulheres predominam, mas também não faltam alguns homens. Elas ocupam as margens da travessa sentando-se em motchinhas e em baldes de plástico, descontraídas, não se importando que as suas pernas luzidias e carnudas, nem com os seios que blusas com pronunciado decote expõem provocadoramente, fiquem patentes a olhares mais atrevidos e curiosos. O que é bom, é para se ver, deve ser o pensamento delas para quem se calhar nem só de pão pode viver o homem. Tudo serve para o marketing. As pernas abertas, para fazer arregalar os olhos, têm as partes mais íntimas resguardadas pelo bolso de aventais onde se vai acumulando o produto das vendas.
Isaurinda vê o Tey a passar com ares de preocupação, chama-o só para agoniá-lo, pedindo-lhe que aprecie a papaia que está por debaixo do bolso do avental. Tey nem quer acreditar que o convite lhe é endereçado. Se já estava apressado, apelou às suas pernas para meterem a quarta velocidade, pois a hora era de expedientes e não para conversas apimentadas.
Menininhas com apenas 10, 13 anos, já vão tomando contacto com as durezas desta vida, estagiando com saquinhos de plástico contendo 1kg (alho, tomate, pepino,cebola, batata). Conforme as posses familiares, algumas devem frequentar a escola, outras não. Que será do nosso futuro, é o questionamento que fazem a si próprias em cada dia. Será que iremos herdar a vida sacrificada dos nossos progenitores?
Há também produtos do mar a serem distribuidos. Destoa esse tipo de venda, pois o produto está exposto ao sol e mal acondicionado o que favorece a sua rápida deterioração, constituindo desse jeito um perigo público. Os vendedores de peixe normalmente são portadores de facalhões que manejam de qualquer forma exigindo do transeunte atenção acrescida, não vá o diabo tecê-las, além de que vê-se quase sempre obrigado a exercícios de contorcionismo para que a sua roupa não fique salpicada com sangue de peixe.
Rua de Praia e Praia de Bote - Foto ed. Casa do Leão (pormenor) |
O slogan mais badalado em Cabo Verde pelas empresas em matéria de publicidade é: “Cada vez mais perto de si”. As vendedeiras assimilaram muito bem essa publicidade e procuram a todo o tempo concretizá-la. Estão onde está o potencial cliente, pensando dessa forma satisfazé-lo melhor porquanto tempo é dinheiro. E o cliente sente-se satisfeito com essa prestação porque tem à mão todos os preparos para confeccionar um prato apetitoso. E têm consciência de que o rendimento das famílias é mais para alimentação ficando quase nada para outras necessidades.
Se os vendedores de peixe destoam, procuram compensar o mal-estar que a sua presença suscita, fazendo uso de pregões carregados de algum humor e malícia:
- Ò Inácia, tcham-mepôbepêxe
- Grinhasim um ka crê pêxe
- Ó mnina um ka ta pôbe el tude
- Tcham-me pôbepêxe dona
- Graças a Deus um tem hôme na casa pâpômepêxe
- Ó ninhas, ês oi lorguetâfrisqin. Spiá sô nesse lôbe
A vida é uma sucessão de riscos e as vendedeiras têm plena consciência disso. Acima de tudo, sabem que o mundo só avança com contradições e a vida tem-lhes ensinado que quem quer progredir terá de percorrer outros trilhos que não os que levam a lado nenhum.
Alguém anuncia que há uma carrinha de fiscais municipais investindo nas proximidades do minimercado Mário Mimoso. Também poderia ser junto à Seri Lopes ou à Padaria Central. Não demora muito para que chegue a alta velocidade à Travessa da Praia. O pânico instala-se. Correrias para todos os lados. Climatizadas com este tipo de investidas, as vendedeiras reagem colocando num ápice as tinas na cabeça, as motchinhas numa das mãos e afastam-se o mais que podem do teatro do “crime”. Umas, algumas, poucas, as menos lestas deixam as suas tinas cair nas mãos dos seus predadores. É o sacrifício indispensável para a continuação e consolidação da espécie. As que caem nas malhas da penalização não ficam indiferentes, praguejam, descompõem, dizem obcenidades, gritam com veemência: não somos nem ladrões, nem assaltantes, nem traficantes, nem corruptos, nem mafiosos. Buscamos apenas o sustento para os nossos filhos que também têm o direito de crescer como os filhos dos outros, pois o Sol quando nasce é para todos.
As vendedeiras que conseguiram escapulir-se a tempo do local do crime não se afastam muito, sabem que aquilo é sol de pouca dura, é passageiro, fogo de vista e os fiscais devem ter coisas mais importantes com que se preocupar do que estar a correr atrás de saias. Além de que, bem haja o horário único... Logo que viram as costas, as vendedeiras como se tudo fosse natural retomam a sua actividade. Sintonizadas com o que acontece neste mundo turbulento todos os dias, em todas as paragens, têm plena consciência que viver é lutar, resistir, transgredir, desafiar e, sobretudo, não se submeter nunca, porque todo o poder é efémero. Sabem por ossos do ofício que só é vencido quem desiste da luta. PORTANTO, PARA A FRENTE, MARCHE.!
Contrariamente ao que se poderia pensar, em ambientes que tais, nem tudo é tensão, vigilância ou stress. Matilde aproveita-se de um momento de fraca freguesia para desanuviar com o seu companheiro. Este que está sentado por trás dela ou melhor dizendo, tem-na no regaço, abraça-a, acaricia-a, cobre-a de mimos, namora-a indiferente a tudo. Matilde procura disfarçar os seus sentimentos acariciando um bom naco de mandioca que nervosamente vai descascando. É o coração a falar mais alto, é amor em tempo de venda. Que se lixe tudo o resto.
A perseverança, a firmeza, a coragem demonstrada por essas heroínas para “criar e educar os meninos” constitui um autêntico quebra-cabeças para as autoridades que nem sempre estão dotadas de sensibilidade, imaginação e criatividade para gerir determinadas situações.
Quem aprecia esta aguarela da sobrevivênvia são os turistas que vêm dos países ricos à procura de cenários exóticos. Fazem compras, fotografias , conversam, filmam numa demonstração clara de estarem a deleitar-se com o ambiente.
Os fins justificam os meios, pensam as autoridades municipais.
A Câmara da Praia deu mostras de ter uma visão do futuro. Pegou da rua mais importante do Plateau e devolveu-a aos transeuntes. Às viaturas deu-lhes outros caminhos, criou-lhes outras alternativas. Resultado dessa medida: mais vida, mais movimento, mais economia, mais dinheiro a circular, mais cultura, menos stress.
Por que carga d’ água não se inova também em S.Vicente?
Subjacente ao valor literário dapeça reside um problema a que urge dar solução. Já noutro post tive a oportunidade de aflorar a questão das vendedeiras de rua na perspectiva de que muitas serão a parede mestra de economias domésticas debilitadas por uma crise que já aflige largas fatias do tecido social...Se até em Londres há venderores de fruta nas ruas...
ResponderEliminarA respeito do "Picau", cabe dizer que não é um pára-quedista das letras. Ele ainda pertence àquele grupo cada vez mais restrito de gente que lê livros em papel. A sua sala/escritório, num primeiro andar da Rua de São João, está carregado de bons materiais adquiridos em livrarias e alfarrabistas de Lisboa. E o mnine da Rua de Matijim (onde eu o ia desafiar para a farra na nossa infância) publicou em 2001 o livro "As Aventuras de Tibúrcio e outros contos", editado pela Sonangol, em 1500 exemplares. 1499 não sei onde estarão, mas um está aqui em casa, autografado pelo autor e oferecido enquanto despachávamos um belo whisky no dito escritório sanjoanense. Ah, grande Gil Eanes que tais filhos deste!!!
ResponderEliminarO texto proporcionou-me uma viagem para um dos lugares mais típicos da nossa ilha onde se vai a cada vez com imensa satisfação. Ademais está escrito num estilo de verdadeiro mnine de Soncente com arte e brejeirice bem no estilo do lugar e também da ilha. Mas, se sou sou adepto da transformação dessa área em ruas exclusivamente para peões com vendas de toda a espécie e ainda artesãos code várioas profissões, sou contra a anarquia que existe na rua da antiga Western Telegraph onde abunda a anarquia de vendedeiras que até dificultam o tràfico nos passeios e a entrada dos clientes que vão a outros estabelecimentos.
ResponderEliminarOutra coisa que não acho piada nenhuma é a deslealdade para com as pessoas que pagam as respectivas taxas para terem lugares nos mercados de Verdura e de Peixe. Além disso estão-se nas tintas com a higiene, coisa que antigamente era reprimido pelos Policia.
Portanto, tudo bem canalizado nessa área da Praia de Bote e arredores seria extraordinàrio para turistas e um passeio agradável para os apreciadores de bafinhas e outras guloseimas típicas.
Trabalhemos para que isso seja uma realidade. Todos ganhamos
Comentário de Adriano Miranda Lima:
ResponderEliminarLogo à primeira não reconheceria o primo Picau nesta foto. Parece-me algo diferente, mas talvez seja da idade que se vai acumulando e a que ele também não escapa.
Este texto é um "cólde de pexe" bem temperado com uma valente dose de malagueta de terra e o humor típico mindelense. O Picau ganha jus a uma boa nota artística pela maneira competente como mistura as cores do pitoresco quotidiano daquele lugar do Mindelo. Mas penso que para constituir um verdadeiro quadro exótico que atraia o olhar e a câmara fotográfica do turista, algo terá de ser feito, e aqui estou em perfeita sintonia com o que dizem o Zito e o Valdemar. Assim como está, aquela zona é feia e pouco atractiva, urgindo uma reabilitação estrutural e cosmética nos moldes que o autor sugere. E ele sabe do que fala porque não só é mindelense como já foi secretário de estado do turismo.
Depois de muito tempo ter passado depois da publicação deste artigo, tive a oportunidade de o ler. É uma excelente iniciativa do Picau falar sobre Mindelo. Só o facto de falar já faz bem desanuvia e não tira ‘pnico a ninguém’. Já era tempo que muito dos nossos quadros, intelectuais etc saírem da sua toca e/ou voltarem da Passárgada e darem uma contribuição cívica em prol do Mindelo, seguindo as pegadas de tantos corajosos que tiraram a timidez de falar abertamente sobre os problemas da nossa ilha.
ResponderEliminarConcordo com o Zito Joaquim e Valdemar. É preciso uma requalificação urbana total desta baixa da nossa linda cidade que está decadente e a morrer todos os dias de inanição económica cultural e intelectual, por incúria de políticas e dos homens. Transformá-la numa zona cultural, comercial, com ruas pedonais, casas recuperadas para um turismo de rosto humano, bares, hotéis, casas de música, serão, etc, enfim uma plêiade de actividades. Esta zona pode ser um dos pulmões económicos da ilha se for reestruturada, dinamizada. Mas penso que isso só pode ser feito no quadro de uma Regionalização conseguida , pois assim como vai Cabo Verde, não se investe em nada de jeito no Mindelo.
Já tinha escrito num artigo sobre a Casa Adriana, em 2008 se não me engano, que a CMSV é pouco activa e dinâmica, poderia ter explorado os fundos comunitários para as Regiões Ultraperiféricas das Regiões da EU, para ver se caiam alguns tostãozitos para Mindelo. É preciso explorar diferentes canais, parcerias que existem no mundo em diversas áreas. A nossa Diáspora como muito enfatiza o Luiz pode ser verdadeiros ‘embaixadores’, pois temos ‘gente com cabeça’ e muitas conexões. A pessoas em Portugal Fraça EUA que olham para Cabo Verde com olhos diferentes e que podem fazer a diferença. Há milhentas coisas que se podem fazer em S. Vicente de outra maneira , para não falar de Cabo Verde. Mas enquanto não se olhar pela Diáspora e o Mundo com outros olhos nada feito. Penso que a Regionalização bem explorada pode trazer uma nova dinâmica para S. Vicente.
José F Lopes