O livrinho custou-nos 5 euros mas teríamos dado bem mais por ele, em virtude do interesse múltiplo que para nós tem. Fala de Martim Afonso de Sousa (ou fala ele pela sua própria pena, bem como o faz o irmão, Pêro Lopes de Sousa, autor do texto que reproduzimos), navegador natural de Vila Viçosa (ali nascido entre 1490 e 1550 e falecido em Lisboa em 1571) e descreve uma chegada a Cabo Verde, em viagem a caminho do Brasil. Não vamos alongar-nos sobre a biografia por vezes controversa do primeiro nem sobre a do segundo que podem ser vistas AQUI e AQUI. Passemos então à descrição da dita viagem, de há 484 anos, na parte que mais nos interessa:
Relação da navegação de Pêro Lopes de Sousa (1530-1532)
Na era de 1530, 3 dias do mês de Dezembro, parti desta cidade de Lisboa, debaixo da capitania de Martim Afonso de Sousa, meu irmão, que ia por capitão de uma armada e governador da terra do Brasil. Com vento leste saí fora da barra, fazendo caminho do sudoeste. (…)
Sábado, 24 do dito mês, tomei o sol em 15 graus e fazia o mesmo caminho a oés-sudoeste. E, como se pondo o Sol, vimos a terra ao sudoeste e a quarta de oeste; seríamos dela oito léguas. Quando foi a noite, pairámos até ao quarto de alva, que nos fizemos à vela; e quando foi de dia, reconhecemos ser a ilha do Sal.
Domingo, 25 de Dezembro, dia de Natal, pela manhã, fizemos o caminho do sul até à noite, que fomos com a ilha da Boavista. Por resguardo do baixo, que nos demorava a lés-sueste, fizemos o caminho do sul, e, quando foi noite, mandou o capitão Irmão [Martim Afonso de Sousa] a Baltasar Gonçalves, capitão da nau Princesa, que fosse diante e levasse o farol, e assim fomos até pela manhã.
Segunda-feira, 26 do dito mês, estávamos pegados com a ilha do Maio. A caravela Princesa não aparecia nem da gávea. Indo demandar o porto da ilha de Santiago, veio uma cerração, que na nau não nos víamos uns aos outros. Por não poder fazer caminho, pairámos a noite toda.
Terça-feira, 27 do dito mês, pela manhã, estávamos um tiro de bombarda de terra da ilha de Santiago da banda do norte, e o vento começou a ventar norte mui rijo e alimpou a névoa. Indo para tomar o porto da Ribeira Grande, saltou o vento de súbito ao sueste, que nos era mui contrário, e assim barlaventámos o dia todo sem poder cobrar nada. A noite passada da serração, se apartou de nós a nau São Miguel, de que era capitão Heitor de Sousa.
Quarta-feira, 28 do mês de Dezembro, pela manhã, nos acalmou o vento um tiro de falcão de terra; e o mar andava tão grosso que, se nos não ventara um pouco de vento norte, fôramos todos perdidos, porque o mar nos rolava para a terra e não podíamos surgir, porque o fundo era de pedra. Este dia, ao meio-dia, fomos a surgir na Praia. Aqui achámos uma nau de 200 tonéis e um achalupa de castelhanos; e, em chegando, nos disseram como iam ao rio de Maranhão; e o capitão Irmão lhes mandou requerer que eles não fossem ao dito rio, porquanto era de El-Rei Nosso Senhor e dentro da sua demarcação.
Quinta-feira, 29 do dito mês, pela manhã, demos à vela e fomos surgir à Ribeira Grande, onde achámos a caravela Princesa. Aqui, neste porto, tomei o Sol em 15 graus e um sexto. Aqui veio dar o navio São Miguel connosco. Nesta ilha estivemos tomando cousas necessárias para a viagem até terça-feira, 3 dias de Janeiro de 1531. Fizemo-nos à vela em se cerrando a noite, com muito vento nordeste. O galeão São Vicente perdeu duas âncoras em se fazendo à vela e a caravela Princesa uma, porque o surgidouro deste porto é todo sujo. Quando saiu a Lua, se fez o vento lés-nordeste e ventou com tanta força que não podíamos com a vela. (…)
Livro "Martim Afonso de Sousa - Cartas de Martim Afonso de Sousa (1534-1539) . Autobiografia de Martim Afonso de Sousa (1557) . Diário da Navegação de Pêro Lopes de Sousa (1530-1532)", Ed. Alfa, Biblioteca da Expansão Portuguesa, Lisboa, 1989.
Livro "Martim Afonso de Sousa - Cartas de Martim Afonso de Sousa (1534-1539) . Autobiografia de Martim Afonso de Sousa (1557) . Diário da Navegação de Pêro Lopes de Sousa (1530-1532)", Ed. Alfa, Biblioteca da Expansão Portuguesa, Lisboa, 1989.
Relato interessante que nos faz recuar séculos no tempo. O tempo que se levava para chegar a um porto de destino!
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