Arsénio de Pina |
Vou aproveitar aspectos, que me interessam agora, desse diálogo entre Umberto Eco e Carlo Martini para algumas reflexões extensíveis às pretensões e sentimentos dos que se enfileiraram na marcha do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde, isto é, tentarei puxar a brasa para a nossa sardinha colectiva.
Afirma ainda o cardeal Martini sobre o dever de proximidade e de solidariedade, sem recorrer a um Deus Pai e criador de todas as coisas, que o outro está em nós, de resto, dentro de uma máxima também cristã de fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem a nós, ou a mesma frase na negativa.
O conceito do outro em nós é considerado como o fundamento essencial de toda a ideia de solidariedade.
Como sabemos, é o outro, é o seu olhar que nos define e nos molda. Nós próprios não somos capazes de compreender quem somos sem o olhar e o respeito do outro, isto na opinião de Umberto Eco. Esta, uma das razões por que ficamos irritados quando falamos ou nos dirigimos a alguém e não obtemos resposta, isto é, quando, como costumo dizer, ês ca ta cdi, não acusam a recepção da nossa pergunta, proposta, mensagem ou crítica (ês referindo-se, claro, aos do poder).
Assim sendo, porque há, ou houve culturas que aprovam ou aprovaram massacres, genocídios, canibalismo e a humilhação de outros?
Era aí que queria chegar na abordagem do diálogo, da tolerância, das propensões alternativas e da ética destas duas personalidades ímpares da nossa época.
A razão do não respeito dos outros, da falta de solidariedade e de tolerância é consequência de o outro se limitar a respeitar unicamente a comunidade tribal, étnica ou religiosa, considerando os restantes, “bárbaros”, seres não humanos, à semelhança dos romanos da Antiguidade e os Cruzados na Idade Média, que não consideravam quem não fosse romano, humano, nem quem não era cristão. Os bárbaros eram escravizados, e os infiéis – crianças, mulheres, velhos e adultos - chacinados pelos cruzados sem dó nem piedade, sem nem terem em conta que o Deus dos cristãos e muçulmanos é o mesmo. Até os gregos da Antiguidade, tão sensíveis, racionais e inventores da democracia, escravizavam, sem estados de alma, os outros povos não gregos.
Embora haja noções comuns a todas as culturas - como a do alto e do baixo, de uma esquerda e de uma direita, de um seco e um molhado, do perceber, recordar, gozar, sofrer, etc. -, que são a base para uma ética, segundo Eco, e que levam a que se respeitem os direitos de moralidade dos outros, outras noções são conjecturas, comportamentos humanos, um tanto problemáticas que variam segundo as épocas.
Não me vou meter na questão da fé e da transcendência discutida por esses dois bodonas da intelligenzia mundial na explicação de alguns factos porque, nos nossos dias, as pessoas estão mais empenhadas nos problemas da convivência (quando não de fofoquices) do que nos da transcendência, além de poderem levar-nos para discussões que não nos interessam neste momento.
Quando observamos o que se passa na maioria dos países africanos – limito-me a estes por aí ter trabalhado largos anos e observado de perto o fenómeno – damo-nos conta de que os governantes - presidentes da república, primeiros-ministros e ministros - escolhem os seus colaboradores entre gente da sua família, tribo e etnia, numa manifestação clara de tribalização da política. Os outros que não pertencem a esse extracto familiar e populacional são praticamente considerados “bárbaros”, o que tem impedido a criação do sentimento de pertença a uma nação nesses países, por falta de cimento de solidariedade, de proximidade e de identificação do outro como igual permitindo-lhes falar no plural, em nós, incluindo o outro. O poder central, nessa circunstância, prioriza o centralismo à volta da tribo e da etnia.
Com os islamitas radicais acontece o mesmo relativamente aos povos não muçulmanos: para ganharem as delícias do Paraíso pensam de modo idêntico aos cristãos do tempo das Cruzadas – liquidar os infiéis, mesmo vivendo em liberdade, respeitados e com muito melhor qualidade de vida no país dos outros do que nos seus próprios países de origem. Para os radicais islâmicos não há lugar à liberdade como entendida no Ocidente, nem de tolerância como princípio da possibilidade de convivência com aquilo que não se partilha, e muito menos de amor ao próximo, se esse não for muçulmano, considerado infiel e inimigo a abater.
Temos aí exemplos de fundamentalismos religiosos e políticos, exemplos do que é, inegavelmente, sumamente perverso.
Entre nós, nos últimos anos, vem-se manifestando uma modalidade sui generis de fundamentalismo político-cultural que só aceita ser genuinamente cabo-verdiano os hábitos, costumes e manifestações culturais dos habitantes de Santiago, considerando todas as realidades e manifestações das restantes ilhas não autenticamente cabo-verdianas, contaminadas por influências espúrias bem longe das de matriz africana, tomada como referência, desde a música, a língua, passando por certos hábitos e costumes, como se nós-outros pertencessemos a etnias e tribos diferentes, quando, em verdade, a nossa maior e melhor particularidade, riqueza e vantagem é sermos produto de grande miscigenação que se caldeou com uma maioria de elementos africanos com uma minoria de europeus, criando uma cultura híbrida e simbiótica de predominância europeia por condicionalismos coloniais; tal facto fez esquecer e desaparecer o tribalismo, fundindo as populações num único molde, numa nação que veio a preceder e facilitar a constituição do Estado na pós-independência.
Repito: todo o fundamentalismo que leve à tribalização política é mau, porque fruto da ignorância e do obscurantismo prevalecentes em épocas remotas da Humanidade, ou da inadaptação religiosa à evolução natural das sociedades e do progresso, o que não deixa de ser paradoxal e de difícil explicação em Cabo Verde por alguns corifeus do nosso fundamentalismo serem laicos e cultos, cultura bebida no Ocidente. Bem sei que os dirigentes Khmers Vermelhos, esses facínoras inqualificáveis, frequentaram, na juventude, universidades francesas, o que não impediu que tivessem cometido genocídios do seu povo, que ainda ninguém conseguiu explicar cabalmente, mas paradoxos desses são, como presumo, irrepetíveis nos tempos que correm, embora algo semelhante tenha ocorrido, não há muito tempo, na ex-Jugoslávia.
Quando destruímos a solidariedade entre os cidadãos de uma nação, quando deixamos de ter objectivos comuns, deixamos igualmente de ter uma comunidade no verdadeiro sentido do termo. Essa nossa cepa intelectual e política com laivos fundamentalistas precisa é de ter juízo e de reconhecer que se extraviou perigosamente do caminho da quase totalidade da nação. Ao ofício de pensar – para a minoria que se dá ao trabalho de pensar - não cabe o acto de construir a verdade, mas sim o de criar um espírito de verdade. Será com esse espírito de verdade, de solidariedade, de diálogo e das propensões alternativas com profundas convicções éticas, que poderemos discutir, debater os problemas do país visando a sua solução, sem rejeitar o contributo do outro e sem que ninguém tente erguer-se acima dos outros. É deste modo que gostaríamos de debater a regionalização do país e outros assuntos pertinentes de interesse geral que criam bolor em gavetas ministeriais.
Termino, ad cautelum, formulando uma pergunta: haverá lugar para a ética na política, como queria Hegel, ou simplesmente astúcia, como ensinava Maquiavel? Cabe aos políticos responder, não com palavras, de que já estamos saturados, pela sua vacuidade, mas com decisões que permitam alternativas e conjugação de esforços.
Parede, Fevereiro.2013
Arsénio Fermino de Pina
Eu já conhecia este texto, mas merece ser revisitado e com muito prazer o fiz. O Arsénio vai sempre ao fundo das questões e não tem medo de pôr o dedo nas nossas feridas, denunciando as nossas fragilidades e fraquezas individuais e colectivas, mas sem deixar de oferecer sugestões valiosas para a sua superação.
ResponderEliminarNo final, pergunta: “haverá lugar para a ética na política, como queria Hegel, ou simplesmente astúcia, como ensinava Maquiavel? Cabe aos políticos responder, não com palavras, de que já estamos saturados, pela sua vacuidade, mas com decisões que permitam alternativas e conjugação de esforços.”
A isso respondo, ou melhor, não respondo, dizendo que a política, tal como a concebemos e praticamos, dificilmente dará o braço à ética. Para Aristóteles, conforme explica no seu livro “Ética a Nicómano”, a ética precede a política e reside nas nossas concepções idealísticas sobre o homem e o significado da vida. Transferi-la para a racionalidade prática da política é um esforço quimérico.