Adriano Miranda Lima |
Filinto: ̶ Amigo, retomemos então a questão do ensino do (e em) crioulo, que para mim será o que determinará o sucesso ou a falência do processo. Digamos que o ensino será o veio de transmissão de todo o seu mecanismo funcional. Será importante analisar de que modo e em que momento o crioulo será encaixado em toda a engrenagem.
Elísio: ̶ Sim, o primeiro passo será constituir, como ponto de partida, um corpo docente, devidamente preparado e habilitado para o ensino do crioulo, que antes de tudo tratará da formação pedagógica dos professores nos mais diferentes sectores e estruturas do sistema de ensino, básico, secundário e superior. Isto implica que a norma-padrão esteja já bem definida e consensualizada, restando, no entanto, saber como irá ela conformar-se com a manutenção de todas as variedades do crioulo. Haverá necessidade de um cuidadoso faseamento de todo o processo de implementação, com a devida consolidação de cada etapa, avançando e recuando para poder avançar melhor, se for caso disso. sem o que cairemos no mais descontrolado improviso. Para não dizer uma autêntica balbúrdia linguística, com graves implicações sociais e psicológicas.
Filinto: ̶ Improviso em que se cairá fatalmente se o processo não for concebido e executado com o necessário embasamento científico. Mas convinha desde já saber que prioridade, que meios e que suporte pedagógico restarão para o ensino da língua portuguesa, enquanto paralelamente se empenha no crioulo. Sim, porque não é crível que o ensino e a formação nessa língua sofram desacelerações e constrangimentos enquanto não se atingirem os padrões de sucesso almejados com o crioulo. Se não for bem acautelada essa condição, o resultado será um desastre certo, porque se perdem as competências anteriormente garantidas com o português, poucas que fossem, sem terem sido alcançados os objectivos visados com o crioulo, no todo ou em parte. Sobre esta questão, o Professor José Fortes Lopes, entre outras personalidades, tem vindo a fazer sérias advertências, que parece não merecerem a devida atenção dos responsáveis.
Filinto: ̶ Estás a referir-te à fase em que se sobreporá o ensino nas duas línguas. No entanto, caso se mantenha a intenção de não abdicar do ensino do português, a duplicação de recursos humanos manter-se-á pelo tempo fora. De facto, não vejo como poderão ser simultaneamente inclusivas duas realidades não somente distintas mas que se oporão na disputa de prioridade e de recursos.
Elísio: ̶ Rapaz, o desafio vai ser tremendo e não posso deixar de tirar o meu chapéu àqueles que ousam enfrentá-lo como se fosse a mais crítica prova das suas vidas. O facto de levantarmos questões e de chamar a atenção da comunidade para este processo, não significa que não respeitemos os que tomaram a opção de ir pelo ignoto caminho de uma aventura de desfecho imprevisível.
Filinto: ̶ Concordo com o que dizes. Todavia, é sempre de questionar se uns poucos têm o direito de arrastar todo um povo para uma situação de verdadeira incógnita. E importará saber se se prevê arrepiar caminho caso os efeitos desta medida se verifiquem claramente perniciosos e com reflexos no sistema educativo que não tardarão a repercutir-se em outros sectores vitais do país. Se a instrução é a pedra angular do sistema económico e social em qualquer sociedade, até que ponto se poderá assistir à sua ruína sem que os sinos toquem a rebate a anunciar a suspensão e a retroversão do que está a revelar-se nocivo?
Elísio: ̶ E olha, Filinto, que ainda não entrámos no cerne do que poderá ser o mais crucial dos problemas. Se o Governo levar por diante a sua promessa de manter e respeitar cada uma das variedades dialectais, do que duvido, mas se por hipótese assim acontecer, como é que vai ser a sua implementação? Já pensaste bem no problema?
Elísio: ̶ E estamos só a falar de aspectos de concretização prática e da desmesurada grandeza dos seus custos reais. Porém, se transferirmos o desafio para a esfera íntima do ensino e da formação, em que não é concebível que o instrumento linguístico passe a ser mais um agravante das dificuldades naturais do processo de aprendizagem, raia o insólito imaginar que numa determinada aula com alunos oriundos de várias ilhas, cada um tenha a faculdade de usar o seu próprio crioulo, com os respectivos meios de suporte (gramática, dicionário, etc.), para atingir os objectivos de aprendizagem. Calcule-se a Torre da Babel crioula que se instalará em cada estabelecimento de ensino.
Filinto: ̶ Conclui-se assim que estamos perante um terrível dilema. Se todas as variedades forem alienadas das suas prerrogativas naturais para serem integradas num único padrão, as populações vão indignar-se com o que não passa de uma violência moral, para não dizer um afrontamento histórico. Se, por outro lado, forem dadas a todas as variedades igual primazia no sistema de ensino, assistir-se-á, sem dúvida alguma, à total falência de uma solução demagógica e irresponsável, que, no entanto, e como já analisámos, poderá não passar de um mero expediente dilatório.
Elísio: ̶ Vamos lá ver uma coisa. Dou de barato que a filosofia de toda esta mudança radica na convicção de que é com o crioulo que realizamos os nossos legítimos anseios como povo, quaisquer que sejam eles, daí a intenção de o envolver em todo o espectro da vida nacional. E, neste caso, o ensino não pode deixar de ser o motor impulsionador de toda a mudança. Sabemos que a concepção do sistema moderno de ensino se funda em três pilares fundamentais: o intelectual, o instrumental e o analítico. Mas o entendimento do Governo é que o crioulo será o cimento para o reforço transversal daqueles pilares, enfim, a “afectividade” a que se referiu o Primeiro-Ministro. Deduzo assim que, no fundo, a ideia-força perseguida é que só o crioulo é capaz de realizar a função de ponte entre os vectores da cognição com a qual apreendemos a realidade e atingimos o conhecimento. Ou seja, acreditam que a íngua materna terá potencialidades de ordem espiritual que a língua portuguesa não consegue carrear para os cabo-verdianos. Não há dúvida que o crioulo tem a sua vocação genética virada especialmente para as manifestações folclóricas e para a espontaneidade das emoções e da afectividade. Por exemplo, para o cabo-verdiano, não fará sentido contar em português uma anedota relacionada com o contexto social das ilhas. Resta, porém, saber como se comportará o crioulo quando lhe vestirem uma farpela gramatical, amarrando-o a normas rígidas. Não creio que as crónicas do Zizim Figueira nos soassem da mesma maneira sem a espontaneidade e a liberdade do seu linguajar típico mindelense. Contudo, uma coisa são os afloramentos espontâneos da alma, outra é a racionalização do processo do conhecimento. Bem disse Max Weber que a realidade é infinitamente complexa, tanto quantitativa quanto qualitativamente, de forma que nenhum conceito abstracto pode abarcá-la.
Filinto: ̶ Mergulhaste fundo no problema, meu caro. Mas repara que às vezes a alma popular exprime a verdade com uma veemência e simplicidade que os intelectuais não conseguem senão com grandes dissertações. Há dias, li um artigo do Dr. Arsénio de Pina em que contou um episódio engraçado. Uma cabo-verdiana, ao saber que o filho ia passar a aprender o crioulo, afirmou: “Adeche, criol ele nascê c’ele prindid; bsot insnál maz ê quel português”.
Elísio: ̶ Ah, ah, ah, fizeste-me rir agora. Recapitulando, toda esta problemática resulta da convicção de que o crioulo está socialmente subalternizado e que a sua promoção a um estatuto mais elevado (língua do ensino, no caso em apreço) produzirá efeitos positivos no processo de aprendizagem. Alguns atribuem as nossas dificuldades naturais no domínio do português a uma situação de diglossia, daí convencerem-se de que a instituição do enino em crioulo não só será um factor de desbloqueamento mental como promoverá uma efectiva igualdade sociolinguística. No entanto, estão a ignorar a enormíssima dificuldade que será obrigar as nossas crianças a aprender ao mesmo tempo o crioulo e o português, cada uma destas línguas com o seu respectivo alfabeto, um fonológico, o ALUPEC, outro etimológico, o alfabeto latino. Para não falar dos constrangimentos que decorrem da supressão da letra “C” no ALUPEC e da ausência de solução para o caso dos ditongos, que existem em algumas variedades do crioulo. Cito apenas dois exemplos, pois o imbróglio não é pequeno.
Filinto: ̶ Pergunto se as alegadas dificuldades no domínio do português imputadas à influência do crioulo são mesmo uma realidade incontornável, ou se apenas serviram de pretexto para justificar uma decisão política visando outro objectivo. Sim, porque outra opção poderia ser melhorar e investir mais no português.
Filinto: ̶ Queres tu então concluir que não há uma razão suficientemente válida para retirar à língua portuguesa o lugar que tem tido no nosso sistema de ensino.
Elísio: ̶ É isso mesmo, o que não significa que o crioulo não possa ser objecto de um processo de estudo e investigação científicos para melhor o compreender e enquadrar na nossa realidade social. Ir além disso tem riscos enormes que podem desestabilizar o país, com danos porventura irreparáveis. Bem, por ora chega. Continuamos amanhã à mesma hora e no mesmo lugar.
Tomar, 13 de Março de 2015
Adriano Miranda Lima
Com esta parte Adriano toca no busílis do problema, a questão do ensino, pelo que é de leitura obrigatória para qualquer pessoa preocupada com as implicações desta Revolução ( eh li que corda tita bem deçapá) Ao longo do diálogo entre Elísio e Filinto nos apercebemos da verdadeira dimensão da problemática da oficialização.
ResponderEliminarSublinho o questionamento do Filinto """ se uns poucos têm o direito de arrastar todo um povo para uma situação de verdadeira incógnita. E importará saber se se prevê arrepiar caminho caso os efeitos desta medida se verifiquem claramente perniciosos e com reflexos no sistema educativo que não tardarão a repercutir-se em outros sectores vitais do país. Se a instrução é a pedra angular do sistema económico e social em qualquer sociedade, até que ponto se poderá assistir à sua ruína sem que os sinos toquem a rebate a anunciar a suspensão e a retroversão do que está a revelar-se nocivo?"""
(Isto só pode ser obra dessas mancomunados alupecadores ah ah ah ah)
ResponderEliminarEnsino primário moçambicano será ministrado nas 16 línguas nativas a partir de 2017
A decisão de introduzir o ensino bilingue nas escolas primárias moçambicanas foi divulgada pela diretora nacional do Ensino Primário, Antuía Soverano, durante o Seminário de Revisão Linguística dos Planos Analíticos do Ensino Bilingue, que está a decorrer na capital moçambicana.
"O ensino primário pode ser lecionado monolingue e também na modalidade bilingue, onde as crianças começam o processo de socialização e aprendizagem na sua língua materna e depois têm a transição para a língua de instrução após consolidarem os conhecimentos e capacidades na sua própria língua", afirmou Soverano, explicando as vantagens da introdução do sistema bilingue.
Com a inovação, assinalou a fonte, o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, pretende melhorar os resultados no ensino primário, promover a interação na escola e agilizar o processo de socialização dos alunos.
Antuía Soverano afirmou que estão a ser preparados instrumentos de apoio aos professores, para a implementação do ensino bilingue, nomeadamente a produção de materiais de ensino nas línguas locais.
A utilização das 16 línguas nativas de Moçambique, ao lado da língua portuguesa, no ensino primário, irá traduzir a expansão deste modelo, uma vez que o ensino bilingue já tinha sido introduzido a título experimental em algumas escolas do país.
O novo modelo implica que cada escola primária lecione na língua nativa mais falada na comunidade em que está inserida, em paralelo com português.
Vários estudos sobre o ensino primário têm apontado o uso de português como uma barreira à assimilação dos conteúdos, uma vez que a maioria das crianças moçambicanas não tem o português como língua materna