Mais uma vez com tarefas apresentativas pela frente, Praia de Bote abranda. Até 26 de Abril surgiremos apenas uma vez por outra, enquanto apreciamos umas "Crónicas [realmente] Desaforadas" que estão aqui em cima da nossa secretária e escrevemos sobre elas...
Chegada logo depois do aviso acima colocado, ainda deixamos aos leitores do Pd'B a VII parte do diálogo (e agora, em VI e VII partes também "pluriálogo") entre os já famosos amigos que discutem urbana e civilizadamente as questões da lingua cabo-verdiana.
(Este diálogo tem decorrido entre duas personagens fictícias, mas volta e meia podem “convidar” para a mesa quem possa contribuir para o enriquecimento do debate, como foi agora o caso)
Elísio: ̶ Filinto, continuando a nossa conversa, talvez possamos hoje debruçar-nos sobre aquilo que consensualmente se considera a riqueza do crioulo na sua diversidade ao nível de cambiantes expressivos e mesmo lexicais, para não falar no âmbito da fonética.
Filinto: ̶ E que é precisamente a razão para um sem número de interrogações que grande parte dos observadores tem levantado sobre a dificuldade, se não mesmo a impossibilidade, de padronizar a curto prazo o crioulo, visando escrita e, ulteriormente, a oralidade.
Elísio: ̶ Temo que isso exija um trabalho ciclópico, ainda por cima com a amarga sensação de que poderá estar votado ao insucesso. Por acaso, estive recentemente a ler um livro de “estórias” da autoria de João Lopes Filho, natural de S. Nicolau, cuja temática mergulha no imaginário rural da sua ilha. Isto só para dizer que encontrei no livro termos que eu não conhecia, ou de que não me lembrava sequer ter ouvido casualmente, por serem típicos ou mais correntes na ilha. Por exemplo: curcutir (bisbilhotar); furisco (boçal); ninclitar (poupar); plenguice (tolice); num rufo (rapidamente); etc.
Filinto: ̶ Eu também não conheço esses termos, que são tão típicos de S. Nicolau como outros há também típicos em cada uma das ilhas do arquipélago, se bem que em cada grupo de ilhas haja, digamos assim, um tronco linguístico comum definidor de um certo grau de homogeneidade dialectal. O mesmo é dizer que entre os falares de S. Vicente, S. Antão, S. Nicolau e Sal, e mesmo Boavista, existe uma similitude de linguagem vocabular e expressividade que distingue o seu crioulo do das ilhas do Sotavento, embora cada ilha tenha, é certo, as suas particularidades lexicais.
Mas, olha, rapaz, tive uma ideia. E se convidássemos para o nosso diálogo o Dr. Baltasar Lopes da Silva e aqueles que participaram naquela mesa-redonda no já longínquo ano de 1956 sobre a “Seroantropologia das Ilhas de Cabo Verde” (1)? Claro que nem todos terão a palavra porque o que mais nos interessa aqui é a questão da língua e a este respeito quem dominou o debate foi o nosso saudoso mestre.
Elísio: ̶ Estás a mangar comigo ou quê? Tens capacidade mediúnica ou queres brincar ao senhor Henrique Baptista do Racionalismo Cristão?
Filinto: ̶ Ah-ah-ah. Não me faças rir. Não, Elísio, vais ver que é fácil, é só trazer alguns deles à nossa mesa recuperando o depoimento vertido naquele debate realizado há 59 anos. Para começar, ouçamos o Dr. Aníbal Lopes da Silva, presidente da mesa-redonda, que introduziu a discussão sobre o crioulo.
"Aníbal Lopes da Silva": ̶ “A língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional. Com riqueza fonética e a plasticidade de um verdadeiro idioma, ou é apenas um “falar útil”, bom como instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais?” Eis o problema agora em discussão.
"Baltasar Lopes": ̶ “Bom. Originariamente, o núcleo primitivo da formação do crioulo devia ter um carácter exclusivamente profissional, portanto, revestia um carácter de falar útil. Modernamente não. O crioulo oferece hoje principalmente aquilo que Deschanel chamava formação, isto é, não estagnou. Apresenta uma capacidade de enriquecimento em vários domínios, em todos os domínios em que uma língua se pode enriquecer. Por exemplo, um dos aspectos: o fonético. Foi Maurice Ramon quem apontou que muita gente supõe que uma língua se enriquece pela sua sintaxe, pelo vocabulário, quando, pelo contrário, a maior tendência de aristocratização de uma língua é a fonética; e então nisto Cabo Verde é uma terra ideal para um dialetólogo e para um romanista. Como todas as línguas, temos na nossa um fundo fonético tradicional, fundo que depois é reconstruído. É claro que hoje – e não é só hoje, a situação vem de há muito tempo – há um contacto bastante assíduo com a cultura europeia veiculada, ou por europeus ou – e isto é mais importante – por indivíduos naturais das ilhas, indivíduos ilustrados ou pelo menos alfabetizados. De modo que se nota a influência constante da língua mãe”.
Elísio: ̶ Desculpe interrompê-lo, Dr. Baltasar, como se exerce ou como se compreende esta influência?
"Baltasar Lopes": ̶ Bem, “isto compreende-se porque o crioulo está numa situação diferente da que estiveram o português, ou qualquer língua românica com o latim. Quando certas línguas se formaram, o latim já não era uma realidade viva, ao passo que nós notamos um dialecto, um idioma, que evolui sob os olhos da língua matriz, sob uma influência constante de tal língua matriz. Há este tal princípio de aristocratização que se nota por toda a parte.”
Continuando a minha exposição… “Uma palavra de fundo tradicional é transformada imediatamente na boca do povo por influência das pessoas ilustradas e assume uma fisionomia fonética muito mais fácil do que o português. Para isso contribuíram vários factores que não posso referir aqui (alotropismo, formas divergentes). É rara a palavra que não assuma aqui duas fisionomias fonéticas: a fisionomia tradicional e uma fisionomia muito próxima do português. É claro que a tradicional caracteriza-se principalmente por dois fenómenos fundamentais, um deles decorrente do outro: o primeiro é a atenuação das vogais átonas, donde o encontro violento de consoantes; é então o mecanismo de assimilação que tem na ilha de Santo Antão o seu paraíso. O foneticista que vá à ilha de Santo Antão, e que se interesse pelos fenómenos de assimilação, encontrará lá elementos com abundância, vitalidade na fonética, vitalidade no léxico. Muita gente também supõe que o crioulo tem um léxico na sua maioria de origem africana. Enganam-se. Eu suponho poder falar particularmente sobre isso porque me dei a um trabalho de Topsius que parece, ao fim e ao cabo, que vai ser publicado: e nesse trabalho entro no léxico. A certa altura dei-me ao trabalho de verificar a percentagem de termos que eu tinha a certeza de não serem de origem portuguesa. Percentagem mínima: 3 %, se tanto. E no conjunto do léxico é a mesma coisa. É claro que quem não conheça o crioulo desnorteia-se perante as formas fonéticas.”
Filinto: ̶ Depreende-se, Dr. Baltasar, que o nosso crioulo, embora com algumas diferenças morfológicas e fonéticas entre as ilhas, ou talvez por isso mesmo, é uma língua viva e em evolução…
"Baltasar Lopes": ̶ “É uma língua viva, viva e com grandes possibilidades. Porque está adquirindo cada dia novos recursos expressionais. É claro, há que atender ao seguinte: o crioulo trabalha sobre um sistema irremediavelmente estabelecido: o sistema morfológico. Creio que o primeiro que estabeleceu este ponto de vista foi Tarracher e mais tarde Menier, que disseram: o que serve para definir uma língua e a sua filiação noutra é a estrutura morfológica, mais do que a fonética e mais do que o léxico e mais do que a sintaxe. Reduzir o sistema morfológico do português é uma fatalidade que acompanha todas as línguas quando evoluem em domínios novos: começam sistematicamente a simplificar o seu sistema morfológico, que depois compensam com processos periplásticos. E o crioulo apresenta esta coisa curiosa: a sua vitalidade dá-lhe a possibilidade de responder positivamente a um problema posto em 1936 pelo Osório de Oliveira e por mim: “será o crioulo uma língua?”. É claro, não é uma língua de civilização, é uma língua regional, com todas as características, todas as possibilidades.”
"Almerindo Lessa": ̶ Dr. Baltasar, eu já conhecia algumas das crónicas radiofónicas em que contestou um ou outro pormenor da crítica de Gilberto Freire a propósito do crioulo e tinha lido na Claridade o seu magnífico trabalho sobre “ Uma experiência românica dos trópicos”. Mas eu queria provocá-lo, porque o meu juízo também fora provocado por uma opinião inserta num estudo acerca dos termos médicos do crioulo cabo-verdiano: “a terminologia dos filhos de Cabo Verde mostra-se mais pobre do que o léxico similar plebeu das ilhas adjacentes”.”
"Baltasar Lopes": ̶ “Isso é que não é verdade. Pode dizer que isso não é verdade. O vocabulário básico do crioulo não é menos rico do que o falar básico de qualquer outro individuo da metrópole. Pelo contrário. E a explicação talvez resida no maior contacto que houve antigamente entre o clérigo e o iletrado. Talvez por razões eclesiásticas. O teor de vida das ilhas era um pouco diferente, se bem que ainda hoje exista esse contacto. Qualquer de nós é bilingue. Eu falo o crioulo de S. Nicolau como qualquer rústico.
Além disso, aparecem termos cultos na boca do povo. Há bastante tempo, fui a S. Nicolau. Desembarquei no Tarrafal e foi meu companheiro de viagem um rapaz chamado Cesário, lá do Cabeçalinho. A certa altura, chegámos a um ponto chamado “os galegos”. O lugar é um bocado escuro, um bocado soterrado, e sabe qual o é o nome que ele deu àquele ermo: “ neste clipse”, neste eclipse. Está a ver a imaginação topológica, a riqueza, a fertilidade de transposição metafórica. Além disso, ainda lá se emprega o termo no sentido de situação difícil. Disseram-me também que em Santo Antão, para designar uma situação difícil, em que o individuo está com burro de Buridan, se diz” cis e caris”; entre Cila e Caríbdis!
O vocabulário é talvez, pelo contrário, a nossa maior riqueza. Para linguagem coloquial, para a linguagem de todos os dias, o crioulo tem tudo.”
Elísio: ̶ Dr. Baltasar, por nada deste mundo perderia a oportunidade de o ouvir dissertar sobre o nosso crioulo, e creio que o meu amigo Filinto pensa exactamente o mesmo. Das suas palavras depreende-se que o crioulo tem potencialidades morfológicas e lexicais para continuar a evoluir e tornar-se uma verdadeira língua. Mas também disse que a sua evolução será sempre sob a influência da língua portuguesa, da qual colhe quase todo o seu léxico. E muito oportunamente deixou claro que apenas 3% do seu léxico, “se tanto”, são de outra origem. Ficou claro também nas suas palavras que a fonética é um dos factores de enriquecimento do crioulo, mais do que a morfologia e a sintaxe, e para isso citou Maurice Ramom. E quando põe a tónica na fonética, então é iniludível que as variedades dialectais são, no conjunto das nossas ilhas, um campo fértil e onde concorrem influências as mais diversas para a evolução da nossa língua materna, em vez de, pelo contrário, serem encaradas como algo a descartar na pressa e precipitação de padronizar e oficializar o crioulo.
Filinto: ̶ Já agora, Dr. Baltasar, se me permite, e como estamos num debate em que o espaço e o tempo se cruzam e se unificam no plano do confronto e da clarificação dos conceitos, gostaria de o ouvir sobre a entrevista que deu ao “Jornal Ilustrado”, português, na sua edição de 12 de Maio de 1988. Assim, uma pergunta, colocando-me na pele de quem então o entrevistou: ̶ “Em Cabo Verde volta a agitar-se a bandeira do crioulo como instrumento de criação literária. Como linguista e filólogo, o que tem a dizer?”
"Baltasar Lopes": ̶ “Bem, há demagogia e ignorância. Esta temática do crioulo é bastante complicada e não é para qualquer. É evidente que o crioulo como língua natural, falado naturalmente, existe por si. Existe por si inapelavelmente. Agora, como língua literária está dependente de dois pressupostos. Primeiro, em Cabo Verde não há um crioulo, há crioulos. Qual será o crioulo que há-de assumir este papel de língua literária no caso de poder vir a sê-lo?”
Elísio: ̶ “O de Santiago? O de S. Vicente?”
"Baltasar Lopes": ̶ “Era preciso que houvesse já uma literatura, um passado literário escrito, para nós podermos escolher o crioulo padrão, e ele não existe. Se se continuar a escrever o crioulo como se escreve (ou como não se escreve) actualmente, isto é um problema para ser resolvido pelos nossos netos. Têm de passar duas gerações para este assunto ficar limado e nessa altura ver-se claro. Por enquanto, o que se diga é prematuro. Não confundamos a visibilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI, e no entanto foi preciso esperar até ao século VIII para se encontrar umas palavras do latim bárbaro em que se revê o português, disfarçado. Agora, o português propriamente dito só no século XIII. Vê? A distância é de cinco, seis séculos. E ainda há o problema da dignidade literária, que nos remete para Camões e, na peugada, Vieira e Bernardes.”
Filinto: ̶ Elísio, passaram-se 27 anos desde esta entrevista dada pelo Dr. Baltasar. Entretanto, a situação evoluiu e hoje o governo apressa-se a implementar a padronização e a elevar o crioulo ao estatuto de língua oficial e de ensino, e implicitamente literária, com toda a suas implicações de ordem editorial. O Dr. Baltasar estimou o mínimo de duas gerações para o crioulo ser uma ferramenta linguística devidamente limada e esmerilada para realizar os fins que dele se espera. Penso que aquela estimativa foi algo optimista, mas enfim…
Elísio: ̶ E mal sabia o Dr. Baltasar que o que está por detrás desta problemática não é apenas a dignidade literária do crioulo, mas sobretudo a intenção de arrear o português da nossa realidade linguística.
Filinto: ̶ Bem, para isso talvez sejam necessárias umas dez gerações, se olharmos para o historial da evolução e consolidação do português e outras línguas europeias. Fiquemos hoje por aqui. Quem sabe se de outra dimensão do tempo poderá vir o Dr. Baltasar Lopes iluminar o espírito dos cabo-verdianos.
Elísio: ̶ Tal como o fez em vida, amigo.
(Este diálogo tem decorrido entre duas personagens fictícias, mas volta e meia podem “convidar” para a mesa quem possa contribuir para o enriquecimento do debate, como foi agora o caso)
Adriano Miranda Lima |
Filinto: ̶ E que é precisamente a razão para um sem número de interrogações que grande parte dos observadores tem levantado sobre a dificuldade, se não mesmo a impossibilidade, de padronizar a curto prazo o crioulo, visando escrita e, ulteriormente, a oralidade.
Elísio: ̶ Temo que isso exija um trabalho ciclópico, ainda por cima com a amarga sensação de que poderá estar votado ao insucesso. Por acaso, estive recentemente a ler um livro de “estórias” da autoria de João Lopes Filho, natural de S. Nicolau, cuja temática mergulha no imaginário rural da sua ilha. Isto só para dizer que encontrei no livro termos que eu não conhecia, ou de que não me lembrava sequer ter ouvido casualmente, por serem típicos ou mais correntes na ilha. Por exemplo: curcutir (bisbilhotar); furisco (boçal); ninclitar (poupar); plenguice (tolice); num rufo (rapidamente); etc.
Filinto: ̶ Eu também não conheço esses termos, que são tão típicos de S. Nicolau como outros há também típicos em cada uma das ilhas do arquipélago, se bem que em cada grupo de ilhas haja, digamos assim, um tronco linguístico comum definidor de um certo grau de homogeneidade dialectal. O mesmo é dizer que entre os falares de S. Vicente, S. Antão, S. Nicolau e Sal, e mesmo Boavista, existe uma similitude de linguagem vocabular e expressividade que distingue o seu crioulo do das ilhas do Sotavento, embora cada ilha tenha, é certo, as suas particularidades lexicais.
Mas, olha, rapaz, tive uma ideia. E se convidássemos para o nosso diálogo o Dr. Baltasar Lopes da Silva e aqueles que participaram naquela mesa-redonda no já longínquo ano de 1956 sobre a “Seroantropologia das Ilhas de Cabo Verde” (1)? Claro que nem todos terão a palavra porque o que mais nos interessa aqui é a questão da língua e a este respeito quem dominou o debate foi o nosso saudoso mestre.
Elísio: ̶ Estás a mangar comigo ou quê? Tens capacidade mediúnica ou queres brincar ao senhor Henrique Baptista do Racionalismo Cristão?
Filinto: ̶ Ah-ah-ah. Não me faças rir. Não, Elísio, vais ver que é fácil, é só trazer alguns deles à nossa mesa recuperando o depoimento vertido naquele debate realizado há 59 anos. Para começar, ouçamos o Dr. Aníbal Lopes da Silva, presidente da mesa-redonda, que introduziu a discussão sobre o crioulo.
"Aníbal Lopes da Silva": ̶ “A língua crioula é um idioma de poupança e de adaptação regional. Com riqueza fonética e a plasticidade de um verdadeiro idioma, ou é apenas um “falar útil”, bom como instrumento de comunicação, mas incapaz para outras realizações intelectuais?” Eis o problema agora em discussão.
"Baltasar Lopes": ̶ “Bom. Originariamente, o núcleo primitivo da formação do crioulo devia ter um carácter exclusivamente profissional, portanto, revestia um carácter de falar útil. Modernamente não. O crioulo oferece hoje principalmente aquilo que Deschanel chamava formação, isto é, não estagnou. Apresenta uma capacidade de enriquecimento em vários domínios, em todos os domínios em que uma língua se pode enriquecer. Por exemplo, um dos aspectos: o fonético. Foi Maurice Ramon quem apontou que muita gente supõe que uma língua se enriquece pela sua sintaxe, pelo vocabulário, quando, pelo contrário, a maior tendência de aristocratização de uma língua é a fonética; e então nisto Cabo Verde é uma terra ideal para um dialetólogo e para um romanista. Como todas as línguas, temos na nossa um fundo fonético tradicional, fundo que depois é reconstruído. É claro que hoje – e não é só hoje, a situação vem de há muito tempo – há um contacto bastante assíduo com a cultura europeia veiculada, ou por europeus ou – e isto é mais importante – por indivíduos naturais das ilhas, indivíduos ilustrados ou pelo menos alfabetizados. De modo que se nota a influência constante da língua mãe”.
Elísio: ̶ Desculpe interrompê-lo, Dr. Baltasar, como se exerce ou como se compreende esta influência?
"Baltasar Lopes": ̶ Bem, “isto compreende-se porque o crioulo está numa situação diferente da que estiveram o português, ou qualquer língua românica com o latim. Quando certas línguas se formaram, o latim já não era uma realidade viva, ao passo que nós notamos um dialecto, um idioma, que evolui sob os olhos da língua matriz, sob uma influência constante de tal língua matriz. Há este tal princípio de aristocratização que se nota por toda a parte.”
Continuando a minha exposição… “Uma palavra de fundo tradicional é transformada imediatamente na boca do povo por influência das pessoas ilustradas e assume uma fisionomia fonética muito mais fácil do que o português. Para isso contribuíram vários factores que não posso referir aqui (alotropismo, formas divergentes). É rara a palavra que não assuma aqui duas fisionomias fonéticas: a fisionomia tradicional e uma fisionomia muito próxima do português. É claro que a tradicional caracteriza-se principalmente por dois fenómenos fundamentais, um deles decorrente do outro: o primeiro é a atenuação das vogais átonas, donde o encontro violento de consoantes; é então o mecanismo de assimilação que tem na ilha de Santo Antão o seu paraíso. O foneticista que vá à ilha de Santo Antão, e que se interesse pelos fenómenos de assimilação, encontrará lá elementos com abundância, vitalidade na fonética, vitalidade no léxico. Muita gente também supõe que o crioulo tem um léxico na sua maioria de origem africana. Enganam-se. Eu suponho poder falar particularmente sobre isso porque me dei a um trabalho de Topsius que parece, ao fim e ao cabo, que vai ser publicado: e nesse trabalho entro no léxico. A certa altura dei-me ao trabalho de verificar a percentagem de termos que eu tinha a certeza de não serem de origem portuguesa. Percentagem mínima: 3 %, se tanto. E no conjunto do léxico é a mesma coisa. É claro que quem não conheça o crioulo desnorteia-se perante as formas fonéticas.”
Filinto: ̶ Depreende-se, Dr. Baltasar, que o nosso crioulo, embora com algumas diferenças morfológicas e fonéticas entre as ilhas, ou talvez por isso mesmo, é uma língua viva e em evolução…
"Baltasar Lopes": ̶ “É uma língua viva, viva e com grandes possibilidades. Porque está adquirindo cada dia novos recursos expressionais. É claro, há que atender ao seguinte: o crioulo trabalha sobre um sistema irremediavelmente estabelecido: o sistema morfológico. Creio que o primeiro que estabeleceu este ponto de vista foi Tarracher e mais tarde Menier, que disseram: o que serve para definir uma língua e a sua filiação noutra é a estrutura morfológica, mais do que a fonética e mais do que o léxico e mais do que a sintaxe. Reduzir o sistema morfológico do português é uma fatalidade que acompanha todas as línguas quando evoluem em domínios novos: começam sistematicamente a simplificar o seu sistema morfológico, que depois compensam com processos periplásticos. E o crioulo apresenta esta coisa curiosa: a sua vitalidade dá-lhe a possibilidade de responder positivamente a um problema posto em 1936 pelo Osório de Oliveira e por mim: “será o crioulo uma língua?”. É claro, não é uma língua de civilização, é uma língua regional, com todas as características, todas as possibilidades.”
"Almerindo Lessa": ̶ Dr. Baltasar, eu já conhecia algumas das crónicas radiofónicas em que contestou um ou outro pormenor da crítica de Gilberto Freire a propósito do crioulo e tinha lido na Claridade o seu magnífico trabalho sobre “ Uma experiência românica dos trópicos”. Mas eu queria provocá-lo, porque o meu juízo também fora provocado por uma opinião inserta num estudo acerca dos termos médicos do crioulo cabo-verdiano: “a terminologia dos filhos de Cabo Verde mostra-se mais pobre do que o léxico similar plebeu das ilhas adjacentes”.”
"Baltasar Lopes": ̶ “Isso é que não é verdade. Pode dizer que isso não é verdade. O vocabulário básico do crioulo não é menos rico do que o falar básico de qualquer outro individuo da metrópole. Pelo contrário. E a explicação talvez resida no maior contacto que houve antigamente entre o clérigo e o iletrado. Talvez por razões eclesiásticas. O teor de vida das ilhas era um pouco diferente, se bem que ainda hoje exista esse contacto. Qualquer de nós é bilingue. Eu falo o crioulo de S. Nicolau como qualquer rústico.
Além disso, aparecem termos cultos na boca do povo. Há bastante tempo, fui a S. Nicolau. Desembarquei no Tarrafal e foi meu companheiro de viagem um rapaz chamado Cesário, lá do Cabeçalinho. A certa altura, chegámos a um ponto chamado “os galegos”. O lugar é um bocado escuro, um bocado soterrado, e sabe qual o é o nome que ele deu àquele ermo: “ neste clipse”, neste eclipse. Está a ver a imaginação topológica, a riqueza, a fertilidade de transposição metafórica. Além disso, ainda lá se emprega o termo no sentido de situação difícil. Disseram-me também que em Santo Antão, para designar uma situação difícil, em que o individuo está com burro de Buridan, se diz” cis e caris”; entre Cila e Caríbdis!
O vocabulário é talvez, pelo contrário, a nossa maior riqueza. Para linguagem coloquial, para a linguagem de todos os dias, o crioulo tem tudo.”
Elísio: ̶ Dr. Baltasar, por nada deste mundo perderia a oportunidade de o ouvir dissertar sobre o nosso crioulo, e creio que o meu amigo Filinto pensa exactamente o mesmo. Das suas palavras depreende-se que o crioulo tem potencialidades morfológicas e lexicais para continuar a evoluir e tornar-se uma verdadeira língua. Mas também disse que a sua evolução será sempre sob a influência da língua portuguesa, da qual colhe quase todo o seu léxico. E muito oportunamente deixou claro que apenas 3% do seu léxico, “se tanto”, são de outra origem. Ficou claro também nas suas palavras que a fonética é um dos factores de enriquecimento do crioulo, mais do que a morfologia e a sintaxe, e para isso citou Maurice Ramom. E quando põe a tónica na fonética, então é iniludível que as variedades dialectais são, no conjunto das nossas ilhas, um campo fértil e onde concorrem influências as mais diversas para a evolução da nossa língua materna, em vez de, pelo contrário, serem encaradas como algo a descartar na pressa e precipitação de padronizar e oficializar o crioulo.
Filinto: ̶ Já agora, Dr. Baltasar, se me permite, e como estamos num debate em que o espaço e o tempo se cruzam e se unificam no plano do confronto e da clarificação dos conceitos, gostaria de o ouvir sobre a entrevista que deu ao “Jornal Ilustrado”, português, na sua edição de 12 de Maio de 1988. Assim, uma pergunta, colocando-me na pele de quem então o entrevistou: ̶ “Em Cabo Verde volta a agitar-se a bandeira do crioulo como instrumento de criação literária. Como linguista e filólogo, o que tem a dizer?”
"Baltasar Lopes": ̶ “Bem, há demagogia e ignorância. Esta temática do crioulo é bastante complicada e não é para qualquer. É evidente que o crioulo como língua natural, falado naturalmente, existe por si. Existe por si inapelavelmente. Agora, como língua literária está dependente de dois pressupostos. Primeiro, em Cabo Verde não há um crioulo, há crioulos. Qual será o crioulo que há-de assumir este papel de língua literária no caso de poder vir a sê-lo?”
Elísio: ̶ “O de Santiago? O de S. Vicente?”
"Baltasar Lopes": ̶ “Era preciso que houvesse já uma literatura, um passado literário escrito, para nós podermos escolher o crioulo padrão, e ele não existe. Se se continuar a escrever o crioulo como se escreve (ou como não se escreve) actualmente, isto é um problema para ser resolvido pelos nossos netos. Têm de passar duas gerações para este assunto ficar limado e nessa altura ver-se claro. Por enquanto, o que se diga é prematuro. Não confundamos a visibilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI, e no entanto foi preciso esperar até ao século VIII para se encontrar umas palavras do latim bárbaro em que se revê o português, disfarçado. Agora, o português propriamente dito só no século XIII. Vê? A distância é de cinco, seis séculos. E ainda há o problema da dignidade literária, que nos remete para Camões e, na peugada, Vieira e Bernardes.”
Filinto: ̶ Elísio, passaram-se 27 anos desde esta entrevista dada pelo Dr. Baltasar. Entretanto, a situação evoluiu e hoje o governo apressa-se a implementar a padronização e a elevar o crioulo ao estatuto de língua oficial e de ensino, e implicitamente literária, com toda a suas implicações de ordem editorial. O Dr. Baltasar estimou o mínimo de duas gerações para o crioulo ser uma ferramenta linguística devidamente limada e esmerilada para realizar os fins que dele se espera. Penso que aquela estimativa foi algo optimista, mas enfim…
Elísio: ̶ E mal sabia o Dr. Baltasar que o que está por detrás desta problemática não é apenas a dignidade literária do crioulo, mas sobretudo a intenção de arrear o português da nossa realidade linguística.
Filinto: ̶ Bem, para isso talvez sejam necessárias umas dez gerações, se olharmos para o historial da evolução e consolidação do português e outras línguas europeias. Fiquemos hoje por aqui. Quem sabe se de outra dimensão do tempo poderá vir o Dr. Baltasar Lopes iluminar o espírito dos cabo-verdianos.
Elísio: ̶ Tal como o fez em vida, amigo.
(1) Esta mesa-redonda foi sobre o tema "Seroantropologia das ilhas de Cabo Verde", tendo ocorrido em 1956 e dado origem a um documento com esse nome, do âmbito da "Junta de Investigações do Ultramar", organizado por Almerindo Lessa e Jacques Ruffié.
Tomar, 28 de Março de 2015
Adriano Miranda Lima
O Adriano está inspirado do espírito de Dr Baltazar: esta ficção está cada vez a ganhar volume ao mesmo tempo que fica interessante este diálogo rico e de um grande nível intelectual. Aguardemos o novo capítulo
ResponderEliminarÀ medida que o elenco se alarga, se alargam, também, as margens do que começou em diálogo e já vai em mesa redonda...Por este andar, ainda corremos o "risco" de assistir a uma convenção pois as mais valias começam a "empurrar" o tema para as raias do ensaio...Bendito "risco"...Afinal, nunca é tarde para aprender!
ResponderEliminarBraça,
Zito