segunda-feira, 27 de abril de 2015

[1485] A saga dialogal-linguística num café imaginário do Mindelo continua. Hoje, com uma convidada especial

IX Parte

(Ver I AQUI, II AQUI, III AQUI, IV AQUI, V AQUI, VI AQUI, VII AQUI e VIII AQUI)

(Este diálogo tem decorrido entre duas personagens fictícias, mas hoje a Dr.ª Ondina Ferreira partilha este debate como convidada de honra figurada)

Adriano Miranda Lima
Filinto:  ̶   Elísio, o nosso último diálogo terminou quando analisávamos a questão da flagrante identidade lexical entre o português e o crioulo e as muito prováveis implicações que daí advêm para a autonomia linguística que os  promotores da “lingu maternu” aspiram com vista à sua  consagração plena como vector da cultura cabo-verdiana.

Elísio:  ̶  Julgo que foi mesmo aí que interrompemos a nossa animada conversa, ou seja, naquilo que pode oferecer ainda muito pano para a manga da nossa discussão. Assim sendo, acho que podemos desde já sentenciar que o crioulo dificilmente consegue ocultar a sua origem genética e assumir uma personalidade morfológica e semântica própria. Mesmo que se queira usar de alguns disfarces para ocultar a realidade, será um esforço vão pretender que o crioulo seja verdadeiramente uma língua veicular sem as inúmeras e preponderantes muletas da língua portuguesa.

Filinto:  ̶  Queres tu dizer que a diferença entre o crioulo e o português se situa essencialmente em particularidades de organização gramatical e de articulação sintáctica, sendo que uma tende para a extrema simplificação formal a esse nível e outra para o apuro e  preciosismo na construção frásica. E esta circunstância vem ao cimo, com amplitude variável, quando se usa o crioulo na comunicação mais técnica ou erudita.

Bem, penso que é o momento de te dizer que “convidei” para partilhar esta nossa discussão a Ondina Ferreira, professora e escritora. Ela intervirá figuradamente mediante as suas opiniões expressas em artigos publicados na imprensa e textos postados no seu blogue Coral Vermelho.

Elísio:  ̶  Excelente ideia, amigo, trata-se de uma importante personalidade da cultura cabo-verdiana que nos vai ser de muita utilidade para a clarificação de algumas matérias desta temática, mormente o ponto que estamos neste momento a abordar. Neste caso, se me é permitido, avanço já com uma pergunta. Ondina Ferreira, li há tempos o seu artigo com o nome de “Crioulês” (1), e acho que o seu conteúdo se prende directamente com esta questão da identidade lexical entre o crioulo o português. Resultando o neologismo “Crioulês” da amálgama entre as palavras crioulo e português, é perfeitamente deduzível o seu significado e a intenção que lhe subjaz. Pode dizer-nos o que a motivou a fazer essa denúncia?

“Ondina Ferreira”:  ̶  Ora, com certeza. Eu, na altura, e já lá vão 9 anos, entendia o que era perceptível pela generalidade dos cabo-verdianos, isto é, que de há muito  estava a “insinuar-se discretamente, paulatinamente, diria, quase envergonhadamente, mas sempre em crescendo, uma nova língua – chamemo-la “crioulês”, por comodidade de expressão – uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos “media”, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra, que, parecendo, não querer exprimir-se nem em crioulo, nem em português, ou fugindo a isto, optam e fazem-no através desta espécie, híbrida, de compromisso, para uma fala situada entre o crioulo e o português.”

Filinto:  ̶  É também a minha opinião e a do meu amigo Elísio,  Ondina. Será que nos pode adiantar algumas evidências desta realidade?

“Ondina Ferreira”  ̶  Naturalmente que sim. Ora, “folheando um caderno de apontamentos encontrei, há alguns anos, num puro acaso, as linhas que se seguem resultantes de uma intervenção escutada numa reunião institucional – aquando da virulência do dengue na Praia – mas cujo conteúdo pareceu-me interessante para ilustrar o assunto em questão. Não resisto a transcrevê-la: ‘Isso ta bem obriga a que haja uma mudança na política di saúde pública. Para além disso, Praia stá em conexão muito forte cu resto do país’.

Se bem repararmos, apenas três partículas (grafemas) deste pequeno excerto ficam de fora do português: di, stá, e cu. (É bom não esquecer que estas mesmas partículas são vestígios do português quinhentista, base da formação do crioulo). Daí a minha reiteração de que a língua cabo-verdiana ou o crioulo de Cabo Verde se encontra cada vez mais interdependente da Língua portuguesa hodierna. E isso é bem visível na oralidade dos falantes escolarizados e na dos técnicos de intervenção pública/mediática, que ao veicularem uma mensagem de cariz médico, educativo, ou outra de carácter técnico-científico se socorram do vocabulário e da construção frásica bem próximos da língua portuguesa. É também o sociolecto ouvido em certos ambientes escolarizados.

No mesmo registo, aconteceu-me numa destas manhãs, ia eu no carro às compras e de rádio ligado, ‘apanho’ ainda bocados de uma entrevista na RNCV. O entrevistado questionado se alguém que fora nomeado para o cargo – referido pelo Jornalista – tinha o perfil adequado, responde nos termos que a seguir transcrevo:

‘Na nha opinião ele tem o perfil ideal. Ele é um perfeito conhecedor da área qui el stá bágere; tanto mais, que se trata di um pessoa muito capaz e cu provas dadas.’ (sic) (o sublinhado é meu).”

Elísio:  ̶  Ondina, quase que dá vontade de rir, não é? Eu até diria que esta nova linguagem com mais propriedade se deveria chamar "portucriol", por mais próxima do português que do crioulo. E se assim é, como se pode considerar o crioulo aquela língua de identidade linguística própria se basta o uso de uma expressão mais erudita para ele ser logo despido dos seus andrajos caseiros? Olhem, ainda estou com vontade de rir só de me lembrar dos exemplos que a Ondina acabou de citar. Pergunto se vale a pena tanto trabalho, tanto consumo de energias mentais e recursos para promover o crioulo para, mais tarde ou mais cedo, banir o português como língua oficial, ou secundarizar a sua importância, se  entre os dois idiomas não existe um diferencial linguístico significativo. 

Filinto:  ̶   Pois, a tua dúvida é legítima, Elísio. Na verdade, para quê toda esta polémica deletéria que se levantou no país se ao fim e ao cabo o que vai prevalecer na comunicação oficial, nas escolas, na imprensa escrita, na televisão, etc., é o “crioulês” ou o tal “portucriol” como lhe chamaste? Reparem que isto dará azo a que os outros falantes do português se intriguem perguntando por que raio falam os cabo-verdianos tão mal o português. E depois ficarão também pasmados com a nossa aparente  dificuldade em eliminar aqueles “elementos esquisitos” que ninguém conhece no mundo lusófono, como o “di”, o “stá” o “nho”, que nos impedem de para falar o português como eles. O que acha a Ondina disto?

“Ondina Ferreira”  ̶  Agora sou eu que estou com vontade de rir. Vejo que nenhum cidadão dos PALOP precisará de tradução para perceber o conteúdo daquelas frases. Com aquelas exemplificações apenas pretendi ilustrar “a  minha convicção de que a oralidade culta – chamemo-la assim – do crioulo actual, se aproximou muito fortemente da língua portuguesa. É um dado que diariamente – ou quase – venho verificando aqui nas ilhas. E isso passa-se sobretudo com o segmento do crioulo que os falantes utilizam nos media nacionais. Embora se trate de um fenómeno linguístico de há muito previsto, lembremo-nos de que Baltazar Lopes da Silva numa das suas intervenções na célebre ‘Mesa Redonda sobre o Homem cabo-verdiano’ (Mindelo, 1956) afirmava que o crioulo, para além da sua inquestionável e crescente vitalidade, caminhava também e cada vez mais para uma espécie de ‘aristocratização’ que ele ilustrava da seguinte forma: ‘…É de um interesse extremo observar como e em que compartimentos se processa esta aristocratização. Primeiramente na fonética. Não admira. Maurice Grammont notou esta tendência, ou esta maior permeabilidade da fonética a influências exteriores mais prestigiosas. Suponho que a tendência assenta na constante que leva o homem, quando desejoso, mas impossibilitado de assimilar totalmente um padrão diferente do seu, a copiar-lhe, ao menos, a forma externa. Em segundo lugar, no léxico. O crioulo dispõe hoje de um tesouro lexical de origem portuguesa que me não parece inferior, ao menos em grau sensível, ao padrão comum do vocabulário metropolitano. A aristocratização vocabular enverga ainda uma vestimenta de que o português e as outras línguas românicas fizeram largo uso: a divergência. É assim que, quando o crioulo possui no seu léxico tradicional determinado vocábulo, a influência do português exerce-se, não no sentido de essa forma desaparecer, mas no dela se aproximar o mais possível da forma correspondente portuguesa…’

Não sei se o eminente filólogo já não teria em mente a possível ‘décaláge’ que a mais recente proposta ortográfica para a escrita do crioulo iria criar entre a sua expressão oral e a sua expressão escrita(?), pois que Baltazar Lopes foi avisando de que não haveria necessidade de se ‘inventar’ qualquer conjunto alfabético para a normalização escrita, uma vez que a já antiga língua (o crioulo) que ele caracterizou como sendo de origem latina/portuguesa já o possuía de séculos com uma história etimológica própria.”

Elísio:  ̶ Ondina, ainda bem que trouxe de novo a este debate o pensamento de Baltasar Lopes. Já o tínhamos feito numa das nossas conversas anteriores, convidando-o para esta mesa nas mesmas condições em que a Ondina nos está a obsequiar com a sua gentil e eloquente presença.

“Ondina Ferreira”  ̶  É com imenso gosto que o fiz, pois aquele nosso eminente intelectual é uma presença sempre viva e estimulante nas nossas deambulações intelectuais. Se me permitem agora, “num aparte gracioso, um familiar meu disse com muito espírito: ‘ ̶  Convenhamos de que não havia de ser com o ‘K’ empurrando o ‘C’ borda fora que resolveríamos o problema!’. Ora bem, tudo isto se conjuga com a tese que comungo de que há uma cumplicidade e uma interdependência cada vez mais acentuadas e intensivas entre o crioulo e o português de Cabo Verde, nos dias que correm. Se me perguntarem, se isso é bom (?) se isso é mau (?) talvez respondesse que a questão arregimenta em si características positivas e características negativas. Mas que algo – uma nova reconfiguração da língua? ̶ se desenha de forma indelével nesse ‘aportuguesamento’ do crioulo, como também, já antes se inscrevera no ‘acrioulamento’ do português de / e em Cabo Verde, disso não tenho dúvidas!

Paralelamente, a escolaridade em língua portuguesa deve estar muito atenta a estes fenómenos linguísticos de entrosamento, pois que não me parecem que já sejam apenas ‘empréstimos’ de uma língua para a outra, respectivamente em posição de ascendente e de descendente. E depois,  a língua cabo-verdiana, na parte que tem de ‘rebelde, transformadora, criadora e inovadora’ – sobretudo na sua oralidade – porque ainda em permanente estado de ‘magma’, permitam-me esta comparação, acaba ela própria, por vontade dos seus falantes e com a ajuda das ferramentas adequadas por encontrar o seu caminho. Se pende, ou não, para um reajustamento (reaproximação) com a matriz que lhe deu origem é algo que o tempo, os interesses do falante e as vicissitudes complexas que o mundo global de hoje comporta, dirão. Da minha parte, limito-me a apontar e…a tirar apontamentos também!”

Filinto:  ̶ Já agora, e sobre esta questão do “crioulês”, há uns anos que já lá vão, acompanhei pela rádio um debate sobre  a implementação de um novo regime fiscal e aduaneiro e recordo-me bem de que a língua veicular utilizada pelos intervenientes era precisamente o "crioulês". O debate destinava-se a esclarecer o público e a terminologia técnica predominava na interlocução, como o impunha a natureza específica dos assuntos em presença. Em consequência disso, os vocábulos resultavam na sua quase totalidade em português, só fugindo, de um modo geral, à norma idiomática, as partículas de ligação, os prenomes e artigos, normalmente invariáveis em género, e as flexões verbais. Contudo, quem distraidamente estivesse a ouvir o debate e não conhecesse a origem dos intervenientes, seria à partida induzido a identificar uma conversação em língua portuguesa com umas “coisinhas esquisitas enxertadas” pelo meio, e só instigando mais a audição notaria as destoantes particularidades do acessório linguístico rudimentar. Isto porque, mesmo que se não quisesse, a matéria em discussão, predominantemente técnica, não podia evitar o uso alargado do vocabulário técnico português, porquanto o crioulo, até agora, não lhe encontrou qualquer tradução ou sucedâneo, nem alguma vez encontrará.

Elísio:  ̶   Bem, proponho que fiquemos hoje por aqui. Resta agradecer à Ondina Ferreira a sua disponibilidade e o precioso contributo da sua opinião sobre esta importante temática nacional.


(1)  Artigo de Ondina Ferreira intitulado “Crioulês”, publicado em 10 de Maio de 2006 no jornal Expresso das Ilhas.
(2) Artigo de Ondina Ferreira intitulado “Crioulês? Ou a dependência do crioulo actual à Língua matriz?” publicado em 2 de Outubro de 2010 no seu blogue Coral Vermelho.

Tomar, 12 de Abril de 2015
Adriano Miranda Lima

6 comentários:

  1. Esta "saga" não surtiu o efeito desejado - estimular a discussão sobre o crioulo e a sua passagem ao estatuto de língua de Estado e do ensino. Era esse o propósito, tratando-se, como se trata, de uma matéria que, a manter-se o caminho apontado por um número reduzido de pessoas, vai mexer, e muito, com a vida do país. Mas mexer no mau sentido porque é quase garantido que os cabo-verdianos irão meter-se numa demoníaca confusão linguística.

    ResponderEliminar
  2. Eu não sou tão pessimista. Cá para mim, muita gente lê, assimila mas... cala. Até alguns da AK (Associação do Kapa), quase de certeza. Pena é que saibamos "quantos" aqui vêm mas não "quem"... Enfim, o Adri pelo menos cumpriu o seu dever cívico.

    Braça confiante no EK (Enterro do Kapa),
    Djack

    ResponderEliminar
  3. Adriano Miranda Lima retoma o seu conto ficcionado sobre a problemática da língua da oficialização do Crioulo agora trazendo para o diálogo uma convidada especial, uma pessoa em carne e osso, a respeitável Drª Ondina Ferreira (embora figurada, virtual) uma pessoa bastante preocupada com esta reforma línguísitca em Cabo Verde e que nunca poupou críticas ao conceito mesmo de oficialização do crioulo pelas razões que temos expostos nos diferentes forums. Eu gostaria é que no próximo número o Adriano entrevistasse um defensor do Alupek, uma sugestão que lhe deixo, pois nós somos democratas, não temos medo do contraditório. De resto uma vez o Sr Manuel Veiga apareceu no Praia de Bote, depois de uma exposição que fez em Lisboa, debater connosco abertamente a problemática da oficialização do crioulo e foi uma recepção calorosa, de braços abertos com uma troca viva de argumentos, sem que' arrumássemos nele'.

    ResponderEliminar
  4. omo queres Adriano estimular discussão em Cabo Verde ?? !!! Muitas vezes temos a sensação de pregar num deserto pior que no Sahel mas as paredes nos prescutam e acabamos por ser ouvidos. Churchil dizia 'Nerver Surrender, Ever' Nunca desistir dos debates mesmos os mais chatos, este é o nosso lema desde que Deus nos dê Vida e Saúde !!!!

    ResponderEliminar
  5. Pode haver uma outra explicação para a falta de contraditório: ausência de argumentos!
    Saudo, com entusiasmo, o aparecimento de Dona Ondina...

    ResponderEliminar
  6. Aprovo a sugestão do José. Vou pensar em "convidar" lá mais para a frente o Manuel Veiga.

    ResponderEliminar

Torne este blogue mais vivo: coloque o seu comentário.