Adriano Miranda Lima |
A minha mulher nasceu na freguesia da Serra de S. Domingos do concelho da Sertã, Beira Baixa. O lugar fica obviamente no cimo de uma serra e à volta abundam matas de pinheiro, castanheiros, carvalhos e outras espécies arborícolas, em meio a urze, rosmaninho e medronheiro, pelo que aquilo é aprazível e um bom reconstituinte para as energias vitais. Volta e meia vamos até lá para apanhar ar puro e comer maranho, um prato típico que é um enchido à base de carne de cabrito ou borrego, arroz e ervas aromáticas. A Serra de S. Domingos tem muita gente que emigrou desde há dezenas de anos para várias zonas de Lisboa. Assim se compreende que existe um interessante intercâmbio desportivo entre o Clube Desportivo da Serra de S. Domingos e o seu congénere de Loures, com iniciativas frequentes para fins competitivos, recreativos ou simples comezainas. A minha mulher tem primos intervenientes no processo, quer de um lado quer de outro, dos clubes em causa.
Sucede que um desses primos, o mais chegado, vive em Tomar e convidou-nos para ir à confraternização realizada no passado sábado e que ia aproveitar-se para a inauguração da nova sede do Clube Desportivo local. A iniciativa incluía um magnífico repasto à base de porco assado no espeto e outras especialidades locais, pelo que não nos fizemos rogados. Mas a comemoração e a comezaina iam ser precedidas de uma pequena caminhada envolvendo todo o pessoal interveniente, e também aí não hesitámos, tendo ido munidos, claro, de sapatilhas e indumentária adequada.
A certa altura, chegou ao lugar um autocarro carregado de pessoal de Loures e, qual não foi a minha surpresa, dele desembarcaram uns 20 jovens adolescentes em que o meu olho antropológico identificou um número apreciável de cabo-verdianos. Eram atletas de Loures e a maior parte raparigas, apenas dois ou três rapazes. Mas o meu olho antropológico foi ainda mais longe: verifiquei que só podiam ser de origem mindelense, pois aquela pose, aquele ar descontraído e aquela maneira de olhar não enganavam. Vinham no grupo três ou quatro mulheres adultas que eu identifiquei como sendo as mães de alguns dos jovens cabo-verdianos. Então, pelo olhar destas, mais se me confirmou a ilha de origem, S. Vicente, de certeza absoluta. Mas não me senti com à vontade para lhes perguntar algo sobre a origem, para não ser mal interpretado, embora se o fizesse teria previamente esclarecido que o fazia por ser também de origem cabo-verdiana. Apurei o ouvido para ouvir alguma conversa em crioulo, mas nada. As miúdas só falavam em português entre elas, pelo que concluí que já eram nascidas em Portugal, e possivelmente até as próprias mães, que eram ainda jovens.
Mas há uma particularidade que não posso omitir. As miúdas davam nas vistas porque eram altas e esguias, de pernas compridas e bem torneadas a exibirem-se fora dos calções, de físico talhado para o atletismo (corrida), e com potencialidades para sonharem também com uma possível futura carreira de manequim. Os rostos tinham aqueles traços harmoniosos e expressivos que tornam as crioulas do Mindelo verdadeiramente atraentes. Fiquei com os olhos em bico de tanto contemplar aqueles perfis de garça. Uma tia da minha mulher desabafou: - Ah, como são elegantes de corpo e bonitinhas essas meninas de cor… ai, aquelas pernas!…
A festa lá aconteceu com tudo o que estava programado. A caminhada foi agradabilíssima e pelo caminho fomos colhendo uns cachinhos de uva das videiras pendentes nas vedações ao longo do caminho, para adoçar a garganta e saciar a sede, até porque o dia estava quente. O presidente da Câmara da Sertã inaugurou a sede do Clube com pompa e circunstância. Seguiu-se o repasto, com o porco assado no espeto a ser o centro das preferências, tal a mão atilada do cozinheiro, que doseou magistralmente o tempero e o grau de cozedura da carne. Aliás, não me lembro de ter comido porco assado no espeto que me soubesse tão bem, e o segredo, vim a saber, era só um: o bicho sacrificado tinha sido criado à base de milho, feijão, couve, batata e outros produtos locais. Nada de ração, garantiram-me.
Por fim, seguiu-se uma tocatina, com uma miúda (sertanense) como vocalista, mas a incluir também música gravada. Houve pé de dança. Não foi com grande surpresa quando a certa altura ouvi duas coladeiras: “Sabino Larga’m” e “Menininha de Morada”. Mas quem pôs as coladeiras, ah-ah-ah? O mundo afinal é mais pequeno do que aquilo que julgamos!
Por fim, por volta das 23 horas cada um regressou ao seu destino, após um dia esplendoroso e bem passado. Eu e a minha mulher pedimos ao tal primo para nos fazer sócios do Clube. Aqueles perfis de garça!...
Tomar, 20 de Setembro de 2015
Adriano Miranda Lima
Raramente comento os textos de amigos aqui no Pd'B ou em jornais. Desta vez, contudo, tenho a dizer que este saboroso texto devia ter ido primeiro para o "Liberal", onde decerto seria visto por mais público das nossas ilhas. Mas assim foi, assim é... No entanto, recomendo ao escriba são-vicentino-nabantino que se mexa e comece a mandar a sua prosa para o jornal (coisa que aliás lhe sugeri logo que ali reiniciei as minhas fainas plumitivas).
ResponderEliminarBraça com teclas marteladas,
Djack
Faço minhas as palavras do Djack e destaco o perspicaz olho ornitológico do amigo Adriano!
ResponderEliminarBraça esvoaçante,
Zito
Podia dizer o que disse o amigo Djack e o não menos Zito mas vou mais longe e digo ao Adriano que ele fez bem em contar essa estorinha que bem merece divulgação. E, para corroborar essa de "munde ê piqnim", cito uma que sucedeu comigo na antiga Gaulia, ora conhecida por Franca, mais precisamente na pequena cidade de Notre Dame d'Oé: - Convidado a um lanche de casamento (entre franceses, er o ùnico estrangeiro ali) qual não foi o meu espanto quando puseram a primeira mùsica para abrir o baile. Acreditem, meus amigos, o DJ, contratado para a festa, escolheu "S.Vicente ê um Brasilim".
ResponderEliminarCorpe rupià-m'
Eu já contei algures (e não há muito tempo) que em visita de trabalho com colegas professores a caminho da Roménia parámos um dia em Budapeste. Colocámos a bagagem no hotel, fomos dar uma volta pela margem de Peste do Danúbio e eis que chagados a uma zona de barcos-restaurante, do cimo de um poste provisório de madeira saía de um altifalante meio rouco a voz de Cesária. Não me lembro do nome da morna, mas era ela, a genuína, a do pé descalço, a Cize...
ResponderEliminarHá dias, num almoço de professores, uma colega algarvia, amiga de muitos anos, confidenciou-me que em viagem de turismo pelas memórias guerreiras da Normandia se lembrou de mim e da minha paixão cabo-verdiana porque ouviu ali (suponho que num restaurante) a Cize.
Enfim, Cabo Verde não é assim tão picnim como pensamos.
Braça musical intercontinental,
Djack
Com efeito o Adriano deve ser lido e conhecido pelo público em geral cabo-verdiano não somente pelas suas qualidades literárias e o exímio domínio do português mas também pela sua sensibilidade política honesta e ponderada. Os nossos bolgues têm visibilidade mas um jornal como o Liberal atrai muita gente
ResponderEliminarÉ o momento de acrescentar que na minha visita a S. Vicente, em Maio passado, infelizmente motivada pela doença e falecimento da minha mãe, tive ocasião de verificar que esta estirpe de jovens belos e longilíneos é muito comum nas nossas ilhas. Muito mais do que antigamente, o que pode ser influência de novos hábitos alimentares, em combinação com a genética. É vulgar ver raparigas esbeltas e elegantes quase da minha estatura. Antigamente, não era nada frequente.
ResponderEliminarA respeito da minha participação nos blogues e jornais da nossa terra, o meu problema tem a ver com o distanciamento político-partidário que procuro impor-me. Bastas vezes opinei sobre questões mais genéricas e transversais, como a temática da centralização política, a regionalização, a cultura e a língua, etc, ou seja, sobre aquilo que não entra na mesquinhez dos conflitos partidários. Mas tenciono frequentar o Liberal, e não tardará que o faça.
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