domingo, 13 de março de 2016

[2018] Pré-publicação de excerto da "Crónica do Norte Atlântico" (jornal "Terra Nova", Cabo Verde) deste Março


EPISÓDIOS DA LONGA SAGA DE CLANDESTINOS E INDOCUMENTADOS MARÍTIMOS CABO-VERDIANOS

(...) No Agosto seguinte, era a vez de Manuel Martins Jr., rapaz de 13 anos, ser apanhado a bordo do veleiro "Yukon", da carreira de Cabo Verde, que estava amarrado ao cais Merrill, em New Bedford. O miúdo desaparecera cinco semanas antes de casa e pretendia, em contracorrente pouco usual, ir para as ilhas. Astucioso, contou ao capitão Benjamim Costa que os pais haviam falecido e que se encontrava sem ninguém. Assim, foi "adoptado" por este e pela tripulação que durante duas semanas o alimentaram e protegeram. Mas outros dois jovens que ali trabalhavam, provavelmente acicatados por alguma inveja, começaram a desconfiar da história do Manuel e avisaram as autoridades. Foi então que, após algumas diligências, estas tomaram conhecimento através da mãe do rapaz que ele afinal havia fugido de casa, levando consigo 8 dólares roubados de um armário.

O Merrill Wharf de New Bedford
Por vezes, os casos de ilegais eram bem mais complicados que estes dois que vimos, configurando quase uma rede clandestina como aquele em que em 1926 os capitães Joaquim C. Duarte (da barca "Lina") e Elizeu Neves (da escuna "Fannie Belle Atwood"), ambos confessos culpados, foram sentenciados nos EUA, cada um a um ano de cadeia e à multa de 1000 dólares "por permitirem a entrada ilegal de estrangeiros n'este país". Curioso, por revelar parte da teia que estava por detrás deste negócio de envio de cabo-verdianos para os States, é o conjunto de depoimentos de alguns deles durante o julgamento: "Ontem, um número de estrangeiros [diga-se cabo-verdianos] que foram trazidos para New Bedford pelo capitão Duarte na barca 'Lina' e que se evadiram num dos escaleres de bordo somente para serem capturados em Wareham dentro de 24 horas, testemunharam pela acusação. Disseram que tinham pago dinheiro a 'um homem' do Fogo que se chama Tony Salomão. Todos exoneraram o capitão Duarte de ter tomado parte nos arranjos financeiros que foram feitos antes da viagem. (…) Rezendes dos Santos declarou que quando a barca 'Lina' parou no Fogo, pagou $257 [dólares] a Tony Salomão, que tem um escritório ali, pela sua passagem para New Bedford. Disse que o capitão estava fora do escritório quando foi feita a transacção. O Santos testemunhou que apesar de estar registado como membro da tripulação, não fez o trabalho de um marinheiro enquanto esteve de viagem. Disse que se evadiu da barca 'Lina' com outros nove, sendo presos mais tarde em Wareham. Declarou que o piloto estava dormindo quando se evadiram e que o capitão não era conhecedor dos seus planos de evasão."   

Quanto aos pontos de origem, desejado destino e despejo antecipado destes homens (e por vezes mulheres, embora em número assaz inferior), eles são os mais diversos. Nos finais de Abril de 1927 eram desembarcados no Caniçal, ilha da Madeira, três cabo-verdianos que no vapor grego "Anapeny" pretendiam atingir o porto alemão de Hamburgo . E no mês seguinte era a vez de o comandante do vapor italiano "Nereide" entregar à Polícia Marítima de Lisboa uma série de clandestinos. Porém, o barco onde estes se haviam infiltrado em Cabo Verde era o "Agrés Gevigios", matriculado no porto do Pireu, Grécia, e o seu repatriamento no "Anapey" fora promovido por Fernando Abecassis, cônsul português em Bacelona. Eram eles todos gente de ilhas do Norte, portanto de Barlavento: António Monteiro, de 19 anos, natural de Santo Antão; João Silva, de 16 anos, de São Nicolau; e Miguel Rosa de Oliveira, de 21 e José Andrade, de 14, ambos de São Vicente. (...)

8 comentários:

  1. A sina de imigração clandestina tem muita histórias na Baía do Porto Grande.
    Contam-se que uma das vias de acesso para entrar no barco era escalando a pulso através da corrente do ferro fundiador do barco, uma aventura perigosa praticada no escuro altas horas da noite. Agora, a maior aventura, é a de um rapaz que veio da ilha de Santo Antão que pagou para que levassem a bordo dum barco Grego para que fugindo, tentasse a vida lá fora na emigração.
    Meteram o rapaz no vaporim d'agua rumo ao Tarrafal de Monte Trigo. Dizem que ele se transformou depois num grande produtor de grogue

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  2. Grande reportagem, Djack. És incansável a desenterrar estas memórias. A fuga da nossa gente nestas circunstâncias todos sabemos qual era a sua razão fundamental.
    Mas estas aventuras ao fim e ao cabo fazem parte da história das ilhas.
    Zeca Soares, entrega um beijinho meu à prima Lídia, tua vizinha.

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  3. Naquela foto do post está cada bicho de veleiro!

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  4. Quem ler este texto na íntegra (no "Terra Nova", claro) verá que ele acaba de maneira divertidíssima.

    Braça com one dollar de multa,
    Djack

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  5. Ainda não recebi o meu exemplar mais recente do «Terra Nova». Agora já fiquei curiosa. De qualquer forma conheço a forma de narrar do Saial. Li no romance «Capitania» o episódio do adolescente (clandestino a bordo de um barco) de Moçambique, com a amizade criada em terra, com os mindelenses Jack e Manu, soberbamente descrito na pena do autor. Daí deduzir que a narrativa histórica dos clandestinos, indocumentados esteja também na mesma linha solidária e com aquela pitada de humor e de boa ironia.

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    1. Com os agradecimentos da gerência pelas simpáticas palavras da Ondina, o texto vai voar dentro de segundos para ela e para os amigos mais próximos.

      Braça clandestina e indocumentada,
      Djack

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  6. E eu a pensar que o Praia de Bote esta dora e não recebia por motivos outros...
    Boa surpreza da literatura com sabor a comida de terra, àgua de Vascônia e cheiro de grog da Rua de Canecadinha.
    Quando o carteiro não deixa o aviso habitual, sobretudo depois de "barcanças", a gente arrisca-se a perder coisas.
    Braças e mantenhas

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