(...) Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, à noitinha, não tinha resolução, nem idéia. Estava como uma esponja saturada. Deixava-se ir.
De repente, uma voz disse de dentro de uma loja:
− Eh! pst! olá!
Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados.
− Que diacho! Desde manhã que te procuro.
E contou-lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace.
− Queres?
− Tudo.
Uma casa comercial queria um homem hábil, resoluto e duro, para ir numa comissão difícil e de grande ganho a Cabo Verde.
− Pronto! – disse Macário. − Pronto! Amanhã.
E foi logo escrever a Luísa, pedindo-lhe uma despedida, um último encontro, aquele em que os braços desolados e veementes tanto custam a desenlaçar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu xale, tiritando de frio. Macário chorou. Ela, com a sua passiva e loura doçura, disse-lhe:
− Fazes bem. Talvez ganhes.
E ao outro dia Macário partiu.
Conheceu as viagens trabalhosas dos mares inimigos, o enjôo monótono num beliche abafado, os duros sóis das colônias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e a melancolia das caravanas que costeiam por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranqüilos, de onde se exala a morte.
Voltou.
E logo nessa noite a viu a ela, Luísa, clara, fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da janela, com sua ventarola chinesa. E ao outro dia, sofregamente, foi pedi-la à mãe. Macário tinha feito um ganho saliente – e a mãe Vilaça abriu-lhe uns grandes braços amigos, cheia de exclamações. O casamento decidiu-se para daí a um ano.
− Por quê? – disse eu a Macário.
E ele explicou-me que os lucros de Cabo Verde não podiam constituir um capital definitivo: eram apenas um capital de habilitação. Trazia de Cabo Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia, durante um ano, heroicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma família.
E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das idéias e dos músculos: vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa, de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, fé, reconforto para todo um mês cheiamente trabalhado.
Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fosse seu fiador por uma grande quantia, que ele pedira para estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macário, que estava no vigor do seu crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio providencial de Cabo Verde. Faltavam então dois meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as febris vermelhidões da esperança. Já começara a tratar dos banhos. Mas um dia o amigo do chapéu de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em começo. Era uma confusa aventura. Não se pôde nunca precisar nitidamente aquele embróglio doloroso. O que era positivo é que Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse simplesmente:
− Liquido e pago!
E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o desastre tivera uma grande publicidade, e a sua honra estava santificada na opinião, a casa Peres & C.ª, que o mandara a Cabo Verde, veio propor-lhe uma outra viagem e outros ganhos.
− Voltar a Cabo Verde outra vez!
− Faz outra vez fortuna, homem. O senhor é o diabo! – disse o sr. Eleutério Peres.
Quando se viu assim, só e pobre, Macário desatou a chorar. Tudo estava perdido, findo, extinto; era necessário recomeçar pacientemente a vida, voltar às longas misérias de Cabo Verde, tornar a tremer os passados desesperos, suar os antigos suores! E Luísa? Macário escreveu-lhe. Depois rasgou a carta. Foi a casa dela: as janelas tinham luz: subiu até ao primeiro andar, mas aí tomou-o uma mágoa, uma cobardia de revelar o desastre, o pavor trêmulo de uma separação, o terror de ela se recusar, negar-se, hesitar! E quereria ela esperar mais? Não se atreveu a falar, explicar, pedir; desceu, pé ante pé. Era noite. Andou ao acaso pelas ruas: havia um sereno e silencioso luar. Ia sem saber: de repente ouviu, de uma janela alumiada, uma rabeca que tocava a xácara mourisca. Lembrou-se do tempo em que conhecera Luísa, do bom sol claro que havia então, e do vestido dela, de cassa com pintas azuis! Estava na rua onde eram os armazéns do tio. Foi caminhando. Pôs-se a olhar para a sua antiga casa. A janela do escritório estava fechada. Quantas vezes dali vira Luísa, e o brando movimento do seu leque chinês! Mas uma janela, no segundo andar, tinha luz: era o quarto do tio. Macário foi observar mais de longe: uma figura estava encostada, por dentro, à vidraça: era o tio Francisco. Veio-lhe uma saudade de todo o seu passado simples, retirado, plácido. Lembrava-lhe o seu quarto, e a velha carteira com fecho de prata, e a miniatura de sua mãe, que estava por cima da barra do leito; a sala de jantar e o seu velho aparador de pau-preto, e a grande caneca da água, cuja asa era uma serpente irritada. Decidiu-se, e impelido por um instinto, bateu à porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraça, e a voz do tio perguntar:
− Quem é?
− Sou eu, tio Francisco, sou eu. Venho dizer-lhe adeus.
A vidraça fechou-se, e daí a pouco a porta abriu-se com um grande ruído de ferrolhos. O tio Francisco tinha um candeeiro de azeite na mão. Macário achou-o magro, mais velho. Beijou-lhe a mão.
− Suba – disse o tio.
Macário ia calado, cosido com o corrimão.
Quando chegou ao quarto, o tio Francisco pousou o candeeiro sobre uma larga mesa de pau-santo, e de pé, com as mãos nos bolsos, esperou.
Macário estava calado, anediando a barba.
− Que quer? – gritou-lhe o tio.
− Vinha dizer-lhe adeus; volto para Cabo Verde.
− Boa viagem.
E o tio Francisco, voltando-lhe as costas, foi rufar na vidraça.
Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair.
− Onde vai, seu estúpido? – gritou-lhe o tio.
− Vou-me.
− Sente-se ali!
− O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhã faz o favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na fatura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. E meta na minha conta. A cama lá está feita.
Macário, estonteado, radioso, com as lágrimas nos olhos, queria abraçá-lo.
− Bem, bem. Adeus!
Macário ia sair.
− Oh! Burro, pois quer-se ir desta sua casa?
E, indo a um pequeno armário, trouxe geléia, um covilhete de doce, uma garrafa antiga do Porto e biscoitos.
− Coma!
E sentando-se ao pé dele, e tornando a chamar-lhe de estúpido, tinha uma lágrima a correr-lhe pelo engelhado da pele.
De sorte que o casamento foi decidido para dali a um mês. E Luísa começou a tratar do seu enxoval.
Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.
Via o fim da sua vida preenchido, completo, feliz. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andando a acompanhá-la, em compras, pelas lojas, ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente. A mãe tinha ficado numa modista, num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia embaixo, no mesmo prédio, na loja.
O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul. (,..)
Conto sabim.
ResponderEliminarEra naquele tempo. Agora...
"... os duros sóis das colónias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e a melancolia das caravanas que costeiam por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranquilos, de onde se exala a morte."
ResponderEliminarFazendeiros ricos! Viajar ao interior das terras negras! Rios tranquilos! Antes houvesse isso tudo na pobre terra cabo-verdiana...
O Eça deve ter confundido Cabo Verde com Brasil, ou então havia nele mais iliteracia (pelo menos quanto à geografia do seu país) do que pensamos.
Embora tenha gostado de ler alguns romances do Eça, houve sempre qualquer coisa que nunca me deixou ser um fã do escritor. Talvez por ter lido muito do que escreveram os seus críticos contemporâneos: um Fialho de Almeida, um Pinheiro Chagas, um Camilo Castelo Branco, um Bulhão Pato, um Teófilo Braga... O seu próprio amigo Antero de Quental o censurava por não ler os clássicos.
Interessante, Adriano, que quando li este conto de Eça, andava eu ainda estudante universitária, foi das descrições ou dos contos de que menos gostei deste grande escritor. Exactamente por causa do desconhecimento da geografia e da ausência de riquezas naturais das ilhas. A narrativa em si, "romântica e loura" não é desengraçada, ou não tivesse saído da pena eciana, mas peca e muito, no verosímil a conformar a terra escolhida pelo protagonista para lograr sucesso e riqueza.
ResponderEliminarMas atento e sempre ligado ao que a Cabo Verde diz respeito, bem fez o Joaquim Djack em publicá-lo.
Abraços