sábado, 9 de julho de 2016

[2257] Gago Coutinho e Sacadura Cabral no Mindelo. Um texto de Germano Almeida com 16 anos mas sempre actual (Jornal "Público", Portugal - 30.04.2000)

Por necessidade do texto sobre arte pública da época colonial em Cabo Verde que agora estou a escrever, foi necessário repescar este delicioso texto de Germano Almeida que tinha em carteira. 

Ele aqui fica, para os visitantes do Praia de Bote, com algumas ilustrações que o jornal não conseguiu obter e que o teriam tornado ainda mais sugestivo para o leitor.

Germano Almeida
Pode-se afirmar que Abril é um mês recheado de acontecimentos históricos importantes, sem mesmo se estar a pensar no maior que foi o seu 25 de 1974. Por exemplo, foi em Abril de 1500 que Pedro Álvares Cabral chegou de barco ao Brasil depois de passar pelas águas de Cabo Verde, onde por sinal perdeu a nau de D. Vasco de Ataíde. E foi também em Abril, ainda que de 1922, que Gago Coutinho e Sacadura Cabral chegaram ao Brasil, desta vez de avião, depois de igualmente terem passado por Cabo Verde, não só pelas águas, onde aliás amararam, mas mesmo pelas cidades do Mindelo e da Praia onde foram recebidos em triunfo. Felizmente que dessa última vez não houve contratempos de maior como no tempo do Cabral, se se exceptuar a ineficiência do posto de telegrafia sem fios da ilha que, para desespero e vergonha dos anfitriões, tornou extremamente difícil a comunicação entre o hidroavião "Lusitânia" e o seu navio de apoio, o cruzador "República", na altura fundeado na baía da Mordeira da ilha do Sal, facto que ocasionou um veemente protesto da parte da Câmara Municipal da ilha junto do Governo da província, pedindo-se que seja enviado para S. Vicente o posto oferecido pelo Almirantado Britânico.Mas afora isso, tudo correu pelo melhor. O Porto Grande continuava a ser um importante ponto de escala marítima para as rotas do Atlântico Sul, mas mesmo assim ficou reconhecido pela honra de ter sido escolhido para escala da primeira travessia aérea nessa mesma rota. E mostrou o seu regozijo não só aclamando os dois oficiais, como também pagando, pelo cofre municipal, é claro, todos os telegramas pelos mesmos expedidos e ainda se responsabilizando pela sua alimentação durante a permanência que fizeram na cidade do Mindelo. No entanto, o momento verdadeiramente alto desses dias memoráveis aconteceu no dia 6 de Abril, quando a Câmara Municipal da cidade se reuniu em sessão solene para, em nome do povo, homenagear os distintos aviadores, capitão-de-mar-e-guerra Gago Coutinho e capitão-tenente Sacadura Cabral. Aberta a sessão, o presidente não se poupou nos elogios aos dois heróicos navegadores pelo feito que, garantiu, ficaria na história, e depois disso convidou Gago Coutinho a dar-lhe a honra de assumir a presidência da mesa, deferência que este aceitou, aproveitando para agradecer as manifestações espontâneas e calorosas de que vinha sendo alvo por parte do povo cabo-verdiano. Porém isso ainda não era nada, S. Vicente, para além de saber receber,também gosta de guardar memória, e sem dúvida que tinha consciência da extraordinária importância dessa viagem.

A esplanada, em postal ilustrado com carimbo de 1935

Daí que a Comissão Municipal tivesse resolvido por unanimidade abrir uma subscrição destinada a obter donativos para a construção de dois monumentos: um padrão na baía da Matiota e um obelisco a ser colocado numa esplanada a ser feita na Avenida da República, ambos com o fim de comemorar a chegada dos distintos oficiais do hidroavião. Decidiu ainda a comissão que essa esplanada deveria ter o nome de Sacadura Cabral e Gago Coutinho, como forma de para sempre os fazer perdurar na memória popular. E finalmente mandou propor ao Parlamento a criação de uma medalha de ouro, única, com a inscrição "Cabo Verde 1922", para galardoar a bravura dos dois referidos oficiais. Bem, da medalha de ouro ou seu destino último nada se sabe, porém, tanto o monumento como o obelisco foram construídos em tempo breve, o primeiro dentro do mar da Matiota, ao que se diz exactamente no lugar onde o hidroavião ficou amarrado, razão aliás por que nos anos 80 teve que ser dali removido por causa dos arrebentamentos de dinamite durante a construção dos estaleiros navais, mas pontificando hoje em dia à entrada do cais acostável, o obelisco, uma enorme ave fazendo lembrar uma águia velha e de asas ferozmente abertas, ainda no espaço para onde foi planeado, uma esplanada que já não existe mas cujo local logo teve e continua com o nome popular de Esplanada dos Aviadores. De Gago Coutinho e Sacadura Cabral já pouca gente se lembra.

A esplanada, em anos mais recentes, muito modificada

4 comentários:

  1. Não faz mal nenhum, uma vez por outra, confirmar que nem só de escravos e senhores se fez a História do Mundo: do nosso e de tantos outros mundos! E recordar os aeronautas lusos é trazer à tona da História do nosso dia-a-dia um passado não tão remoto assim, que é parte integrante de uma vivência de séculos que deixou testemunhos para a eternidade!
    Braça orgulhoso,
    Zito

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    1. Essa saga foi mais uma das mil que uniram Lisboa ao Mindelo. E assim continuaremos.

      Braça lisboeta-mindelense,
      Djack

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  2. Nice, nice, esta evocação do grande feito de Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
    Naquele tempo, embora se vivesse em ditadura, havia presidentes de câmara com eles no sítio e que dignificavam os seus cargos. Hoje... coitados...

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  3. Excelente texto. A História escrita em tom escorreito e com uma "cor local" bem conseguida. "Entrámos" nela sem disso nos apercebermos. Isto é, com viva e interessada naturalidade.

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