Luiz Silva |
Aplaudo a iniciativa de alguns cidadãos mindelenses de comemorar o centenário da criação do Liceu Nacional Infante D. Henrique, em Mindelo, no ano de 2017. O artigo de Manuel Brito Semedo confirma a necessidade desta comemoração com o objectivo principal de: renovar a reflexão sobre a importância da criação deste estabelecimento de ensino tanto em Cabo Verde como também nos países de língua portuguesa ; facilitar o encontro dos antigos alunos de várias gerações e, certamente, constituir uma oportunidade rara de se fazer também o inventário das capacidades formadas nesse Liceu. Uma suma estamos perante uma excelente oportunidade de fazer uma reflxão sobre o passado, o presente e o futuro.
Não é difícil explicar as razões do encerramento do Seminário-Liceu de São Nicolau (1866 – 1917) devido aos conflitos entre a República (1910) e a Igreja Católica e o nascimento do Liceu Nacional Infante D. Henrique (1917). Há que reconhecer o mérito do ensino no Seminário de São Nicolau onde se formou a geração Claridosa e outros quadros que se distinguiram em todas as áreas do saber. Sairam do Seminário-Liceu os maiores quadros de Cabo Verde da altura, como Baltasar Lopes, Félix Monteiro, Pedro Cardoso, Juvenal Cabral, o mestre António Aurélio Gonçalves, Júlio Monteiro e outros. Com a subida de Salazar ao poder (1928), impôs-se então uma outra visão (reaccionária) da relação entre as colónias e a Metrópole, que levaria ao fecho, em 1936, do Liceu Infante D. Henrique, em Mindelo, que fora o fruto duma luta da elita, limitando o ensino às escolas primárias. Numa cidade, onde já existia uma elite pujante, uma forte classe operária, um grande cinema, uma tipografia privada (que já produzia o jornal de Notícias e a revista Claridade), o combate em defesa do liceu fez-se através da imprensa, distinguindo os seus maiores escritores: Augusto Miranda, Baltasar Lopes, Manuel Ribeiro d’Almeida e acima de tudo o Doutor Adriano Duarte Silva, reitor do liceu, que se deslocou a Portugal e que somente regressou quando teve a garantia da reabertura do liceu mesmo com um outro nome, o de Gil Eanes, o que veio a acontecer em 1937.
A casa do senador Vera-Cruz (Liceu Infante D. Henrique) - Foto José Carlos Marques, 2013 |
A toponímia da cidade do Mindelo ignora as figuras mais célebres da ilha e de Cabo Verde que passaram pelo Liceu Nacional Infante D. Henrique e Liceu Gil Eanes. Não é possivel uma leitura inteligente desta cidade se não formos capazes de fornecer aos nossos jovens e aos nossos visitantes um retrato fiel da história da cidade, atribuindo os seus nomes e estátuas às ruas, praças e jardins. Logo após a Independência, dever-se-ia ter feito um inventário das figuras mais importantes na história destas ilhas que se distinguiram na vida económica, cultural e desportiva. O livro de João Nobre de Oliveira, A Imprensa Cabo-verdiana (1820-1975), permite-nos descobrir figuras importantes de Cabo Verde, cujos nomes deviam ilustrar algumas artérias da nossa cidade.
Mas a criação do Liceu Infante D. Henrique (1917) está acima de tudo ligada ao desenvolvimento do Porto Grande. Não é justo falar do desenvolvimento da cidade do Mindelo e do Porto Grande sem se referir à presença inglesa em São Vicente que modelou a sociedade cabo-verdiana e não só, tanto ao nivel da cultura, da economia e do desporto. Os ingleses introduziram o salário semanal que libertava o trabalhador cabo-verdiano das sequelas da escravatura, permitiu a criação de sindicatos (ver o poema de Pedro Cardoso dedicado à Associação Operária do Mindelo em 1913), dando origem a uma pequena burguesia autónoma e uma classe operária que sabiam defender os seus direitos sociais e políticos perante a potência colonial. Tudo isto graças à influência inglesa que deixou em Mindelo novas posturas social e política, únicas no então Império português. A propósito disto, um museu da presença inglesa em São Vicente seria fundamental para o inventário da história de São Vicente e de Cabo Verde. Como dizia Manuel Lopes, no seu livro de contos O galo cantou na Baia, "toda a cachupa que Jul Antone comia lá no interior de Santo Antão cheirava a Porto Grande". O mesmo acontecia em todas as ilhas agrícolas que forneciam de víveres o Porto Grande. Ainda hoje é possível fazer uma leitura do povoamento da cidade do Mindelo que atingiu o seu auge no tempo áureo do carvão com a chegada de sãonicolenses no norte da ilha (Maderalzinho, Alto São Nicolau e Chã de Alecrim), santantonenses na Ribeira Bote, maienses na Rua de Coco, santiaguenses da Ribeira da Barca à volta da Praça Estrela (famílias Tavares, Moreira, Semedo, Estudante, Barros, Gomes, etc). Como soi dizer-se, São Vicente é a Ilha das Ilhas, pois graças ao Porto Grande, se acolheu gente que vinha visitar ou trabalhar e formar-se nesta ilha. A decadência do Porto Grande e a falta de uma nova política de desenvolvimento económico da parte do município e do governo condenam actualmente a ilha e a sua juventude a uma situação de desemprego, miséria e degradação nunca dantes visto. Urge solucionar o problema do desemprego em São Vicente, faltando ideias para a sua solução. Os horários de trabalho são antiquados e o turismo é insuficiente para garantir qualquer desenvolvimento a longo prazo. Por outro lado a política da Emigração morre por falta de ideias. Cito como exemplo comparativo as transfererências realizadas pelos malianos o seu país de origem que totalizam 70% das suas economias, os senegaleses 50%, enquanto que os cabo-verdianos apenas atingem 30%. Num outro país seria inquietante para a economia dos municípios assim como para o Governo. Será que a Regionalização, pondo termo ao centralismo económico do Estado, poderá trazer novas esperanças à cidade do Mindelo? Não será já muito tarde?
Ainda hoje fala-se do tempo de carvão em que o "gato de Mané ta engordá na gemada" na feliz expressão de Sérgio Frusoni. Foi precisamente com o intuito de dinamizar no plano cultural a cidade do Mindelo e o seu Porto Grande nos anos vinte do século passado, que as duas instituições foram criadas pela da sociedade civil: o Liceu Nacional Infante D.Henrique em 1917 e o cinema Eden Park em 1922. Dizia então o Senador Vera Cruz , cujo nome está intimamente ligado à criação do Liceu Infante D. Henrique e ao desenvolvimento económico e cultural de São Vicente: "uma cidade sem um liceu e sem um cinema não merece este nome". Ao oferecer a sua casa para servir como liceu, o Senador foi o exemplo do cidadão que põe os interesses da sua ilha/nação acima dos seus próprios interesses. Éisso que gostaria de ver praticado pelos políticos, intelectuais, a sociedade em geral da nossa praça, completamente alheios aos problemas do povo e da nação.
Este centenário será antes de tudo, a ocasião de se revisitar a história de São Vicente e de Cabo Verde, deturpada por pessoas que ignoram que esta ilha foi o pulmão de Cabo Verde, como Teixeira de Sousa uma vez disse. Será também uma grande oportunidade para se fazer justiça aos homens e mulheres que estiveram à frente do Liceu Infante D.Henrique e Gil Eanes e de todas as lutas travadas por São Vicente e Cabo Verde.
Durante mais de quarenta e cinco anos, foi o único liceu de Cabo Verde frequentado também por alunos oriundos das outras ilhas e originários da Guiné Bissau. Não porque o regime colonial fizesse favores a São Vicente em detrimento das outras ilhas e das outras colónias. O governo português teve de ceder perante o combate em prol do liceu. Como disse o Dr. Teixeira de Sousa, em 1962 no seu discurso de boas vindas ao Ministro do Ultramar, o Dr. Adriano Moreira, São Vicente não devia nada aos portugueses mas sim aos ingleses, embora estes não deixassem de ter os seus interesses.
Nos anos setenta apareceu uma certa corrente ideológica acusando o ensino do Liceu em Cabo Verde de formar agentes coloniais para as colónias portuguesas. Não era então somente o liceu, mas também todos os liceus portugueses e universidades. Não é possivel condenar o analfabetismo nas colonias portuguesas e criticar aqueles que se investem no ensino mesmo sem uma componente ideológica. Na verdade devido à escassez de emprego em Cabo Verde e não podendo emigrar, candidatavam-se a cargos na administração colonial portuguesa para os bancos, ensino liceal, administração pública, etc. Mas não fora esse o propósito dos fundadores do Liceu que eram já identificados como nacionalistas, tanto no caso do Liceu Infante D. Henrique como do Liceu Gil Eanes. A verdade é que os dois liceus estiveram sempre na resistência onde Adriano Duarte Silva, Baltasar Lopes, Antero Barros e outros foram sempre as grandes referências e que forneceram o maior numero de combatentes para a luta de libertação.
Antigo Liceu Gil Eanes - Foto de José Carlos Marques, 2013 |
Para esta comemoração do centenário não seria possível acho que seria oportuno e importante a publicação dos dircursos do Dr. Adriano Duarte Silva tanto em Cabo Verde como na Assembleia nacional de Portugal em defesa de Cabo Verde. Deste modo a nossa juventude teria a oportunidade de estudar e conhecer a verdadeira história da emancipação cultural e política de Cabo Verde, actualmente amputada pelos historiadores dos partidos políticos. Consta que o conterrâneo Virgílio Brandão possui a totalidade dos textos do Dr. Adriano Duarte Silva, conseguidos nos Arquivos da Torre do Tombo em Portugal, assim como também o discurso do Dr. Teixeira de Sousa, de 1964, aquando da inauguração do busto do Dr. Adriano Duarte Silva na Pracinha do Liceu Gil Eanes.
Os alunos do Liceu Infante D.Henrique e Gil Eanes estão espalhados pelo Mundo, onde têm transmitido os valores adquiridos no Liceu de São Vicente. O conterrâneo, poeta e romancista, Nuno Miranda, que foi aluno do Liceu Nacional Infante D. Henrique e do Liceu Gil Eanes e director da revista Claridade, publicou em 1959 um artigo intitulado O Cabo-verdiano um portador de cultura, que consta dos artigos dos Colóquios Caboverdianos, obra publicada pela Junta de Investigação do Ultramar.). Nesse artigo, Nuno Miranda procura alargar o espírito e os ideais do nosso ensino. Diz ele: "ora o ensino em Cabo Verde, com seus sistemas, seus conteúdos e seus propósitos, deve ser antes de tudo um instrumento vitalizante que se não abstraia das peculiaridades circunjacentes ao meio em que a retina da criança da nossa terra encontra estruturação; e que, paralelamente, oriente gradualmente o educando para o conhecimento de outas terras da África que têm para ela tantos motivos de afinidade". Reunir todos os antigos alunos, com todas as suas valências, no centenário do Liceu Infante D.Henrique será uma grande oportunidade do município e do governo de Cabo Verde de redescobrir a herança do Liceu, dar a conhecer as potencialidades daqueles que se encontram no estrangeiro, escutar os seus desejos de servirem o país de onde estiverem, apresentar sugestões e propostas ( incluindo o regresso dos emigrantes, pois a terceira idade pode constituir uma nova riqueza para Cabo Verde) enfim capaz de fazer. Quiçá poderemos promover nesta ocasião o renascer uma nova dinâmica associativa criando uma grande associação de antigos alunos, com sede em Mindelo, gerida democraticamente e capaz de manter as ligações entre os antigos alunos residentes no país e na Diáspora com o seu município e o governo.
Não faltarão benévolos dentro e fora do país para apoiar este grande encontro em homenagem ao ensino liceal em Cabo Verde. Mas pergunto-me se não seria o município do Mindelo a chamar a si a responsabilidade de tamanha iniciativa associando também os ministério da Educaçao e da Cultura Creio também que o Congresso dos Quadros Cabo-verdianos, a Associação dos Alunos do Ensino Secundário (antiga Associação dos antigos alunos do Liceu Gil Eanes), as associações cabo-verdianas dispersas pelo mundo (Holanda, França, América, África) poderiam associar-se a esta iniciativa, aproveitando as geminações, lobbyes, etc, para este fim.
Para além do que foi acima assinalado, este centenário pode trazer novas ideias e um novo dinamismo à cidade do Mindelo. Actividades culturais, como simposiuns, mesas redondas, congressos, debates públicos, praticamente desapareceram da cidade do Mindelo. Esta precisa de ser repensada, de criar factos e acontecimentos, ultrapassar ideias simplistas e fáceis, tais como festivais, investindo na economia, no urbanismo, na cultura, na música, no desporto nas artes plásticas, na literatura etc. Faltam-nos homens da dimensão do Senador Vera Cruz, César Marques, Manuel Ribeiro de Almeida, Baltasar Lopes, Teixeira de Sousa, Francisco Lopes da Silva que pensaram esta cidade e nos legaram um rico património urbanístico e cultural. Temos muitas universidades sim (mas questiono-me se não são demais...) e não temos livrarias, cinemas, bibliotecas nos bairros, o que acelera a marginalização das populações periféricas.
Seria importante organizar a comemoração do centenário da criação do Liceu Nacional Infante D. Henrique, em Mindelo de tal modo que coincidisse no mês deJulho de 2017, pois poder-se-ia contar com a participação de muitos emigrantes dispersos pelo Mundo. Há tempo para organizar e pensar um progama que reflita o percurso do liceu em São Vicente, da cidade do Mindelo em geral, sua contribuição ao desenvolvimento deste país, passando pela literatura, a música, o teatro, o desporto, as estórias e traquinices na Pracinha do Liceu, etc. Certamente que virão muitas ideias sempre bem vindas. Não somos muitos mas contamos com todos.
Assim apelo para que os organizadores comecem desde já a trabalhar num programa que inclua a marcação da data da comemoração. Com os trabalhos actuais no antigo Liceu Gil Eanes da Pracinha estamos certos de que o prédio poderá acolher os seus antigos alunos com toda a honra.
Mais uma vez felicito o grupo de mindelenses activos que tomou esta iniciativa de levar avante este evento. Que outras iniciativas sociais, culturais, económicas e políticas surjam sempre para acordar a cidade e os mindelenses da sua letargia.
Luiz Silva
Mindelo/Paris, Julho de 2016
Que venham mais manifestações como esta.
ResponderEliminarA bola está do lado da Câmara Municipal. Oxalá não congelem o jogo ou chutem para canto.
ResponderEliminarExcelente texto do Luiz: o Liceu merece uma homenagem.
ResponderEliminarPois, pois...E não se esqueçam de dar uma caiadela ao liceu velho...
ResponderEliminarBraça de broxa em punho
Zito
Adriano a bola tem que estar no campo da sociedade civil, os ex-leiceanistas gileanistas. Já há uma núcleo organizativo. Se esperamos pelo estado e a camara estamos lixados, o alerta veio com veemência do Tonecas Pedro Silva que já conhece bem aquilo. Embora esperemos sempre que a estado e a camara deem um apoio logísitco e financeiro julgo que se esperarmos por eles teremos um nado morto por todas as razões que já conhecemos.
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