segunda-feira, 19 de setembro de 2016

[2447] Mais uma desgraça, mais uma miséria: o farol Fontes Pereira de Mello, em Santo Antão

Fontes Pereira de Mello, a memória que precisa ser preservada!

Artigo publicado inicialmente no jornal "A Semana", em data desconhecida

Emmanuel d'Oliveira "Monaia"
Tudo indica que daqui a pouco tempo poderá vir a ser possível chegar ao Porto Novo de carro, saindo directamente do concelho do Paúl, passando pela Janela e Pontinha de Janela. A construção da estrada vai adiantada e a viagem promete ser agradável tanto à vista como aos bolsos, pois passará a ser mais barato e também mais rápido e cómodo aceder à “entrada” da ilha de Santo Antão. O permanente contacto visual com as verdejantes montanhas e ribeiras em simultâneo com o oceano e por vezes também com as ilhas e ilhéus vizinhos, só é interrompido pelas passagens subterrâneas através de túneis.

Pelo caminho, não haverá só horizontes deslumbrantes, haverá também monumentos históricos, sendo um deles a razão deste artigo. Trata-se do farol António Maria de Fontes Pereira de Mello ou simplesmente farol do Boi, devido à sua localização na ponta com este nome.

Foto Emmanuel d'Oliveira
Aproximar-se do farol exigia, até há pouco tempo, uma exaustiva caminhada por uma estreita via conquistada aos precipícios com astúcia de engenharia, à força de picareta e dispêndio de energia de muitos conterrâneos. A penúria em que se vivia no final do século XIX, associada às limitações tecnológicas e ainda a uma administração e burocracia retrógradas, adensaram os obstáculos e dificuldades impostas pela natureza, transformando em heróis todos os intervenientes na edificação do farol do Boi. Tal estatuto abarca a difícil e onerosa decisão superior, inclui igualmente a ousada e provada engenharia na escultura de perigosas vias por onde deviam passar gente e material para a construção, equipamento e manutenção do farol. Os heróis dos heróis foram sem dúvidas os homens e as mulheres que cederam os seus braços, as suas forças, a sua coragem, o seu suor e possivelmente algumas vidas para, sub-nutridos e mal pagos, fazerem o que hoje seria impensável sem o recurso a sofisticadas máquinas, sem a ajuda da cooperação internacional, sem o envolvimento de bancos internacionais e sem uma teia de projectos, empresas, etc.

Se o "pharol" Fontes Pereira de Mello passa a estar a escassos metros de uma confortável via rodoviária, é fruto da contínua contribuição do cabo-verdiano na viabilização das suas próprias ilhas. Poderá ser assim frequentado, sem perigo nem canseira, por todos em homenagem àqueles que há muito também deram o seu contributo na edificação desta nação. 

Foto Emmanuel d'Oliveira
Na qualidade de farol de aterragem, os sinais de Fontes Pereira de Mello podiam ser vistos a mais de quarenta milhas náuticas (cerca de oitenta quilómetros) de distância graças à luz produzida por três candeeiros a petróleo, aumentada por um conjunto de lentes que rodam sob a cadência de uma complexa engrenagem mecânica. Durante cerca de 100 anos este farol indicou aos navegadores, vindos do norte, a aproximação do arquipélago de Cabo Verde, até ser recentemente substituído por uma tecnologia moderna que funciona à base de energia solar e dispensa a função do faroleiro. A imponente e bela construção, projectada e dirigida pelo Coronel de Cavalaria Frederico Augusto Torres, então Director das Obras Públicas da província, encontra-se ainda de pé embora abandonada à sorte dos ventos, da maresia e dos esporádicos mas nem sempre corteses visitantes.

A construção do farol teve o seu início em Junho de 1884 para terminar em Maio de 1886, decorria o reinado de D. Luís I, e foi inaugurado pelo Governador-geral João Paes de Vasconcellos. O seu estado actual exige uma intervenção rápida e profunda, sendo ainda possível o seu completo restauro, pelo respeito àqueles que o edificaram com o orgulho e tenacidade, homenageando assim o esforço de muitos incógnitos na construção deste país, lembrando igualmente a importância destas ilhas na navegação marítima internacional. Somos pobres em sinais históricos expressos em monumentos ou edifícios, portanto em nome de um futuro melhor não faz sentido ignorar esses escassos vestígios do nosso passado. 

Existem um total de 70 faróis em CV, sendo cinco de aterragem. Os faróis com algum valor arquitectónico são apenas sete. O mais antigo foi edificado em 1881 embora os farolins já existissem anteriormente.

Foto Emmanuel d'Oliveira
A entidade estatal responsável pela manutenção e funcionamento dos faróis é o Instituto Marítimo Portuário que substituiu recentemente a Direcção Geral da Marinha e Portos. O actual técnico responsável é o engenheiro radiotécnico Vladmir Pires. O homem e a instituição que representa têm feito tudo para que a situação não fosse pior, lutando contra insuficientes orçamentos, magros apoios e o incompreensível vandalismo popular que insiste em destruir tudo o que seja público, comum a todos nós, de ontem, hoje e de amanhã.

António Maria de Fontes Pereira de Mello, a quem foi dado o nome ao farol do Boi, foi filho de João António de Fontes Pereira de Mello, Governador Geral de Cabo Verde por duas vezes. Particularmente dedicado à ilha Brava para onde quis transferir a capital, realizou importantes obras publicas influenciado pelo filho que acreditava na viabilidade da província. A primeira escola primária superior na Brava e o hospital da Misericórdia da Praia foram algumas delas. 

António Maria de F. P de Mello foi ajudante de campo do próprio pai, casou-se com uma nativa destas ilhas, filha do comerciante Machado de Sousa de quem teve uma filha, tendo perdido ambas muito cedo. Veio a ser deputado por Cabo Verde, ministro e proeminente político e estadista em Portugal a ponto de merecer ser homenageado com uma das principais avenidas no centro de Lisboa (Avenida Fontes Pereira de Mello). Muito activo e bem sucedido, marcou a sua época desde cedo, tendo, entre outros, participado em várias guerras e lutas contra insurreições, revolucionou o sistema alfandegário na qualidade de ministro das finanças. Também na oposição não deu tréguas aos adversários políticos, recebeu diversas condecorações e homenagens tanto portuguesas como estrangeiras. 

Nasceu em 1819 e faleceu em 1887.

8 comentários:

  1. Já me fiz eco deste assunto no AcA, citando uma noticia de Janeiro, em que um membro do governo prometia, para este ano, a recuperação de TODOS os faróis que, ao que parece, serão sete...
    Braça com lampejos
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    1. SETE, dignos de reparo, acrescente-se...
      Braça com very sorry,
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  2. Grande texto! Se dúvidas houvesse sobre a imperiosa necessidade de (ao menos) salvar os nossos faróis, o Emmanuel d'Oliveira explica aqui com palavras de ouro e atilado discernimento as razões por que é necessário percebermos que todo o património edificado não só testemunha o que somos e fomos, como também relembra respeito que merecem aqueles que o erigiram com o seu engenho e o seu esforço.
    Assim, desprezar o nosso património, deixá-lo ruir, vandalizá-lo, é uma incompreensível demonstração de ingratidão. Pelos vistos, o povo de Cabo Verde está a surpreender-nos com provas de tamanha e inesperada ingratidão.

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  3. Importante artigo que merece máxima divulgação

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  4. m ex-librix da ilha também em completo estado de abandono ejá em estado avançado de degradação.

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  5. O "Monaia" foi uma excelente "aquisição" do Praia de Bote. Bons textos, sobre assuntos interessantes e ainda por cima está a comentar. Esperamos que continue connosco, por muito e bom tempo. Já está ali ao lado, na lista dos colaboradores.

    Braça,
    Djack

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  6. Este articulista defende, especialmente, um farol. Espero que o acto seja um lampjo para clarear outras consciências.
    Se fizermos como a galinha branca que anda pa casa d'gente catando ingrão de midje, vamos conseguir muita coisa.
    Força !!!

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  7. Dá para entender que o texto foi escrito há alguns anos quando fui a S Antão à caça de informaçoes sobre o confronto entre submarinos ingleses e alemães na baía de Tarrafal do Mte Trigo (enviarei isso brevemente ao PB). Na ocasião a entrada para a torre do farol estava sem portas, o acesso desimpedido, ainda havia muito equipamento embora danificado. Mais tarde, depois de um assalto para retirar peças de cobre para fabrico de alambique, resolveram emparedar a entrada. Em pouco tempo, depois do tunel ser inaugurado, tudo o que podia ser arrancado à mão, desapareceu.

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