quinta-feira, 10 de novembro de 2016

[2705] Prefácio de António Monteiro no novo livro "Nho Sabora", de Nuno Rebocho

NHO SABURA

Escorço sobre a dieta cabo-verdiana

Nuno Rebocho
NUNO REBOCHO - UM DOS PIONEIROS DA GASTROSOFIA CABO-VERDIANA


Livros sobre a culinária e gastronomia cabo-verdianas já existem em bom número e hoje nenhum jornal da praça que se preze, blogue ou site prescindem em trazer aos seus leitores sabores crioulos para todo o tipo de gostos e para as mais diversas circunstâncias. É como se, descoberto um filão, todos quisessem assacar o seu quinhão e Nho sabura – Escorço sobre a dieta cabo-verdiana não passaria disso mesmo – mais um livro a somar aos muitos outros escritos e repetindo o já estafado catálogo de receitas que começa pela inevitável cachupa rica e termina com um requintado caldo de peixe, de preferência cozidos em ‘lume de lenha’, como se tornou moda ultimamente. Não é que Nho sabura, a primeira incursão do autor na gastronomia cabo-verdiana, não traga os pratos de maior sucesso nas mesas crioulas e arte de as confecionar, mas,   na verdade, o propósito de Nuno Rebocho é bem outro, como, aliás, nos dá conta logo nas primeiras páginas do livro –  trazer ao de cima  “o essencial para uma compreensão do particular da cultura e história do “povo das ilhas”: as suas raízes, as suas caraterísticas, as evoluções que são, afinal, a substância (e riqueza) da sua História”. Para este empreendimento vem o autor munido de duas condições essenciais: conhecimento profundo das gentes e costumes, incluindo os hábitos alimentares deste arquipélago que já é a sua segunda pátria e dotes de investigador perspicaz e atento. 

Podemos dizer que, com Nho sabura, Nuno Rebocho estabelece-se como um dos pioneiros da gastrosofia cabo-verdiana, no sentido em que através do estudo das tradições gastronómicas das diversas ilhas e épocas extrai o verdadeiro significado filosófico da alimentação na formação da identidade cabo-verdiana. Aliás, um dos grandes méritos deste livro é chamar a atenção para um aspeto negligenciado pelos estudiosos: o reflexo da miscigenação cultural e inter-racial na dieta cabo-verdiana. “A gastronomia que, com os reinóis, veio da Europa conjugou-se com os hábitos alimentares que, arribados de África, os escravos trouxeram na memória da sua origem e que as magras oportunidades consentiam. O “caldo” daqui resultante moldou-se na agricultura e na pecuária que os povoadores de um território antes desabitado foram cultivando – a pobreza do solo e o incerto das chuvas forneceram-lhe o milho proveniente do continente americano que rapidamente substituiu o milho-miúdo”.  

Se o autor estabelece que a miscigenação cultural reflete-se na dieta cabo-verdiana, também não é menos verdade que a escassez das chuvas e a pobreza do solo moldaram os hábitos alimentares dos cabo-verdianos. Aliás, resultante das fomes cíclicas que se abateram sobre as ilhas desde os primórdios do seu achamento até às vésperas da independência, a busca de comida entrou no fabulário cabo-verdiano. Manuel Ferreira, no seu livro Aventura Crioula, mostrou-se surpreendido com a percentagem de histórias do ciclo Lobo e Chibinho que giram à volta do tema da comida e pelo facto de nos contos tradicionais portugueses ou africanos se comer em casa ou em casa do vizinho. “Em Cabo Verde, por norma, anda-se na busca de subsistência”, afirma o ensaísta português, assinalando o facto “como reflexo da existência das muitas estiagens e da muita fome que avassalam o Arquipélago, obrigando à deambulação”. Para Nuno Rebocho, essas circunstâncias levaram o cabo-verdiano a desconhecer os prazeres da comida e à falta do culto da boa mesa. “Educado com a marca das fomes cíclicas, o alimento tem-lhe sido quase sempre apenas forma de subsistência e não circunstância motivadora de oportunas e saborosas “soluções culinárias”, ao contrário do que acontece noutras longitudes e latitudes”, sintetiza o autor. 

Apesar de o milho constituir o cereal por excelência destas ilhas e a maioria dos pratos serem confecionados à sua base, Nuno Rebocho adverte que só o desconhecimento da variada cozinha crioula permite reduzir a nossa gastronomia às cachupas e pouco mais.

“Encontram-se verdadeiras iguarias na sua culinária, tornando-se difícil destacar as melhores especialidades”. Para prová-lo está este livro de Nuno Rebocho, cuja leitura recomendo a todos quantos se dedicam ao estudo da génese identitária cabo-verdiana, mas também aos apreciadores de um bom prato arquipelágico – seja um modje di Manel Anton, de S. Nicolau, uma djagasida, da ilha do Fogo, um caldo de peixe à maneira da Cidade Velha, um peixe assado à moda do Sal, uma kavala fresk sanvicentina, uma txasina da ilha do Maio ou um fongo, de Santo Antão.


António Monteiro

4 comentários:

  1. Parabéns ao autor. Pela leitura do texto de apresentação, o livro promete ser de boa e histórica informação. O tipo de alimentação complementa também a identidade de um povo. No nosso caso, uma bela mestiçagem encontra-se igualmente na nossa cozinha.

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  2. "...hoje nenhum jornal da praça que se preze, blogue ou site prescindem em trazer aos seus leitores sabores crioulos para todo o tipo de gostos e para as mais diversas circunstâncias."
    Que pena!!! E insistem em não oferecer aos turistas menus tipicos...
    Tive oportunidade de falar com um empresàrio português que viveu em Angola e que visitou - sob minha recomendação - algumas ilhas de Cabo Verde. Para ali foi três vezes e tivemos uma reunião com uma "chefe" de origem asiàtica que prometeu explorar produtos nacionais em restaurantes tipicos a abrir em Santo Antão, S.Nicolau e S.Vicente.
    Se não teve o acolhimento administrativo desejado não perdeu (de todo) a esperança.

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  3. Boa iniciativa editorial do Nuno Rebocho.
    Na verdade, o Val tem razão quanto ao défice de culinária tipicamente cabo-verdiana na oferta ao turista. Verifiquei nas minhas visitas que a dieta é quase sempre peixe grelhado nos restaurantes, o que pouco ou nada diz da especificidade e variedade da nossa cozinha. Há quatro anos, fui a Santo Antão e, conduzido por um guia/chofer, disse-lhe que gostaríamos de passar por um restaurante ou estabelecimento que tivesse ao almoço aquela ervilha verde guisada (com os seus acompanhantes) que eu conheci nos meus tempos antigos. Respondeu que não era possível, por uma razão que não me convenceu. Ao almoço, teve de ser o sacramental peixe grelhado com batatas e legumes...

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  4. A culinária de CV é um património que está-se perdendo e como em tudo não é aproveitada a indústria turísitica para vender uma culinária tipicamente caboverdiana. Mais uma vez foi na ilha de SV, pelas mesmas razões, que a cozinha caboverdiana ganhou todos os seus galões e aspectos universais que hoje conhecemos. A sabedoria culinária das nossas avós não teve continuidade. Parece que em CV houve uma ruptura com tudo em 1975. Dou aqui umm desconto à cachupa, o prato tradicional, que virou um luxo ,pois hoje em dia fica muitíssimo caro a sua confecção. Tirando isso as doçarias os bolos o pão, já não sabem como antgamente. O bolo de mel já não tem mel tradicional caboverdiano mas açuçar queimado etc. Já não se fabrica o 'pom de midje', a broa mindelnse, nem o barão. O pão de um cruzod já não sabe a pão, os bolos nem falar. O pão tradicional desapareceu pois é hoje confeccionado como em todo o mundo de maneira industrial pelas cadeias de padarias que estão a aparecer e a substituir as locais, que não souberam investir e modernizar-se. Isto tudo reflecte a nossa decadência.

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