segunda-feira, 30 de outubro de 2017

[3228] Intervenção do jornalista, radialista, poeta e escritor, amigo de Cabo Verde e sobretudo de Ribeira Grande de Santiago, Nuno Rebocho, na hora da despedida

Texto proferido por Nuno Rebocho a 28 de Outubro, no VII Encontro de Escritores de Língua Portuguesa na Praia, à beira da partida definitiva de Cabo Verde (e da Cidade Velha), país a que deu notável contributo, felizmente já a ser reconhecido. Excepção (mais que justa) à regra de não publicarmos textos de quem não comenta com regularidade os posts do Pd'B.


Quando o meu amigo Tober me meteu na encrenca de falar neste Encontro promovido pela UCCLA, fiquei sem jeito. Pior ainda quando me pediu para lhe propor um tema. Apesar do meu passado de radialista, não gosto de me dirigir a um público. Sempre disso me acanhei desde que, há mais de 50 anos, Manuel da Fonseca me colocou na enrascada de perorar no Ginásio Atlético Clube da Baixa da Banheira. Decididamente, fiquei lixado e lixado fico em situações como estas. Ao público que me assiste, peço desculpa pelas minhas atuais dificuldades de me expressar.

Não me considerando propriamente um escritor – mas mais um escrevente, ou se o quiserem, um escriba – senti-me a vestir uma farda que não é minha. Atendendo, porém, que nesta sala estão pessoas que fazem o favor de ser minhas amigas, transformei as tripas em coração e atrevi-me à faladura, de imediato me lembrando da pergunta que qualquer aprendiz de jornalista usa fazer quando, em períodos de estágio, interpela um profissional da escrita: por favor, diga-me lá o que o trouxe a esta função? Porque e quando começou a escrever?

Digamos que esta é uma questão que a mim mesmo bastamente me ponho. Porque escrevo? Por modos de quê, usando daquela expressão de bom português que evoluiu para o crioulo – pamodi? Porque sinto necessidade de relatar a outros o de que sou testemunha, o que sinto, o que penso, o que interpreto? Ou seja: porque sinto necessidade de comunicar a outrem situações que comigo se passam? Este facto relaciona de perto a função de repórter ao mister de escritor. Com efeito, não será por acaso que muitos dos nomes da escrita começaram precisamente por se dedicar à função jornalística: entre muitos outros, citar-vos-ia os exemplos de John Kerouac ou de Ernest Hemingway, para não vos referir o dos meus amigos cabo-verdianos Arménio Vieira, Danny Spínola ou Daniel Medina.

A propósito, lembrarei acesa discussão que, na cidade da Praia, tive certa noite com dois insignes cultores das letras (cujos nomes, por respeito, não apontarei) sobre a obra da Germano de Almeida. Contestavam eles que Germano fosse “escritor”, designando-o antes por “contador de histórias”, ao que eu contrapunha – “mas o que é um escritor senão um contador de histórias?”. De histórias que ele soube, ouviu ou imaginou? Que no sigilo do seu escritório de advogado, no Mindelo, Germano de Almeida escutou? Claro que Germano de Almeida, ao rotular-se a si mesmo de “contador de histórias”, legitima que alguns se recusem a considerá-lo escritor – o que, efetivamente é – e prefiram dar-lhe designações que, com outras palavras, quererão dizer o mesmo.

No meu caso pessoal, em que apenas sou autor de um romance publicado, “A Segunda Vida de Djon de Nha Bia”, pesou o que pude ver numa deslocação à ilha de Santo Antão - cruzado com a visão nessa viagem de possíveis protagonistas da história que os acontecimentos de Cabo Verde (e os incidentes do novo acordo ortográfico) me sugeriam, bem como com as oportunidades que resultavam de, na ocasião, estar por responsável da redação de um jornal editado na Praia e nele precisar de ocupar espaço disponível. Tudo isso esteve na origem de que tal romance fosse desbobinado.

Dir-se-á que há romances ou livros sem história narrada. E excelentes textos – abundam por aí os nouveaux romans em que a narrativa é desprezada. E mesmo recordarei aqui a excelente obra de Jorge Carlos Fonseca recentemente editada (“O Albergue Espanhol”) na qual o enredo é pretexto mais que secundário: um poema que quis ser romance e acabou por ser prosa poética. Estes casos, porém, não subvertem que a função de escrever decorra da necessidade de transmitir a outrem quanto o escritor recolhe do mundo que o rodeia.

Na crónica, a necessidade que impende sobre quem escreve fica, no entanto, mais óbvia. Estão neste Encontro nomes que se vêm distinguindo neste género de escrita e que sobre ela poderão falar melhor do que quem, como eu, apenas tenha dois livros de crónicas publicados. Quanto à poesia, se o que se vê é em parte determinante (e a minha poesia tem muito de visual), sobrepesa a transmissão dos sentimentos, das emoções que se querem transmitir a outros.

Como quer que seja, o ato de escrever, a função de escrever, surge como um ato de comunicação, burilado por quanto se recebe dos mestres que cada um encontrou na sua formação (no meu caso, foram excelentes mestres – os nomes falam por si: Cansado Gonçalves, Cardigos dos Reis, Mário Dionísio, Vergílio Ferreira ou Bénard da Costa, entre outros) - e do que os amigos e companheiros de estrada que o acaso nos proporcionou, ou trabalhado pelo que nos passa pelas mãos e é recolhido nos escaparates, nas bibliotecas, ou que as oportunidades nos oferecem.

A interrogação que, tantas vezes, ponho a mim próprio – porque ocupo parte dos meus dias no exercício da escrita? – começa a ser de alguma forma respondida. Acrescento: a circunstância de ter sido um profissional da informação (nos jornais e na radiodifusão) me empurrou para que não me circunscrevesse à obrigação profissional de preencher laudas e laudas destinadas a leitores e/ou ouvintes. A outra escrita foi complementar dessa atividade, procurou ultrapassar a curta vida da notícia e ganhar expressão na literatura. Animador cultural e literato foram, assim, tentativas para procurar sobreviver ao efémero da comunicação das notícias.

Neste desejo de me projetar para lá do limitado espaço da Informação, já começo a encontrar outra resposta às interrogações que normalmente se colocam a quem escreve, independentemente da qualidade do seu escrito: afinal, para que se escreve? Qual o objetivo? Pa kuzé?, se pergunta em bom crioulo. Em termos simples: o ato de escrever representa uma tentativa para superar a brevidade do escritor. Dizemo-lo sem recorrer às habituais citações que costumam enfeitar as intervenções e que, no dizer de um amigo meu com quem muito me aconselho e repeti ao falecido meu amigo Eduardo do Prado Coelho, por norma traduzem que muito se lê e pouco é o que sobre o que se lê se matuta. Dispensarei esse recurso até porque, mesmo que o quisesse, nas atuais condições, me é impossível a ele me socorrer.

Ou seja, resumindo: quem escreve fá-lo para se projetar, isto é, usando de um linguajar simplista, para fazer figura. O escriba que sou aqui o reconhece e confessa.

Recordo os anos de 60 e 70, quando inchava o peito se os meus textos apareciam publicados nalgum jornal ou revista. Metia a publicação debaixo do braço e pavoneava-me com ela. Exibia-me. O texto publicado aparentemente me dava outra dimensão daquela que, depois, percebi que realmente eu tinha. A meu modo, imitava o que, mais tarde, justamente condenei: que, com o seu exibicionismo, alguns se fizessem “cabides ambulantes”. Enfim, destas águas quase todos bebem um pouco. Estou certo: não fui, não sou exceção.

A consciência do valor do texto elaborado, da mensagem transmitida, justifica que se dê dimensão ao que se escreve, que se encaminhe para o público aquilo que se produz. Ao fim e ao cabo, a comunicação deverá chegar a destinatários. Quem escreve, fá-lo para os outros. Pelo menos, é o que tantas vezes se afirma. Será verdade? Tenho dúvidas!

Com este círculo quase perfeito, vender-se-ia - a quem me escutasse com atenção - uma excelente fábula. Se correspondesse à verdade, se tivesse fundamento, ficaria bem na fotografia. Melhor dito – ficaríamos todos bem numa fotografia de família. Contudo, todos o sabemos, tal não corresponde à verdade.

Infelizmente (ou felizmente), o escritor é um bicho solitário e fortemente individualista. No ato e no momento de escrever, está por norma ensimesmado. Difere por certo a forma como o faz. Mas regra é esta – por norma, o escritor fica isolado consigo mesmo. Escreve, debatendo-se com o seu pensamento. É um combate feroz, violento, por vezes mesmo doloroso. E em conflito com seus confrades, procurando a afirmação da sua individualidade. Escreve para si – é isso. O universo dos outros é algo que se desenha depois, quando passa à fase da edição e a tiragem começa a preocupá-lo. 

Por regra, o escritor é um narcisista. A ideia de que são os outros que diretamente o motivam (sabemo-lo) não passa de uma balela. Por mim falo, apesar de, como vos disse, não me considerar escritor. 

Recusando a fórmula sugerida pelas conveniências e usando a sinceridade máxima, verifico que as perguntas, as três perguntas fundamentais que me trouxeram aqui, continuam a requerer respostas. Porquê? Para quê? Por quem? Nunca encontrei respostas satisfatórias. Provavelmente, precisaria de outros 70 anos de vida para achar respostas às três perguntas aparentemente simples. Aparentemente simples. 

Em conclusão: não tenho respostas a propor-vos. Sei que escrever é difícil. Usando a palavra que me salta da boca: escrever é mesmo lixado.

2 comentários:

  1. Não preciso de muitas palavras para dizer que adorei ler este texto. Escorreito, sincero, asseado e bonito. Demonstra que o seu autor é mesmo escritor. Pena que ele deixe as nossas ilhas. Que Deus o acompanhe e que a sorte lhe sorri sempre.

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  2. Mais um que deixa saudades. De certeza ele vai voltar.
    "A saudade mata a gente..."

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