terça-feira, 2 de janeiro de 2018

[3370] Escavação no passado dos nossos textos... sobre uma planta especial

Vem esta escavação no passado dos nossos escritos sobre Cabo Verde a propósito de um texto a que fomos dar, ancorado no blogue "Coral Vermelho" da nossa amiga Ondina Ferreira, cujo título é "Efeitos lactogéneos da bafureira". Repesca ele um artigo do nosso também amigo Arsénio Fermino de Pina. Ver AQUI. Lembrámo-nos então que já tínhamos trabalhado o tema (em divulgação integral de esquecido texto alheio), nos idos de 2007, surgindo aí a planta com uma das suas muitas designações, em versão "bofareira". Aqui vai ele, para os leitores, neste segundo dia de 2018.

Coluna CABVERD DI MEU do jornal electrónico "Liberal" (Cabo Verde) – 24.Maio.2007
Joaquim Saial

A BOFAREIRA, COMO ESTIMULANTE DA LACTÂNCIA, NO CABO VERDE DE ANTES DE 1846

Rícino (ricinus communis), carrapateiro, mamona, mamoneira, tártago, bufareira ou bofareira são palavras da língua portuguesa associadas a uma planta curativa usada na medicina, devido às suas propriedades purgativas, e que nos dias de hoje está até a ser aplicada como base para a produção de biodisel. Trata-se de vegetal frequente na generalidade das ilhas de Cabo Verde, que teve grande popularidade em meados do século XIX (e antes e depois, embora não saibamos quando começou a ser utilizado ou se ainda há quem o empregue para os efeitos que iremos descrever). Assim reza um artigo da publicação espanhola «Gaceta Médica» que em 20 de Fevereiro de 1851 reproduziu um artigo do «The Lancet», prestigiado jornal médico britânico independente, fundado em 1823 pelo cirurgião Thomas Wakley (1795-1862), que ainda hoje existe.

A curiosíssima peça é sem dúvida significativo contributo para uma história da medicina cabo-verdiana, a fazer, reportando-se à já longínqua época da rainha D. Maria II. E de igual modo, sinal óbvio do interesse que um médico proveniente das terras de Sua Majestade britânica, contratado pelo Governo português, encontrou no estranho mas eficiente uso que se fazia da bofareira na, à época, recôndita ilha da Boavista. 

Vejamos então o citado texto, que fala dos trabalhos do Dr. Mac William na Boavista, onde principalmente se dedicava ao estudo do andamento da febre-amarela que ali grassava em 1846 – em tradução nossa, a partir do texto em castelhano da «Gaceta Médica», ali traduzido do inglês. Um verdadeiro mimo de escrita, de ciência, de usos e costumes ancestrais e de saber de experiência feito! A recuperar?... A respeitável classe médica cabo-verdiana que o diga.

«DO USO DA BOFAREIRA (RÍCINO COMUM), COMO MEIO ADOPTADO ENTRE OS HABITANTES DAS ILHAS DE CABO VERDE, PARA ESTIMULAR A LACTÂNCIA

Estando o Dr. Mac William ocupado por mandato do Governo na ilha da Boavista (uma das de Cabo Verde) a estudar a natureza e marcha da febre-amarela que nela grassou no ano de 1846, chamou a sua atenção um modo particular empregado geralmente nesta ilha para acelerar e aumentar o afluxo do leite às mamas das mulheres nas quais esta segregação tardava em aparecer ou era pouco abundante. Soube também o dito professor que nos casos urgentes se serviam com bons resultados deste meio para um uso ainda mais importante, que era provocar artificialmente o aparecimento do leite em mulheres que não tinham tido descendência, que não tinham criado filhos ou que os tinham desmamado alguns anos antes.

Para obter este curioso e interessante resultado, utilizam-se as folhas de uma planta chamada naquele território “bofareira”, mas que na realidade não é mais que o “rícino comum” dos botânicos e por vezes as folhas da “jatropha curcas”, [a purgueira, que chegou a ser exportada de Cabo Verde e que no Brasil designam por figo-do-inferno, pinhão-manso ou pinhão-de-purga, entre outros nomes – comentário nosso] que pertence como aquele à família das “euforbiáceas”.

A bofareira cresce em quase todas as ilhas de Cabo Verde. A variedade que os habitantes utilizam é a “branca”, assim designada para se distinguir da “vermelha”, cuja casca é de um vermelho vivo, enquanto que a da primeira apresenta cor verde clara. Os habitantes não utilizam a variedade vermelha porque, segundo eles, é irritante, as suas propriedades são menos enérgicas e pode determinar fluxos menstruais abundantes.

Se depois do parto tarda a aparecer o leite, o que sucede com frequência neste território, faz-se ferver em seis a oito litros de água de fonte um punhado de folhas de bofareira branca, com cujo cozimento se dá um banho aos peitos durante quinze a vinte minutos. Em seguida estende-se suavemente sobre os mesmos uma porção destas folhas que se mantêm em contacto com a pele até que sequem. As fumigações e a aplicação das folhas repetem-se com curtos intervalos, até que saia o leite por sucção do bebé, o que sucede habitualmente ao cabo de algumas horas.

Nos casos em que se quer provocar a saída do leite em mulheres que não tenham tido filhos ou que já não os criam há muitos anos, o procedimento que se adopta é diferente. Faz-se uma cozedura com dois ou três punhados de folhas de rícino; deita-se num recipiente largo, sobre o qual se senta a mulher de modo que possa receber nos músculos e órgãos genitais os vapores exalados. A mulher permanece nesta posição, tapada de modo que não possa libertar-se vapor para o exterior durante 10 a 12 minutos, até que o líquido tenha arrefecido o suficiente para poder banhar as partes neste líquido pelo espaço de 15 a 20 minutos. Depois banham-se os peitos, friccionando-os suavemente com as mãos e cobrindo-os depois com cataplasmas de folhas. Estas operações repetem-se três vezes no primeiro dia; no seguinte, mais banhos, três a quatro vezes, e aplicam-se as cataplasmas de folhas; no terceiro dia repetem-se as aplicações de vapores nas partes genitais, as fricções às mamas e as cataplasmas de folhas. De seguida aplica-se o bebé ao peito e na maior parte dos casos encontra-se a secreção láctea necessária. Se ao terceiro dia não se conseguirem os resultados desejados, continua-se o tratamento por outros tantos e se nada de novo se obtiver é preciso renunciar a toda a esperança, porque a pessoa é refractária à influência da bofareira. Nas mulheres que têm as mamas muito desenvolvidas conseguem-se melhores resultados que nas demais; nas que as têm pequenas e brandas, actua a planta de modo mais activo sobre o sistema uterino que sobre as glândulas mamárias, fazendo com que os fluxos menstruais sejam mais abundantes. As mulheres submetidas a este tratamento evitam com cuidado a acção do frio sobre as mãos e os pés. 

O uso da bofareira com o objectivo de acelerar o fluxo de leite é mais geral e pelo contrário muito raro para provocar a lactância artificial. Sem dúvida, depois da epidemia da Boavista, que dizimou em 1845 e 1846 a população desta ilha, houve alguns exemplos entre parentes de crianças que tinham ficado órfãs. O autor viu muitas pessoas que se haviam criado deste modo e um médico local, o Dr. Almeida, contou-lhe um caso relacionado, que não deixa dúvida alguma:

Em 30 de Janeiro de 1846 apresentaram-lhe uma mulata com a idade de 30 anos, pequena, forte e de boa constituição e habitualmente com menstruação regular. Era mãe de três filhos, o mais novo com três anos e desmamado havia dois. Disse ao autor que lhe havia desaparecido inteiramente o leite, poucos dias após o desmame. Não apresentava nenhum sinal de gravidez, os peitos estavam como os das mulheres negras que tiveram filhos, caídos e frouxos, e era impossível, por mais que os comprimisse, obter uma só gota de leite. Esta mulher submeteu-se aos banhos, às fumigações, às cataplasmas, às fricções, etc., e ao segundo dia saía uma ligeira quantidade de leite como se fosse soro, e verificou-se uma ligeira elevação da auréola. No terceiro, a quantidade de leite era maior e menos aquosa. Na manhã do quarto dia havia um aumento evidente do volume da porção inferior da mama e o leite saía abundantemente, quando se aplicava um bebé ao peito.

Quanto à diferença que existe entre a bofareira branca e a vermelha, o doutor Mac William consultou muitos botânicos que lhe responderam que eram pura e simplesmente duas variedades da mesma planta (o rícino comum) e que se podiam utilizar indiferentemente).»

2 comentários:

  1. Da bofareira e da babosa lembro-me de ouvir falar quando menino.
    Ainda tenho na memôria a figura de uma senhora que passaria regularmente com um cabaz a apregoar "Oli mote". E, claro, dos que a minha mãe comprava para dores de barriga, dorês de cabeça ou mesmo, quando por inventàvamos qualquer coisa para nos ervirem um chà em hora extra.
    V/

    P.S. - Praia de Bote traz-nos um extracto d'O Liberal. Daria o meu ouro para poder penetrar nos arquivos desse jornal para recuperar os meus contos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É mandar o pedido para Frei Gilson. E já agora, eu se fosse ao mnine de Tours, mandava mais textos para o TN. Toda a gente teria a ganhar com a sabedoria dele.

      Braça literário,
      Djack

      Eliminar

Torne este blogue mais vivo: coloque o seu comentário.