(...) Plóna sempre tivera um sonho: visitar a ilha de Santa Luzia. Parecia-lhe impossível que o local não fosse habitado, excepto por pequenos bicharocos e algumas aves. Leituras de "A Ilha do Tesouro", de Stevenson, que tivera por hábito fazer a Alice à noite, antes de esta adormecer, e a similitude do topónimo da ilha com o seu apelido, haviam aumentado nela a forte vontade de vasculhar aquele pedaço de terra ao qual só de quando em quando aportava raro pescador que por ali ficava pouco tempo. E contra toda a lógica e conselhos do médico que lhe seguia a gravidez, convenceu Vittorio a levá-la lá no oitavo mês de gestação.
Ilha desabitada de Santa Luzia - Foto RTC |
Vittorio ficou em pânico. A ideia irreflectida da mulher de ir a Santa Luzia, apenas por exasperante curiosidade, se não beneficiara do seu apoio, também não tinha tido pela parte que lhe cabia oposição frontal, visto que não a queria magoar naquela fase em que todos os carinhos eram necessários. Mas agora arrependia-se amargamente de lhe ter concedido a viagem. Sem saber muito bem o que fazer, voltou ao gasolina para buscar fio e uma garrafa de grogue de cana que sempre por ali andava e servia para lhe aquecer o corpo nos dias de maior frialdade. Encostada à falda da duna, Plóna espremia-se num frenesi de dores intercaladas com pequenos períodos de calma. Entrementes, o marido, amparando-a com os braços, ia-lhe limpando o suor que lhe escorria pela testa. Ainda pensou em voltar a São Vicente, para pedir ajuda, mas o olhar suplicante que a mulher lhe lançou e o seu pedido «Não me deixes, Vittorio, que eu morro.», fizeram-no abandonar a ideia. O dia passou-se nisto até que, já com a Lua a despontar no céu, nasceu a criança: um rapaz. Vittorio enxarcou o fio e a navalha que nunca o abandonava com grogue, atou o cordão umbilical em dois locais separados por poucos centímetros e procedeu ao corte. Finda a precária cirurgia, lavou o menino conforme pôde, com a água que foi tirando da garrafa que tinha trazido no farnel. Voltou segunda vez a bordo do "Badejo", à procura de um cobertor, mas quando ia a transpor a amurada, uma onda maior virou o bote e arremessou-o de encontro ao casco forrado de cobre do gasolina. Na praia, impotente, Plóna viu desaparecer o seu homem no vórtice líquido que o arrastou para o fundo.
No dia seguinte, cansada de esperar pelo pai que prometera pouca demora, Alice pediu a um dos pescadores da casa para o irem procurar. Quando Umbelino Gomes e três companheiros chegaram a Santa Luzia, ainda ouviram de uma Plóna moribunda o relato do que se passara. Embrulhada numa toalha de mesa, no nicho feito pelos seus braços, repousava a criança, tanto quanto se sabia, primeiro ser humano nascido da ilha – que ela ali mesmo baptizou com o estranho mas compreensível nome de Fernando Desamparado da Luz Spinelli, pela múltipla razão de o saber estar prestes a ficar sem ambos os pais, ter vindo ao mundo em final de tarde naquele desterro de Santa Luzia e por ela ter o apelido de Luz. Logo a seguir, a mulher deu um último suspiro. A hemorragia que durante toda a noite a fora esvaziando de sangue, só lhe tinha permitido esperar pelo socorro que sabia que viria com o nascer do Sol.
Os homens recolheram o corpo de Vittorio, que dera à praia e jazia com o tronco fora de água e as mãos fincadas na areia, como que num esforço para além da morte de acudir a Polónia e ao filho. Meteram-no e ao da mulher no gasolina, tapados com o cobertor e um oleado e, deixando a recato o bote em que tinham ido, empreenderam a viagem de retorno, na companhia da única testemunha daquela desgraça que enlutou o Mindelo. (...)
Já conhecia este conto e dá gozo ver este enorme e alcantilado rochedo no Atlântico. Assim vista do ar, a ilha parece incapaz de contemplar qualquer experiência de povoamento ou exploração turística. Mas vista à superfície do mar, julgo que a sua geografia oferece aspectos mais amenizantes.
ResponderEliminarConto conhecido e apreciado. Embora sem condições de ser habitada, a ilha deve ser acarinhada pois pode ser uma grande reserva natural mas, segundo dizem, vem sendo um depôsito de lixo.
ResponderEliminarLindo conto trágico que nos brinda Jack, para ns lembrar a leveza da vida, quando nos encontramos sozinhos entregues às forças naturais . Somos pequeninos!!
ResponderEliminarTrágico! Mas não deixa o leitor saltar linhas. Chega-se ao final da história com o espírito alvoroçado e à espera de alguma salvação para os protagonistas
ResponderEliminarAfinal, Santa Luzia havia ganho o seu primeiro nascido!
A simbologia da "luz" que foi tão efémera para a família em construção.
Lindo Conto!
O autor agradece...
EliminarBraça enviada da prisão (com luvas e mascrinha)
Djack