sábado, 28 de março de 2020

[4561] 28.3.2020, dia 10 do cerco, dia da ilha de Santa Luzia. Excerto do conto de Joaquim Saial "A trágica biografia de Fernando Desamparado da Luz Spinelli"

(...) Plóna sempre tivera um sonho: visitar a ilha de Santa Luzia. Parecia-lhe impossível que o local não fosse habitado, excepto por pequenos bicharocos e algumas aves. Leituras de "A Ilha do Tesouro", de Stevenson, que tivera por hábito fazer a Alice à noite, antes de esta adormecer, e a similitude do topónimo da ilha com o seu apelido, haviam aumentado nela a forte vontade de vasculhar aquele pedaço de terra ao qual só de quando em quando aportava raro pescador que por ali ficava pouco tempo. E contra toda a lógica e conselhos do médico que lhe seguia a gravidez, convenceu Vittorio a levá-la lá no oitavo mês de gestação. 

Ilha desabitada de Santa Luzia - Foto RTC
O marido tinha então mais meia dúzia de botes e um gasolina, o "Badejo", utilizado nas deslocações em que a necessidade de segurança e rapidez eram mais prementes e quando era preciso levar peixe fresco aos barcos que escalavam o Porto Grande. Foi nele que o casal rumou à ilha deserta, cedo, numa manhã de domingo. A época era de ventanias mas naquele dia o mar estava relativamente calmo. Sob a mão firme do homem, o "Badejo" depressa galgou as zonas norte e nordeste da ilha, desde a entrada da baía até ao Calhau. Também não demorou muito o restante caminho, até que a ilha vizinha se apresentou nítida perante os solitários navegantes. Com receio de que o gasolina encalhasse, Vittorio fundeou-o a distância prudente da praia. Meteu-se em seguida, juntamente com Plóna e o farnel do almoço, no pequeno bote que fora a reboque e entretanto desamarrou. Nas últimas milhas passadas a bordo, a mulher começara a lamentar-se de dores no ventre, facto que o rebentamento das ondas contra o barquito acentuou. Com custo e a ajuda do marido, atingiu a praia nas melhores condições que as circunstâncias permitiram e instalou-se numa duna. O vestido estava molhado mas não apenas de água do mar. Havia algo mais. Era a hora do parto que se aproximava.

Vittorio ficou em pânico. A ideia irreflectida da mulher de ir a Santa Luzia, apenas por exasperante curiosidade, se não beneficiara do seu apoio, também não tinha tido pela parte que lhe cabia oposição frontal, visto que não a queria magoar naquela fase em que todos os carinhos eram necessários. Mas agora arrependia-se amargamente de lhe ter concedido a viagem. Sem saber muito bem o que fazer, voltou ao gasolina para buscar fio e uma garrafa de grogue de cana que sempre por ali andava e servia para lhe aquecer o corpo nos dias de maior frialdade. Encostada à falda da duna, Plóna espremia-se num frenesi de dores intercaladas com pequenos períodos de calma. Entrementes, o marido, amparando-a com os braços, ia-lhe limpando o suor que lhe escorria pela testa. Ainda pensou em voltar a São Vicente, para pedir ajuda, mas o olhar suplicante que a mulher lhe lançou e o seu pedido «Não me deixes, Vittorio, que eu morro.», fizeram-no abandonar a ideia. O dia passou-se nisto até que, já com a Lua a despontar no céu, nasceu a criança: um rapaz. Vittorio enxarcou o fio e a navalha que nunca o abandonava com grogue, atou o cordão umbilical em dois locais separados por poucos centímetros e procedeu ao corte. Finda a precária cirurgia, lavou o menino conforme pôde, com a água que foi tirando da garrafa que tinha trazido no farnel. Voltou segunda vez a bordo do "Badejo", à procura de um cobertor, mas quando ia a transpor a amurada, uma onda maior virou o bote e arremessou-o de encontro ao casco forrado de cobre do gasolina. Na praia, impotente, Plóna viu desaparecer o seu homem no vórtice líquido que o arrastou para o fundo.

No dia seguinte, cansada de esperar pelo pai que prometera pouca demora, Alice pediu a um dos pescadores da casa para o irem procurar. Quando Umbelino Gomes e três companheiros chegaram a Santa Luzia, ainda ouviram de uma Plóna moribunda o relato do que se passara. Embrulhada numa toalha de mesa, no nicho feito pelos seus braços, repousava a criança, tanto quanto se sabia, primeiro ser humano nascido da ilha – que ela ali mesmo baptizou com o estranho mas compreensível nome de Fernando Desamparado da Luz Spinelli, pela múltipla razão de o saber estar prestes a ficar sem ambos os pais, ter vindo ao mundo em final de tarde naquele desterro de Santa Luzia  e por ela ter o apelido de Luz. Logo a seguir, a mulher deu um último suspiro. A hemorragia que durante toda a noite a fora esvaziando de sangue, só lhe tinha permitido esperar pelo socorro que sabia que viria com o nascer do Sol. 

Os homens recolheram o corpo de Vittorio, que dera à praia e jazia com o tronco fora de água e as mãos fincadas na areia, como que num esforço para além da morte de acudir a Polónia e ao filho. Meteram-no e ao da mulher no gasolina, tapados com o cobertor e um oleado e, deixando a recato o bote em que tinham ido, empreenderam a viagem de retorno, na companhia da única testemunha daquela desgraça que enlutou o Mindelo. (...)

5 comentários:

  1. Já conhecia este conto e dá gozo ver este enorme e alcantilado rochedo no Atlântico. Assim vista do ar, a ilha parece incapaz de contemplar qualquer experiência de povoamento ou exploração turística. Mas vista à superfície do mar, julgo que a sua geografia oferece aspectos mais amenizantes.

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  2. Conto conhecido e apreciado. Embora sem condições de ser habitada, a ilha deve ser acarinhada pois pode ser uma grande reserva natural mas, segundo dizem, vem sendo um depôsito de lixo.

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  3. Lindo conto trágico que nos brinda Jack, para ns lembrar a leveza da vida, quando nos encontramos sozinhos entregues às forças naturais . Somos pequeninos!!

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  4. Trágico! Mas não deixa o leitor saltar linhas. Chega-se ao final da história com o espírito alvoroçado e à espera de alguma salvação para os protagonistas
    Afinal, Santa Luzia havia ganho o seu primeiro nascido!
    A simbologia da "luz" que foi tão efémera para a família em construção.
    Lindo Conto!

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    Respostas
    1. O autor agradece...

      Braça enviada da prisão (com luvas e mascrinha)
      Djack

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