sábado, 14 de agosto de 2021

[5168] Mais uma "stóra", contada por Arsénio de Pina

O cabo-verdiano sempre apreciou a língua de Camões, Padre António Vieira e Fernando Pessoa. Para isso contribuiu o famoso Seminário-Liceu de S. Nicolau, do século XIX, estupidamente encerrado pelo anticlericalismo da 1.ª república portuguesa. Formou muita gente que dominava o português, dada a exigência mitológica dos seus mestres nessa disciplina, como afirmou o Dr. Baltazar Lopes da Silva numa entrevista. Esses formandos do seminário-liceu encarregaram-se de ensinar e espalhar o português bem falado pelas ilhas como professores e funcionários públicos, dado que, nessa altura, não havia bolsas de estudo e bem poucos tinham meios para prosseguir os estudos em Portugal.

Com o desaparecimento da geração que frequentou o seminário-liceu, sobretudo com a independência, a língua portuguesa tropicalizou-se, não como dizia o sociólogo Gilberto Freire, numa vertente luso-tropicalista mas antes de cafro-lusitanismo (de cafre, como se chamavam os negros antigamente) com exagero na nossa identidade, que se pretende exclusivamente africana, sem nem dar o benefício de dúvida de todo o negro cabo-verdiano ter genes europeus.

Houve um parente meu por afinidade conjugal de um tio bisavô que se fixou em Santo Antão, que, não podendo frequentar o seminário-liceu de S. Nicolau, fez questão de qualificar todos os filhos, pelo seu gosto pela educação. Cultivava, à sua maneira, o português, tendo à cabeceira da cama "Os Lusíadas", o "Lunário Perpectuo" e um dicionário. Era de uma basófia lendária. Os termos mais arrevesados e sonoros, colecionava-os para impressionar os amigos quando contava estórias ou discursava em casamentos e baptizados. Contou-me o amigo de infância António Melo, infelizmente falecido há pouco tempo, uma dele, dita numa roda de amigos, que nunca esqueci; o homem adorava, também, a conjugação reflexa: “Cheguei-me à Chá d´Igreja. Lancei-me sobre o meu fogoso ginete, cavalo, corcel. Esporeei-me, chicoteei-me e este lançou-se numa corrida assaz vertiginosa por montes, vales e concavidades que mais parecia um raio despenhado da atmosfera aquática sobre o arquipélago. Vitupérios!”

Numa outra tirada dele, mas com cabeça, tronco e membros, os amigos perguntaram-lhe onde tinha colhido essa estória: “Nas profundezas subterráquias do meu crânio cerebral”, respondeu ele.

O Senhor Teodoro Almada tinha uma colecção de estórias desse tipo de pessoas apreciadoras da língua portuguesa, que utilizavam nos discursos de casamentos, baptismos e enterros, e os amigos patchês Djô Culana e mano Amílcar também possuem uma boa colecção delas.

3 comentários:

  1. Venham mais !
    Conheci algumas, bastante castiças, oriundas da ilha das montanhas.
    O nosso pediatra deve ser como o seu homologo brasileiro, Pedro Bloch, especialista em contos infantis ("Criança diz cada uma...")

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  2. Estas histórias também fazem parte do património cultural das ilhas, ah-ah-ah.

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    1. Dizes muito bem, a riola, a "stóra divertid" é um património das ilhas, sobretudo de Soncente.

      Braça com gargalhadas na Rua de Lisboa,
      Djack

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