sábado, 2 de outubro de 2021

[5486] Um texto nosso, na página "Crónicas do Norte Atlântico" do jornal "Terra Nova", em Novembro de 2019, sobre o encalhe do navio-hidrográfico "D. João de Castro" em Janela, Santo Antão, há 74 anos (ver post anterior)

Histórias de mar (1)

O ENCALHE DO NAVIO-HIDROGRÁFICO “D. JOÃO DE CASTRO”

O que é que uma erupção marinha que teve lugar no final da segunda década do século XVIII entre as ilhas açorianas da Terceira e de S. Miguel tem a ver com o primeiro barco construído no Arsenal de Marinha de Lisboa, em 1941, a ilha de Santo Antão, onde este naufragou (ilha essa situada… nos Açores!!!) e com o fugaz vice-rei da Índia, D. João de Castro? “Tudo!”, respondo eu desde já, antes que o leitor diga… “Nada!”

Vamos aos factos. No último dia do ano de 1720, em que reinava Sua Majestade El-Rei D. João V e já fora lançada a primeira pedra do convento de Mafra, deu-se um tremor de terra nos Açores, mais ou menos no enfiamento entre as ilhas Terceira e S. Miguel. Como sucede muitas vezes em casos semelhantes, também aqui nasceu uma nova ilha, de configuração circular, com cinco quilómetros de diâmetro. Porém, devido à erosão marítima, cerca de ano e meio após, as autoridades (no caso o Conselho de Marinha) eram informadas de que a ilha desaparecera.

Surgiu então a lenda da insula que uns diziam desaparecida e outros afirmavam ainda existir – ou pelo menos um baixio dela resultante. A discussão sobre o assunto iria prosseguir, por mais de dois séculos…

Em 1759 fundou-se em Lisboa o Arsenal de Marinha que em 1937 transitou para a margem sul do Tejo, mais concretamente para a região do Alfeite. O primeiro barco ali construído seria o navio hidrográfico “D. João de Castro”, lançado ao mar em 1941, que do militar e cientista de grande envergadura, da primeira metade do século XVI, recebeu o nome. Ao que parece, tratava-se de embarcação de grande nível, equipada com o que de mais moderno havia no género, na altura.

Aquela que terá sido a sua primeira grande tarefa, situou-se nos Açores e teve sucesso imediato. Na realidade, a 28 de Julho de 1941, o “D. João de Castro” descobria o que restava da lendária ilha, apenas um baixio, a que, segundo as tradições navais, foi dado o nome do vaso de guerra. A plataforma rochosa, localizada a 38º13,5’ de latitude Norte e a 26º38,6’ de longitude Oeste , apresentava uma profundidade mínima de 14m.

A última missão do navio, que acabou em tragédia, desenrolou-se nas águas de Cabo Verde, escassos seis anos depois. A 2 de Outubro de 1947 recebia-se um rádio no ministério da Marinha, em Lisboa, em que se dizia que o “D. João de Castro” encalhara e que em princípio estava perdido, no «litoral da ilha de Santo Antão, no arquipélago dos ‘Açores’ na zona de Janela» (2). Isto dizia-o o “Diário Popular”, no dia seguinte, através da caneta de um jornalista pouco ilustrado nas coisas geográficas. A notícia prosseguia, avançando alguns dados sobre o sinistro: 

«O desastre verificou-se quando o navio procedia a trabalhos da sua especialidade, que na generalidade são muito arriscados. O barco, comandado pelo capitão-tenente Augusto Vasconcelos de Sousa, técnico distinto e dos mais competentes da nossa Marinha de Guerra, encontrava-se naquele arquipélago em funções de levantamento. Tudo leva a crer que o “D. João de Castro”, dada a má situação em que ficou, só com muita felicidade se salvaria. Novas informações recebidas no ministério da Marinha levam à conclusão de que, infelizmente, o navio-motor “D. João de Castro” se encontra perdido, estando a proceder-se ao maior número possível de salvados a bordo. Às 14h15 largou do Tejo, com destino às águas de Cabo Verde, o contratorpedeiro “Vouga”, que segue para o local a fim de prestar a necessária assistência. Confirma-se que não há desastres pessoais, estando a sua tripulação recolhida em casas particulares, em S. Vicente, para onde foi conduzida a bordo dos rebocadores que logo seguiram para o local do sinistro. Constituem a tripulação, cerca de 30 oficiais, sargentos e praças. (3)»

Ainda se fizeram diversas tentativas para salvar o “D. João de Castro”, mas todas resultaram infrutíferas. Pensou-se em remeter para o Sal um bimotor da TAP com oficiais da Armada especialistas em desencalhes, mas essa ideia foi abandonada a favor do envio de um barco sueco de salvação, o “Fripiof” (4), na altura casualmente fundeado no Tejo, que transportou a bordo o capitão-tenente construtor naval Fernando Araújo. Em face do que ele visse e da sua análise dos factos, assim se decidiria utilizar outros meios, como rebocadores das bases navais francesas de Dacar ou Casablanca. Mas entretanto foi destacado da Guiné o rebocador “Bissau”, para colaborar no salvamento. Contudo, este só chegou ao local do encalhe a 11, cerca de nove dias após o sinistro. O “Fripiof” apenas ali arribaria a 14. A 18 ainda se procedia através de bombas ao esgotamento da água que entretanto havia entrado. No dia 19 chegava-se enfim à conclusão de que não havia mais nada a fazer, pois o barco estava definitivamente perdido. Os salvados foram retirados e toda a tripulação regressou sã e salva a Lisboa. Mas acabava de modo inglório a carreira deste navio científico, mais um dos muitos que encontraram o fim dos seus dias nas águas de Cabo Verde, não se cumprindo infelizmente as palavras do seu comandante que em comunicação para o ministério da Marinha ainda dizia no dia 10: «Espero voltar ao Tejo com o meu navio» (5).

NOTAS

[1] Em https://latitude.to/articles-by-country/pt/portugal/179012/dom-joao-de-castro-bank as coordenadas são: Latitude: 38° 08' 24.00" N e Longitude: -26° 22' 48.00" W

[2] “Diário de Lisboa”, 3.10.1947, p. 7 – Segundo o DL, o navio encalhou a 1, pelas 07h00.

[3] Na notícia indicada na nota 2, refere-se: “Em casas de pescadores e outras residências modestas daquele local da costa [de Santo Antão, portanto, segundo este jornal], foram aboletados oficiais e praças, aos quais os habitantes proporcionaram todas as facilidades e os alimentos de que dispõem (…)”.

[4] Não conseguimos em tempo útil informações sobre este navio nem confirmar o seu nome em que aliás o “Diário Popular” e o “Diário de Lisboa” coincidem nele.

[5] “Diário de Lisboa”, 10.10.1947, p. 1.

2 comentários:

  1. Crônica abalizada.
    C'est dit !
    Felizmente o Capitão regressou com os seus homens.

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  2. O relato do acontecimento contém o essencial para que se conheça os contornos da ocorrência. Realmente, é uma dor de alma perder um navio nestas circunstâncias, ainda mais um navio hidrográfico que, por o ser, possuía equipamentos para certificar da profundidade das águas sobre que navegava. Mas costuma-se dizer que no melhor pano cai a nódoa.
    Calculo o estado de espírito com que deve ter ficado o capitão.

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