Adorei este passeio por S. Antão. Foi como procurar um regaço no tempo. Foi assim como a seguir conto:
Caminho pela estrada alcandorada entre Porto Novo e Ribeira Grande, onde os marcos se extinguiram e a distância se diluiu em pedras, sombras e espíritos. Meninos de casas encravadas na rocha espreitam à porta em silenciosa interrogação: − Quem é o viajante solitário? − Quem sabe é alma penada ou pagador de promessa? − Cogitam na sua inocência sem saberem que em seus olhos de criança cintila o mistério. É o resultado de uma longa ausência do núcleo das coisas. Perde-se a lúcida unidade com a paisagem, mas como permanece viva a nostalgia das horas sublimes, ainda resta a pureza do olhar infantil para nos identificar a substância do corpo e da alma. Expulsos da respiração da terra, procuramos entre as ervas do caminho uma rosa cujo aroma nos restaure as memórias saudosas. A chama que alimenta o poema é o refrigério de quem desvenda a matéria inerte e impenetrável e acredita que a melhor bússola do caminho é a voz que vai ouvindo repercutida em cada pedra, em cada escarpa, já que nenhuma viagem se cumpre sem um chamamento longínquo sucedendo-se de milha em milha, sinalizando as veredas que não se extinguiram definitivamente na cartografia da alma. Galgada a distância, a luz coada da tarde mostra-me que o Sol amorosamente atrasou a ocasião do poente, sabe-se lá por que sortilégio. Eis-me no Terreiro da Povoação, onde mensageiros difusos convidam-me a transpor a ribeira e ir à festa entre a ladeira dos bananais e a chã dos canaviais. Eles sabem do que venho à procura porque há códigos secretos que partilhamos em comum desde tempos imemoriais. Ouço além o rumor do mar, esse mar profundo e mediador de distâncias que nos traz alvíssaras de longe e ausculta as inquietações da alma. É ele que me segreda que alguém foi à festa trajando um vestido em tons de rosa. Ao som de foguetes estalejando com fragor no Alto da Penha de França, vou então à procura, célere como o vento, extasiado pela ânsia mediúnica de encontrar o outro lado de mim e do mundo. Busco a fonte original para saciar a minha sede, na senda dos que ali beberam o mesmo trago agridoce, em jeito igual de amar e sofrer nas garras do destino. Procuro a terra úbere, a exalação selvagem do seu perfume, as mãos calejadas dos que a lavraram desfiando o mesmo rosário de fé, calando o grito puro que desafia a inclemência dos deuses e recusa perdão por não haver culpa a expiar. De levada em levada, o murmúrio da água encanta os meus sentidos e ouço a terra gemer vibrações de vida em ritmos frenéticos de viola e rabeca libertos por mãos mágicas. Raparigas dançam à roda, vestidas de chita alva e singela, transparentes como o luar, angélicas como vestais, doces como o mel. Estavam à minha espera e sabem que venho dos confins do tempo, em busca do fulgor de uma tarde luminosa, simplesmente ao encontro de uma rosa. Sinto-me finalmente no útero da terra-mãe, o regaço saudoso reencontrado, radioso e terno. Sou agora pluma vogando serenamente e ao acaso entre o efémero e o eterno, nas margens de um sonho sonhado com ânsias de menino. A minha memória transcende este lugar, sobrevoa agora espaços insondáveis onde se esvai a noção do tempo e só fica um sopro que incólume escapa ao turbilhão do tempo. O Sol poente, cumprido o seu rito, começa a desmaiar entre o imo da folhagem, a paisagem ganha os tons inflamados do meu sentimento de filho abençoado pela expiação das dores e penas. As violas e as rabecas abrandaram o seu ritmo e agora tangem notas nostálgicas sinalizando o fim da festa. Uma das vestais aproxima-se e entrega-me uma rosa tecida em luz, fulguração mítica do colo onde outrora adormeci embalado no silêncio das noites recolhidas para acordar com o rumor das manhãs luminosas.
Nota final explicativa: a rosa que procurei foi a minha avó materna, que se chamava Rosa.
Adorei este passeio por S. Antão.
ResponderEliminarFoi como procurar um regaço no tempo. Foi assim como a seguir conto:
Caminho pela estrada alcandorada entre Porto Novo e Ribeira Grande, onde os marcos se extinguiram e a distância se diluiu em pedras, sombras e espíritos. Meninos de casas encravadas na rocha espreitam à porta em silenciosa interrogação: − Quem é o viajante solitário? − Quem sabe é alma penada ou pagador de promessa? − Cogitam na sua inocência sem saberem que em seus olhos de criança cintila o mistério. É o resultado de uma longa ausência do núcleo das coisas. Perde-se a lúcida unidade com a paisagem, mas como permanece viva a nostalgia das horas sublimes, ainda resta a pureza do olhar infantil para nos identificar a substância do corpo e da alma. Expulsos da respiração da terra, procuramos entre as ervas do caminho uma rosa cujo aroma nos restaure as memórias saudosas.
A chama que alimenta o poema é o refrigério de quem desvenda a matéria inerte e impenetrável e acredita que a melhor bússola do caminho é a voz que vai ouvindo repercutida em cada pedra, em cada escarpa, já que nenhuma viagem se cumpre sem um chamamento longínquo sucedendo-se de milha em milha, sinalizando as veredas que não se extinguiram definitivamente na cartografia da alma.
Galgada a distância, a luz coada da tarde mostra-me que o Sol amorosamente atrasou a ocasião do poente, sabe-se lá por que sortilégio. Eis-me no Terreiro da Povoação, onde mensageiros difusos convidam-me a transpor a ribeira e ir à festa entre a ladeira dos bananais e a chã dos canaviais. Eles sabem do que venho à procura porque há códigos secretos que partilhamos em comum desde tempos imemoriais.
Ouço além o rumor do mar, esse mar profundo e mediador de distâncias que nos traz alvíssaras de longe e ausculta as inquietações da alma. É ele que me segreda que alguém foi à festa trajando um vestido em tons de rosa. Ao som de foguetes estalejando com fragor no Alto da Penha de França, vou então à procura, célere como o vento, extasiado pela ânsia mediúnica de encontrar o outro lado de mim e do mundo.
Busco a fonte original para saciar a minha sede, na senda dos que ali beberam o mesmo trago agridoce, em jeito igual de amar e sofrer nas garras do destino. Procuro a terra úbere, a exalação selvagem do seu perfume, as mãos calejadas dos que a lavraram desfiando o mesmo rosário de fé, calando o grito puro que desafia a inclemência dos deuses e recusa perdão por não haver culpa a expiar.
De levada em levada, o murmúrio da água encanta os meus sentidos e ouço a terra gemer vibrações de vida em ritmos frenéticos de viola e rabeca libertos por mãos mágicas. Raparigas dançam à roda, vestidas de chita alva e singela, transparentes como o luar, angélicas como vestais, doces como o mel. Estavam à minha espera e sabem que venho dos confins do tempo, em busca do fulgor de uma tarde luminosa, simplesmente ao encontro de uma rosa.
Sinto-me finalmente no útero da terra-mãe, o regaço saudoso reencontrado, radioso e terno. Sou agora pluma vogando serenamente e ao acaso entre o efémero e o eterno, nas margens de um sonho sonhado com ânsias de menino. A minha memória transcende este lugar, sobrevoa agora espaços insondáveis onde se esvai a noção do tempo e só fica um sopro que incólume escapa ao turbilhão do tempo.
O Sol poente, cumprido o seu rito, começa a desmaiar entre o imo da folhagem, a paisagem ganha os tons inflamados do meu sentimento de filho abençoado pela expiação das dores e penas. As violas e as rabecas abrandaram o seu ritmo e agora tangem notas nostálgicas sinalizando o fim da festa. Uma das vestais aproxima-se e entrega-me uma rosa tecida em luz, fulguração mítica do colo onde outrora adormeci embalado no silêncio das noites recolhidas para acordar com o rumor das manhãs luminosas.
Nota final explicativa: a rosa que procurei foi a minha avó materna, que se chamava Rosa.