sexta-feira, 6 de maio de 2022

[6680] E ainda em dia pós Dia da Língua Portuguesa, uma prosa da cabo-verdiana Carlota de Barros, sobre o momento actual (ver post anterior)

AQUELA MÚSICA 

(Homenagem às crianças ucranianas) 


No silêncio aterrador da noite, Yana ouvia aquela música, apenas música que lhe seguia o pensamento. Uma música melancólica vinha de um violino que chorava, no frio da noite, no silêncio tenebroso do abrigo onde ficara sozinha, agachada a um canto.

Lá fora o fogo, cinza, ferros retorcidos, cadáveres violados, mil vezes profanados. E Yana, escondida no seu canto, ouvia aquela música, ingénua música, doce e triste como Yana, no frio e no silêncio órfão, daquela noite fatídica para a família.

Yana balbuciou baixinho um triste hino religioso e imaginou-se aninhada ao colo do pai que docemente afagava seus caracóis ruivos. 

Aquela música, apenas música, no choro do violino, e Yana, a um canto do abrigo, só, triste, infinitamente só...  

Pensou que cantar seria sair das trevas, enquanto ouvia aquela música, nostálgico lamento transformando-se em carícias da mãe, do pai, da pequena Anichka de olhos doces e faces rosadas.

Yana não desejava reviver de novo aquela noite de pavor. Apenas ouvia aquela música e cantava baixinho: quero a casa de meus pais, minha irmã Anichka, meus avós, meu gatinho Mitzy.

Aquela música, apenas música, no silêncio gélido da noite, e Yana agachada a um canto do abrigo, a língua ardendo de dor. Desejava adormecer com a música, apenas música, entre águas azuis, serpenteando pelas paredes, naquela noite desfigurada entre a loucura e a solidão.

Yana adormeceu ouvindo a música sussurrar-lhe meiguices e, serenamente, no frio gélido da noite, caiu num sono profundo, transformada em música, melodia, violino, harmoniosas águas azuis. Adormeceu... sua alma voou nas asas de um belo pássaro multicolor.

Yana não sofre mais, agachada a um canto do gélido abrigo. Sua alma voou, embalada pela Lua Nova, num colchão de nuvens macias, e a música continuou a segui-la, numa alegre balada, ao encontro da mãe, do pai, de Anichka, de seus avós e do seu gato Mitzy de grandes olhos azuis esverdeados.

Carlota de Barros

Lisboa, 7 de Abril de 2022

2 comentários:

  1. Gostaria de poder assinar este texto da nossa estimada compatriota.
    Sentimos todos a dor do corajoso povo ucraniano. Parem o exterminio.

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  2. Faltar-me-ão as palavras certas para comentar esta magnífica prosa poética.
    Só os verdadeiros poetas alcançam esta vibração de alma que nos transporta ao centro da dor e do sofrimento, ao mesmo tempo que nos liberta para o sonho infinito, anestesiando-nos do sofrimento com a sonoridade plangente da música de um violino.
    É este o recurso para fugir à barbárie ou fazer de conta que ela foi definitivamente banida da mente humana.
    Resta dizer que esta prosa poética é das melhores homenagens que se poderia prestar à língua Portuguesa na ocasião em que se celebra o seu Dia Mundial.
    As minhas felicitações à autora.

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