Nas nossas contínuas pesquisas sobre temáticas cabo-verdianas, demos num alfarrabista de Lisboa com extenso manuscrito anónimo que adquirimos e que por diversos sinais é de óbvia mão cabo-verdiana. Peça volumosa, em dez capítulos escritos em folhas de 35 linhas de papel almaço com letra impecável (salpicada aqui e ali por um ou outro inevitável borrão de tinta permanente azul), serve-se agora um excerto aos nossos visitantes como aperitivo de eventual futura publicação cuja legalidade ainda teremos de aferir - isto, se antes não descobrirmos os herdeiros deste autor (ou o próprio, se ainda viver) que pelo tipo de caligrafia, papel e tinta utilizados aparenta ter redigido a curiosa obra pelos meados do passado século.
UM DIÁRIO DO TEMPO DA GRANDE GUERRA
I
Olavo Monteiro Fortes odiava aquela divisão do edifício da Câmara Municipal de São Vicente, escura, cheia de papelada, alguma dela centenária, ressumando pó e cheiro a bafio, a qual, com razão, se chamava arquivo-morto. Incomodativa alergia fazia-o evitar o antro, onde uma vez por outra era obrigado a ir à procura de documentação necessária ao departamento em que trabalhava. Mas o presidente, um dos primeiros do pós-independência, mandara-o dar uma volta a tudo aquilo, deitar fora o que achasse que não tinha importância e arrumar o que fosse significativo. «O senhor Olavo fica livre de todas as tarefas que tem tido até agora, mas compromete-se a pôr o buraco funcional em seis meses, tudo por ordem, fichas feitas, etc., para se poderem utilizar aqueles materiais com rapidez quando forem necessários. Em princípio, trata-se de produtos pouco aproveitáveis, mas nunca se sabe. E se virmos que há coisas que não nos servem mesmo para nada, vão para o Arquivo Nacional, na Praia. Vou mandar duas mulheres aspirarem o pó acumulado e quando o sítio estiver habitável, instala-se lá e inicia o trabalho. Você tem estaleca para aquilo e se acabar antes do prazo que lhe dou, será recompensado com férias suplementares.» O autarca sabia que Olavo fora amanuense na tropa e reparara no religioso zelo com que ele se dedicava a arrumar tudo o que era documento, em pastas de atilhos e de arquivo, dossiers e caixas de cartão, sempre com as devidas etiquetas, escritas com a sua letra redonda, muito perfeita, aprendida na Escola Técnica. De tal modo, que já era avisado pelo dono da papelaria vizinha, quando lhe chegava material novo de arquivo. «Ó Olavo, vieram hoje de Lisboa pastas de plástico, daquelas de que tu gostas, e umas etiquetas autocolantes que não precisam daquela coisa de goma-arábica mal cheirosa que te faz espirrar.» E lá era feita a requisição para se adquirirem as pastas e as etiquetas que vinham contribuir para o arrumo da estante que apanhava toda a parede traseira à secretária do escriturário. As prometidas limpezas foram feitas e na semana seguinte Olavo Fortes mudou-se para a sala em que iria exercer a sua actividade arrumadora durante os tempos que se aproximavam.
Começou por reunir os papéis avulsos, que organizou em dossiês, juntando noutro lado processos que com eles até aí tinham convivido décadas a fio, guardados em cediças pastas e caixas de cartão. E divertia-se a ver pedidos de licenciamento de obras de casas onde de há muito estavam outras, cujos proprietários, passados e presentes, tinha conhecido ou de quem ouvira falar em casa dos pais. Mais ainda, quando se tratava de solicitação de licença para abertura de casas de comércio, como a da venda de nha Barba, onde a mãe sempre comprara o pão, e a do talho do espanhol Ruiz. Este, uma vez falhara um golpe numa pata de cabrito, acertando no polegar esquerdo, ao qual tirara metade. Passou desde aí a ser chamado pelo povo de «Pequeno Polegar» – o que em nada o aborrecia, não só por de facto lhe faltar a ponta do dedo, como por ter apenas metro e meio de altura. Barba morrera de velha e Ruiz voltara anos antes à pátria, com uns patacos, saudoso da sua Andaluzia de origem. Olavo recordava estes e outros episódios com que ia deparando e chegou a agradecer ao presidente a tarefa que lhe confiara, quando este lhe perguntou como iam indo as coisas. «Bastante bem. Aquilo termina-se sem dúvida antes do prazo que me deu», respondeu, satisfeito por estar a cumprir o dever de que fora incumbido.
Um mês após essa conversa, quando abriu a quarta de seis volumosas caixas com resmas de papel, umas vezes agrafado, outras agregado com argolas de metal e algumas cuidadosamente cosidas com fio de sapateiro, deu com uma pasta cinzenta, dos seus três centímetros de espessura, atada com um cordel, em cuja face superior se lia, numa tinta azul, esbatida pelo tempo: «Diário do período que passou entre 5 de Outubro de 1910 e Março de 1916, mês fatídico em que Portugal entrou na Grande Guerra – Memória articulada por Joaquim Torcato Oliveira, vereador desta Câmara Municipal de São Vicente, cuja finalidade é a realização de uma História de Cabo Verde do século XX». «Joaquim Torcato Oliveira? Esse é de certeza o avô de Manelzinho Oliveira, enfermeiro no Hospital. Ele está sempre a falar desse parente que andou lá por França e até ganhou medalha...», reflectia Olavo, enquanto desatava os vários nós do cordel armado em cruz. Contrariando o que o título da capa indicava, o diário começava afinal em 4 de Maio de 1913 e terminava em 16 de Setembro de 1915. Compreendia realmente algum do tempo da Grande Guerra, mas iniciava-se apenas pouco antes do começo do conflito e findava antes da entrada oficial de Portugal nele. E nunca focava assuntos pessoais, limitando-se a comentários de notícias de «O Futuro de Cabo Verde», jornal da época, aos quais, as mais das vezes adicionava longas transcrições na íntegra. Infelizmente, o desavisado candidato a historiador, limitava-se a uma única fonte, talvez por não ter tido tempo para mais...
Era sexta-feira. Pouco depois de sair da Câmara, pelas cinco horas, Olavo dirigiu-se à Rua da Moeda onde deu a novidade da sua descoberta ao enfermeiro. «Mas temos que apreciar isso a meias, ó Manelzinho. Tu não me podes fazer a desfeita de ler um petisco desses sem mim ao pé, que estou a arder de curiosidade. Se não tivesses tratado tão bem de mamãe quando ela teve aquele furúnculo, eu não te trazia isto sem ver tudo antes», solicitava o escriturário. E assim foi. Durante todo aquele fim-de-semana, em longas tiradas, cujos separadores foram as alturas de comer e dormir, os dois homens passaram em revista o esforçado trabalho do antigo vereador da Câmara Municipal de São Vicente.
Curioso, Djack, e muito oportuno, dada a celebração do Dia Mundial da língua Portuguesa.
ResponderEliminarPor este dia é que escrevi em outro blogue o seguinte:
"Muitas vezes referida como “pátria” ou “mátria” do mundo lusófono, teve razão José Saramago quando disse que “não há uma língua portuguesa, mas línguas em português“, em alusão à multiplicidade dos seus falares. Bom seria que nós, cabo-verdianos, a olhássemos como “mátria”, o que significa considerá-la língua materna em paridade com o crioulo que inventámos à sua sombra. Olhá-la como “pátria” é que pode suscitar os problemas que se instalaram em algumas mentes. É que a ideia de “pátria” sugere um acto de fecundação e inoculação de uma matriz identitária, quando diferente é “mátria”, que simboliza o ventre que gera e o seio que acolhe e alimenta, sem discriminação e constrangimentos.
A língua portuguesa irá ficar ainda mais rica com o passar do tempo e mediante os contributos contínuos dos diferentes povos que a falam. É nesta medida que os cabo-verdianos devem assumir sem complexos o seu uso mais frequente e intenso na comunicação oral. Assim acontecendo, será a natureza a operar gradativamente um processo de assimilação e entranhamento que dificilmente se consegue por via administrativa ou do ensino."
Concordo com o Adriano que 'É nesta medida que os cabo-verdianos devem assumir sem complexos o seu uso mais frequente e intenso na comunicação oral'. Mas infelizmente a política fundamentalista está a falar mais alto e a contradizer esta constatação. Estão a privar os cvianos da maior e melhor ferramenta para se inserir no Mundo. Quem viverá verá e será o testemunho do próximo descalabro!!
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