segunda-feira, 6 de junho de 2022

[6865] Crónica de Joaquim Saial no jornal "Terra Nova", lida hoje no programa "Cabo Verde - Caminhos da História", da Rádio de Cabo Verde

Foi hoje, no programa "Cabo Verde - Caminhos da História", da Rádio de Cabo Verde que o nosso amigo e antigo colega de turma do Liceu Gil Eanes (Mindelo, ilha de São Vicente) António Roberto Duarte de Almeida leu esta que é a 3.ª de cinco crónicas já escritas por nós (haverá ainda mais algumas) sobre a história da aviação cabo-verdiana, no jornal local "Terra Nova" (a crónica é de Fevereiro deste ano). A acção radiofónica decorreu no âmbito das comemorações do centenário da travessia aérea do Atlântico-Sul, por Gago Coutinho e Sacadura Cabral que, como é sabido, escalaram São Vicente (cerca de 10 dias no Mindelo) e um dia em Santiago, Praia.

António Roberto Duarte Silva

Memórias da aviação em Cabo Verde (3)

A 14 de Maio de 1949, dia anterior ao da inauguração do aeroporto do Sal, a capa do "Diário de Lisboa" mostrava uma fotografia onde eram vistos – com escada de acesso a um avião da TAP como fundo – o coronel Gomes de Araújo, ministro das Comunicações, e o almirante Gago Coutinho. Tendo por título "O ministro das Comunicações seguiu para a ilha do Sal, onde vai inaugurar o novo aeródromo", a notícia dizia logo no primeiro parágrafo: "(…) temos agora o aeroporto dos Espargos, traço de união entre a América do Sul e o Velho Mundo, estrada aérea tão grata aos portugueses, desde Cabral a Gago Coutinho e Sacadura." E logo a seguir avançava que "Portugal [satisfez], assim, compromissos que assumiu na conferência da ICAO [1], que se realizou no Rio de Janeiro, perante as solicitações dos representantes dos países e das companhias estrangeiras que mantêm careiras entre a América do Sul e a Europa." Adiantava-se ainda que o novo aeroporto teria de início um movimento de 24 aviões de carreira por semana. Nas suas declarações ao jornal, o ministro referia que o aeroporto do Sal concorreria para a segurança das aeronaves que cruzavam o Atlântico Sul e facilitaria a aproximação dos (e aos) povos do mesmo. Gago Coutinho, que estava em Paris quando recebeu o convite para a viagem, fora de comboio para Bruxelas, onde apanhou um avião para Lisboa. Caber-lhe-ia na cerimónia da inauguração falar sobre os pioneiros da conquista aérea. E, com o seu proverbial humor, fez à reportagem um resumo da história de viagens a Cabo Verde. "Parece que o Infante [2] foi mais longe nas suas previsões, quanto às ilhas de Cabo Verde. Há cinco séculos, as ilhas eram despovoadas, áridas, nada prometiam, mas o Infante não as desprezou. Elas foram escala de Vasco da Gama, de Colombo e da 'Victória' [3] de Fernão de Magalhães… Mais tarde, começaram a ter outros préstimos, escalas para carvão e óleo… O Infante parece que previu que as ilhas de Cabo Verde poderiam ser úteis às modernas caravelas… os aviões… [4]" 

Segundo o "Diário de Lisboa" do dia seguinte, o voo, sem escala, durou 10 horas e 45 minutos (!!!). Antes de aterrar e a pouca altitude, o aparelho deu duas voltas sobre o aeroporto, para que os passageiros pudessem ver a pista e as instalações. E no momento da chegada, "iluminaram-se todas as instalações e as pistas, com um belo efeito." A cerimónia da inauguração efectuou-se na manhã do dia 15 e teve ponto alto quando Gago Coutinho fez subir a bandeira portuguesa ao som do hino nacional, na presença das autoridades nacionais e estrangeiras convidadas. Seguir-se-iam uma visita às instalações e o almoço e os inevitáveis discursos, entre os quais se salientaram os do ministro das Comunicações e o de Gago Coutinho [5].

Regressado a Lisboa, este daria uma entrevista ao vespertino, onde fez uma descrição do aeroporto. As palavras do almirante, 73 anos passados e após grandes modificações e ampliações do complexo aeroportuário, têm inegável sabor histórico… "Tudo o que se relaciona com esta obra é digno de elogio. A escolha do local não podia ser melhor. Trata-se do lugar ideal, não só pela sua posição geográfica – que faz com que a sua utilização encurte as viagens dobre o Atlântico-Sul – mas porque é um planalto com 56 metros de altitude, muito afastado dos montículos existentes – o que torna a entrada dos aviões perfeitamente desafogada. É raríssimo haver ali nevoeiro, mas, mesmo que algum dia o haja, a colocação do aeroporto permite, com o emprego da rádio, a aterragem, sem perigo, em qualquer das suas três pistas, de 60 metros de largura, respectivamente, com 2150, 2000 e 1710 metros de comprimento. Além disso, na ilha não há mosquitos, nem febres, o que evita a obrigatoriedade de qualquer vacina. Quanto ao aeroporto, em si, nada deixa a desejar, tanto na parte científica – rádio, iluminação, etc. – como no que se refere a conforto, pois o seu hotel é excelente. Foram muito bem empregados os 50.000 contos que o Governo, numa demonstração de espírito progressivo que é justo destacar, ali gastou. [6]" 

A inauguração do aeroporto do Sal foi de facto um acontecimento marcante no arquipélago, momento de inegável progresso, embora sobre os cabo-verdianos ainda pairasse um outro muito recente, de sentido oposto, extremamente trágico: o chamado "Desastre da Assistência", que se deu na Praia, queda de muro sobre deserdados da sorte que esperavam algum alimento, com grande número de mortes, até hoje nunca totalmente contabilizadas [7]. No "Diário de Lisboa" de 6 de Junho, aludia-se à chegada no dia anterior de um quadrimotor argentino que havia recebido na Escócia a sua reconversão de nave militar para o serviço da aviação comercial. Ia para Buenos Aires, com passagem pelo Sal. Tornou-se assim o primeiro avião estrangeiro a utilizar aquela escala entre a Europa e a América do Sul.

[1] ICAO – International Civil Aviation Organization, organismo fundado em 04.04.1947, com sede em Montreal, Canadá.

[2] Infante D. Henrique, o "Navegador".

[3] Nau do navegador português Fernão de Magalhães que ao serviço de Espanha fez a primeira viagem de circum-navegação do mundo e foi a única sobrevivente da armada inicial.

[4] "Diário de Lisboa", 14.05.1949, pág. 1.

[5] "Diário de Lisboa", 15.05.1949, pág. 1.

[6] "Diário de Lisboa", 17.05.1949, pág. 1.

[7] O desastre deu-se a 20 de Fevereiro de 1949. Os números oscilam entre 232 (versão oficial) e mais de 300.



1 comentário:

  1. Venham mais. Espero que o ex-condiscipulo nos traga as outras cronicas. Nunca nos cansamos de as ler

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