No centenário de Aguinaldo Fonseca, o Poeta da Africanidade
S. Vicente, 22 de Setembro de 1922 - Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Por Jorge Morbey*
Aguinaldo Brito Fonseca, poeta cabo-verdiano da geração do “Suplemento Cultural”, com Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Carlos Alberto Monteiro Leite, faleceu na madrugada de sábado, 25 de Janeiro de 2014, em Lisboa. Tinha 92 anos e estava radicado em Portugal desde 1945.
Era natural da cidade do Mindelo, na Ilha de S. Vicente, onde nasceu a 22 de Setembro de 1922. Foi funcionário bancário e pastor nazareno. Publicou um único livro de poesia, com o título “Linha do horizonte”, mas tem poemas de sua autoria em diversas publicações de língua portuguesa.
Além do Suplemento Cultural, publicou poemas na revista Claridade, no Boletim Cabo Verde, entre outras revistas e publicações. Os seus poemas fazem parte de várias antologias, uma delas “No Reino do Caliban”, organizada por Manuel Ferreira. A sua poesia está traduzida em vários países.
Aguinaldo Fonseca relatou a Michel Laban, investigador argelino das literaturas lusófonas, que foi Amílcar Cabral, então estudante em Portugal e seu amigo, que lhe sugeriu o nome do livro “Linha do horizonte”, que viria a ser publicado pela Casa dos Estudantes do Império, em 1951. Aliás, um dos poemas desse livro, “Nova poesia”, é dedicado ao futuro líder africano.
Essa amizade e convivência com Amílcar Cabral não terão sido alheias à assunção de um fortíssimo sentimento de africanidade plasmado na sua poesia e que a liga à poesia da negritude. Aguinaldo Fonseca, é preciso reconhecê-lo, foi o primeiro poeta cabo-verdiano a colocar África na essência da sua poesia.
Designado por “poeta esquecido”, pelo longo silêncio que sobre ele se abateu, questionado por Michel Laban se deixara de acreditar no poder da poesia, Aguinaldo Fonseca respondeu: “para mim, poesia é vida”. E acrescentou que já não sentia necessidade de publicar...
Para além de uma antologia breve da poesia de Aguinaldo Fonseca, para contextualizar essa mesma poesia na homenagem que aqui lhe prestamos, publicamos também um artigo de Amílcar Cabral intitulado “APONTAMENTOS SOBRE A POESIA CABOVERDIANA” (publicado no Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952) e reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria – Unidade e Luta pela editora Seara Nova, 1976, p. 25-29) que termina invocando o último verso do poema “Sonho”, de Aguinaldo Fonseca: “Outra terra dentro da nossa terra”.
Mamã, peço-te perdão
Por todas as mentiras que contei.
Foi sem querer…
A culpa foi do porteiro da vida
Que me indicou uma porta
Que não era a porta da minha vida.
SONHO
Mamã,
Já não vou partir,
Vou ficar aqui.
Esta terra é pobre, mas é minha terra.
Mamã,
este sonho meu,
é de nova vida
é de outra terra dentro da nossa terra.
Meus sonhos
de asas desfeitas pelo sol da vida
deslocam-se como répteis sobre a areia quente
e enroscam-se raivosos
no cordame petrificado da fragata
das mil partidas frustradas.
Ah meu avô escravo
como tu
eu também estou encarcerado
neste navio fantasma
eternamente encalhado
entre mar e céu.
Como tu
também tenho a esmola do luar
e por amante
essa mulher de bruma, universal, fugaz,
que vai e vem
passeando à beira-mar
ou cavalgando sobre o dorso das borrascas
chamando, chamando sempre,
na voz do vento e das ondas.
MAGIA NEGRA
Abro
De par em par, a janela
Ao convite da noite tropical.
E a noite enche o meu quarto de estrelas vivas.
Nesta hora morna e calma,
Profunda e densa como um túnel,
O rumorejar longínquo das palmeiras
Varrendo o Céu
É misteriosa voz do negro martirizado.
Prendo os meus gestos e o meu grito abafo.
Silêncio…
No poço da paz nocturna
Interceptada
Pela orgia sincopada
Das estrelas e dos grilos,
Arrasta-se o vão lamento
Da África dos meus Avós,
Do coração desta noite,
Feridos, sangrando ainda
Entre suores e chicotes.
E a Lua cheia veio
À voz quente do batuque,
Faz feitiço…
E o negro dorme
Ser santo um dia
HERANÇA
O meu avô escravo
legou-me estas ilhas incompletas
este mar e este céu.
As ilhas
por quererem ser navios
ficaram naufragadas
entre mar e céu.
Agora
aqui vivo eu
e aqui hei-de morrer.
MÃE NEGRA
A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.
Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.
É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.
No céu
Tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
—Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.
A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém…
A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços…
Mas olha o céu estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade…
CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA
Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá …
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá …
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá …
sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.
POVO
É sempre a mesma história repetida
É sempre o mesmo lado e a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o mar
O rubro desespero, a voz magoada
é o sonho bom desfeito ao acordar
É sempre esse horizonte de fuligem
É sempre esse arranhar em duro chão
Como fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da solução.
CÍRCULO
Nascemos, morremos,
Tornamos a nascer em cada sonho, cada ideia, cada gesto.
Cada dia que chega é flor que se abre ao sol
Com novo cheiro, nova cor, nova beleza.
Nossos desejos são asas que se elevam
Cruzando o céu da vida em voo largo
Mas nunca chega, nunca páram
Enquanto corre o sangue e a vida cresce e rola.
O fim de um sonho é o começo de outro
Cada horizonte outro horizonte aponta,
E uma esperança morta outra esperança aquece..
Há magoas, alegrias, desesperos
E a gente insatisfeita
Enquanto ri ou chora
Ou canta ou fica triste
Vai nascendo, morrendo e renascendo
Cada dia, cada hora, cada instante
Noutra vida, noutro sonho, noutra esperança
REVOLTA
Revolta dentro do peito
Por aquilo que não fiz
E que devia ter feito.
Revolta dentro de mim
Por tropeçar em mim mesmo,
Por não saber onde estou…
Por caminhar tanto a esmo
Que trago os passos perdidos
Nos próprios passos que dou.
Revolta desde menino
Por tantas horas perdidas
A procurar o destino
Nas sombras doutros destinos
Revolta crua e sem fim(…)
Tantos pedaços de mim
Que destrocei sem saber!…
Revolta crua e sem fim,
Revolta triste e infeliz,
Por trazer esta revolta
Fechada dentro de mim,
Num verso que nunca fiz.
“APONTAMENTOS SOBRE A POESIA CABOVERDIANA”
Amílcar Cabral
“Não me doi meu particular.
Peno cilícios da comunidade.
Água dum rio doce, entrei no mar
(Miguel Torga, “Cântico do homem”)
I
Quando se debruça sobre o conteúdo da poesia caboverdiana, em busca do seu valor real, duas fases, nitidamente distintas, se mostram evidentes: a anterior ao aparecimento da revista Claridade, e a que começa com este acontecimento literário. Tão distintas são essas duas fases, que Osório de Oliveira não hesita em afirmar: “só agora (isto é, com Claridade) se pode falar da Literatura Cabo-verdiana”.
Significará isso que tudo quanto foi escrito antes das produções dos colaboradores da “Claridade” não tem valor literário? Que só merece ser considerado como Poesia, na verdadeira acepção do termo, o que escreveram os poetas da “Claridade” e os que se lhes seguiram?
Postas estas interrogações, está-se, necessariamente, perante o discutidíssimo problema da definição de Poesia, como expressão artística. Não constitui objeto deste apontamento abordar tal problema. Todavia, impõe-se uma tomada de posição, para que, quando menos, se possa ser coerente nas afirmações que tiverem de ser feitas.
A poesia, como qualquer manifestação artística e apesar de toda a característica individual, emanente da personalidade do Poeta, é necessariamente um produto do meio em que tem expressão. Quer dizer: por maior que seja a influência do próprio indivíduo sobre a obra que produz, esta é sempre, em última análise, um produto do complexo social em que foi gerada. Aliás, esta afirmação não passa dum lugar comum em todas as controvérsias referentes aos problemas da Arte, na actualidade.
Ao falar de controvérsias, não se esquece que não rareiam as vozes discordantes que se levantam para defender a exclusiva influência do complexo individual na manifestação artística. Ao referir este facto, está-se implicitamente perante a não menos discutida questão de se saber se a arte deve ser “dependente” ou “independente”, isto é, presente ou alheia aos problemas sociais do meio em que é produzida; ou, noutras palavras muito vulgarizadas actualmente: se a arte deve ser “interessada” ou “desinteressada”.
Assim, enquanto vai crescendo, dia a dia, o conjunto daqueles que pretendem ou querem uma arte com função social, cerram-se as fileiras daqueles que, teimosamente, arvoram a esfarrapada bandeira duma arte absolutamente independente, da chamada “arte pela arte”. E, ao qualificar-se de esfarrapada a bandeira dos que defendem uma arte “desinteressada”, está-se, ainda que de maneira implícita, tomando posição.
É que, na realidade, parece – e com este ponto de vista não se está metendo nenhuma lança em África – que, a qualquer das questões postas atrás: arte função do meio? arte com função social? – só pode ser dada uma resposta afirmativa. Não é possível considerar a arte (a Poesia, no caso presente) independentemente do homem-ser-social. A arte é e tem de ser, para que mereça tal designação, um produto do homem para homens.
A Poesia tem as suas raízes (passe o termo) mergulhadas nas condições socioeconômicas em que é criada. Note-se que não se afirma ser ela uma função exclusiva dessas condições. Não é, nem poderia ser, alheia a influência de outra origem, como a moral, a religião, as ciências, a filosofia, etc…
Quanto à sua função social, parece que o que se poderá discutir é qual a natureza da função social de determinada obra poética e, não, se essa função existe. Quer dizer: há uma acção recíproca entre o complexo social e a obra poética, admitindo que esta tenha algum mérito. O que interessa determinar é se tal obra constitui um bem ou um mal para aquele complexo, isto é, se o serve ou se o trai.
A evolução das sociedades humanas está na base de toda a evolução literária. Mesmo quando estes dois fenómenos se apresentam desarmónicos ou antagónicos, isto significa apenas que não se desenvolvem concomitantemente. A evolução das sociedades humanas é, por sua vez, uma função dos factores determinantes da estructura económica em que aquelas assentam.
II
A Poesia Cabo-Verdiana, como qualquer outra, só poderá ser compreendida se considerada em relação ao ambiente material e humano vivido pelo Poeta. Assim, seria conveniente determinar quais as características do meio cabo-verdiano que estiveram na base das manifestações das duas poesias atrás referidas: a anterior à “Claridade” e a que começa com esta revista.
A primeira, representada por Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Cardoso, Januário Leite, etc., caracteriza-se por um desprendimento quase total do ambiente, sublimando-se numa expressão poética que, excepção feita a algumas obras de E. Tavares e P. Cardoso, nada tem de comum com a terra e o povo do Arquipélago. Enquanto a poesia de J. Leite, por exemplo, oferece, nos seus sonetos, a expressão da reacção puramente sentimental, do Poeta, perante fenómenos que a ele e só a ele interessam, a de José Lopes traduz, mais do que qualquer outra, o cunho de cultura clássica, desligado do meio, que caracteriza a formação ideológica dos Poetas anteriores à “Claridade”.
Aliás, é precisamente nesse formação, adquirida principalmente no Seminário de S. Nicolau, como o faz notar Osório de Oliveira, ou por um louvável esforço pessoal, que reside a razão de ser das características da Poesia anterior à “Claridade”. Possuidores de uma cultura clássica, que em alguns atinge um grau verdadeiramente elevado, os Poetas da geração em referência esquecem a terra e o povo. De olhos fixos no que aprenderam nos livros e que talvez suponham insuperável, pouco mais conseguem do que imitar os autores seus conhecidos, produzindo uma Poesia em que o amor, o sofrimento pessoalíssimo, a exaltação patriótica e o saudosismo, são traços comuns.
Não se nega o mérito dalgumas das suas obras. Alguns sonetos de Januário Leite, composições de E. Tavares, esta ou aquela obra de J. Lopes e P. Cardoso, são – há que reconhecê-lo – de valor incontestável. Pode-se mesmo afirmar que em E. Tavares (ao cantar o ambiente bravense) e P. Cardoso (ao traduzir, do crioulo, quadras populares do Fogo) encontra-se já algo do que, mais tarde, se tornaria realidade nos Poetas da nova geração: uma comunhão íntima entre o Poeta e o seu mundo.
É ainda a influência da cultura clássica que caracteriza o aspecto formal da Poesia em referência: o respeito sagrado à métrica, a confrangedora submissão às algemas da rima.
Mas, como descortinar a influência do meio socioeconómico sobre estes artistas? Atente-se nas seguintes condições:
O povo, em geral, vive alheio à cultura e às manifestações artísticas. O Seminário, em S. Nicolau, por poucos pode ser frequentado. Ministra-se nele uma cultura clássica, à qual se ligam fortemente os que tiveram a felicidade de recebê-la. Tão forte é o elo, que os seminaristas (ou os autodidactas) de talento, encontrando abertas as portas duma vida onde podem desfrutar de posições de relevo, ignoram ou esquecem as realidades que os cercam. Opera-se neles a supremacia de tudo quanto é meramente filosófico, religioso ou moral, sobre o económico.
Melhor: é a própria condição económica em que vivem que facilita aquele alheamento das realidades cabo-verdianas. A terra e o povo estão distantes. Este, nas letras da Morna, canta os seus sofrimentos e amores, enquanto os poetas compõem sonetos perfeitos para exaltar um sentimento qualquer, as tranças e os olhos da hegéria, as belezas da Grécia ou uma data célebre da História.
III
Bruscamente, porém, opera-se a transformação. A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, – e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano “anónimo”, enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional – e felizmente intencional – do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade.
Aliás Jorge Barbosa, Oswaldo Alcântara (Baltazar Lopes), Corsino de Azevedo, Manuel Lopes, Teixeira de Sousa, Jaime de Figueiredo, etc. são os pioneiros do acontecimento.
Os poetas, agora, são homens-comuns que caminham de mãos dadas com o povo, e de pés fincados na terra. Cabo Verde não é o sonhado jardim hesperitano, mas, sim, o “Arquipélago” e o “Ambiente”, onde as árvores morrem de sede, os homens de fome – e a esperança nunca morre. O mar já não tem sereias e as ondas não beijam a praia. O mar é a estrada da libertação e da saudade, e o marulhar das vagas é a tentação constante, a lembrança permanente do “desespero de querer partir e de ter de ficar”. Até o caminho qualquer, “amassado pelo gado que a seca matou”, tem vida, assim como “os coqueiros esguios” e o “céu azul e ardente que não promete chuva”.
A terra, “a terra mártir” – é a Mamã que “alimenta” os filhos “com a ternura das suas entranhas”; que não morreu, mas jaz adormecida “numa migalha de terra no meio do mar”.
A voz do Poeta, agora, é a voz da própria terra, do próprio povo, da própria realidade cabo-verdiana.
Como se operou tão profunda transformação na Poesia de Cabo Verde? Tal modificação corresponderá a uma evolução do complexo económico-social? Atente-se nas seguintes condições:
O povo, na generalidade, continua alheio a toda a manifestação artística e cultural. A cultura é ainda o apanágio dum sector restrito da sociedade cabo-verdiana. Mas é precisamente neste sector que se operou uma modificação.
O Liceu, com a democratização do ensino, independente da religião, trouxe maiores facilidades de acesso à Cultura. Aumentou, na fileira dos intelectuais, o número de elementos provenientes da chamada “gente humilde”. Além disso, o fulcro da intelectualidade cabo-verdiana, passando de S. Nicolau para a cidade do Mindelo, à beira do Porto Grande, encontrou-se em contacto mais amplo com o Mundo, onde se operava, dia a dia, a evolução da mentalidade humana, concretizando-se as aspirações do homem.
É de admitir-se que tal transformação resultou principalmente desse contacto, em essencial com a literatura metropolitana e brasileira. Na realidade, as primeiras produções da Claridade, manifestam uma certa influência da corrente literária que caracterizou o Presencismo e da poesia brasileira de então. Influência que se limitou a mudar as directrizes da poesia cabo-verdiana. O Poeta, em vez de olhar para as nuvens, devia buscar o sentido da sua poesia na realidade em que vive.
Infelizmente, a primeira fase da Claridade foi um relâmpago. Mas foi o suficiente para a nova geração de Poetas cabo-verdianos poder ver claro, e compreender que a Poesia de Cabo Verde só poderia ter personalidade, possuir um real valor, se, sem intenção premeditada, fosse “os olhos e a boca” do Arquipélago das secas.
Anos volvidos, aparece a “Certeza”, folha infelizmente efémera, fundada por estudantes do Liceu. Nela, Arnaldo França, Nuno Miranda, Tomaz Martins, G. Rocheteau e outros jovens, ensaiam uma nova mensagem e mostram que compreenderam a dos Poetas da Claridade. Mas a “Certeza” não é apenas uma compreensão da Claridade.
O seus Poetas – o contacto com o Mundo é cada vez maior – sentem e sabem que, para além da realidade cabo-verdiana, existe uma realidade humana, de que não podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas em Cabo Verde que “há gritos lancinantes pela noite silenciosa” e “homens vagabundos” que “fitam estrelas que a madrugada esculpiu”. E dizem, querem dizer “um canto… que cruze nos mares mais distantes e entre nos corações dos homens… um canto com contornos de paz e relevos de esperança”. De esperança.
IV
Mas a evolução da Poesia Cabo-Verdiana não pode parar. Ela tem de transcender a “resignação” e a “esperança”. A “insularidade total” e as secas não bastam para justificar uma estagnação perene.
As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de “querer partir”, não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas – os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum – compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.
Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.
O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um “Amanhã” diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: “Em vez dos campos sem nada…” E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a “vivificação da Vida”.
O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o “naufrágio em terra” do povo a que pertence. Retrata os “homens calados” sofrendo a “dor da Terra-Mãe…num abandono de não ter remédio”. Dos homens, “presos na cadeia da desesperança”. E o seu sonho, não é de “querer partir”: é de “Outra terra dentro da nossa terra”.
* Cabo-verdiano radicado em Macau, onde foi Presidente do Instituto Cultural e Professor na Universidade de Ciência e Tecnologia.
Aplausos e mais aplausos pelo conteudo e pela escolha do melhor lugar para nos lembrar Aguinaldo Fonseca.
ResponderEliminarObrigado, Mnis !!!
Foi muito bom ler este magnífico trabalho do Jorge Morbey. O proveito foi imenso. Não tive possibilidade de comentar em tempo devido, mas nunca é tarde.
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