CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DAS RELAÇÕES CULTURAIS ENTRE CABO VERDE E O BRASIL
Joaquim Saial,
Jornal "Terra Nova" (CV), Fevereiro.2014
Pode ler-se no carioca Jornal do Brasil de 18 de Janeiro de 1933 um texto de crítica literária demonstrativo do interesse que as coisas cabo-verdianas já despertavam na altura entre a intelectualidade e a imprensa daquele país latino-americano de expressão portuguesa – no caso, associado ao poeta das ilhas, José Lopes da Silva [1]. Daí, a nossa crónica desta feita descer do Atlântico Norte ao Sul, em águas de igual gosto lusófono, sentido por irmãos brasileiros, cabo-verdianos e portugueses. Este é o primeiro de dois textos que escrevemos sobre o tema. O segundo figurará no próximo número deste jornal.
José Lopes da Silva, uma paixão pelo Brasil
O aludido texto, publicado no Rio de Janeiro pelas oficinas gráficas do Jornal do Brasil nesse mesmo ano, reproduzia o discurso de José Lopes da Silva na Câmara Municipal de São Vicente, escrito por ocasião da passagem pela ilha, a 24 de Maio do ano anterior, do cabo-verdiano Martinho Nobre de Melo, então embaixador de Portugal no Brasil, que se dirigia ao Rio [2]. Dizia o autor que se tratava de notável peça de oratória que convinha "ser conhecida de todos e principalmente dos que [sabiam] aquilatar da vernaculidade da língua portuguesa, tal [era] a expressão do tribuno erudito que se [revelava], nesse trabalho, um atleta da linguagem castiça, dos grande lances oratórios e do pensamento fecundo." Prosseguia o texto: "O discurso, que ocupa (2…) [3] páginas do folheto recebido é uma saudação ungida de afecto do venerando professor ao Dr. Martinho Nobre de Melo, seu discípulo na adolescência, aferindo as qualidades de carácter e talento do homenageado em todos os postos da sua vida pública, como as dos mais eminentes patrícios." Mais curiosa, pela inclusão de pedido local, era a referência à esposa do embaixador. Afirmando que pelo nome (Alexandra) ela era "defensora do homem", invocava o orador o seu auxílio em favor da mocidade escolar cabo-verdiana. Terminava o trecho com cumprimentos ao também ali presente antigo senador Augusto Vera-Cruz, então cônsul do Brasil em São Vicente. A representação brasileira no arquipélago iria ser detida pouco depois, como veremos, pelo próprio poeta José Lopes da Silva, por morte do senador Vera-Cruz, a 5 de Dezembro desse ano [4].
A 3 de Novembro, Lopes da Silva surge-nos em A Noite [5], outro jornal do Rio, a propósito do livro "Hesperitanas", saído em Lisboa em edição da Livraria J. Rodrigues [6]. Chamavam-lhe ali "notável poeta" diziam-no "festejado nos círculos da elite cultural brasileira" e consideravam-no "uma das mais pujantes cerebrações contemporâneas, sendo as suas obras difundidas em vários continentes". A notícia tem erros de impressão mas percebe-se que ali se fala em referências à mãe-pátria e em "hinos calorosos ao Brasil [7] com entusiasmo marcado em versos de doçura e espontaneidade indizíveis." Martinho Nobre de Melo retribuía agora as palavras produzidas pelo seu mestre no Mindelo, prefaciando as "Hesperitanas". Concluía o texto com a seguinte declaração: "Sua obra é de vulto e bem merece o alto conceito em que é tida no julgamento dos expoentes da literatura nas duas pátrias irmãs. 'Hesperitanas' está fazendo um grande sucesso pois os seus poemas instruem, encantam e deliciam."
A 29 de Outubro de 1934, ainda em A Noite [8], dava-se a conhecer a nomeação do poeta pela chancelaria brasileira para o cargo de vice-cônsul do país em São Vicente de Cabo Verde. E os elogios à sua figura continuavam: "O festejado homem de letras sempre se revelou grande amigo do Brasil, tendo dedicado ao nosso país diversas das lindas páginas do seu recente livro de poesias – 'Hesperitanas' – que teve larga aceitação entre nós." O jornal revelava ainda um aspecto que pode ter tido alguma influência na escolha do poeta para o cargo diplomático: o facto de seu filho, Francisco Lopes, prestigiado oficial da marinha mercante brasileira ser funcionário da Companhia Comércio e Navegação na qual exercia o cargo de administrador da ilha de Caju [9] e chefe dos serviços marítimos.
Esperaremos até Janeiro de 1938 [10] para vermos o poema "Osmologia" (reflexos do poeta inglês Richard Lovelace [11]) de José Lopes publicado no Jornal do Brasil. Mas no mês seguinte surge em A Noite a notícia da saída do seu ensaio sobre Getúlio Vargas [12]. Ali se reafirmava a ligação do poeta cabo-verdiano ao Brasil: "O autor desse opúsculo, que exerce actualmente o cargo de vice-cônsul sempre se revelou sincero amigo do Brasil ao qual está ligado não só por laços espirituais mas também por liames de família pois tem filhos que são cidadãos brasileiros. José Lopes, que é oficial da Academia Francesa e comendador da Ordem de Instrução de Portugal, não perde uma só oportunidade para elogiar o nosso país, como fez, com brilho, nos versos do seu livro 'Hersperitanas'. Seu novo ensaio, agora editado, vem demonstrar mais uma vez a carinhosa atenção que dispensa a quanto se relacione com a vida e o destino do Brasil."
Francisco Lopes da Silva, uma morte imprevista
Curiosa e ainda elucidativa do interesse dos Lopes da Silva pelo Brasil é a notícia sobre ambos em mais um exemplar de A Noite, de 20 de Fevereiro de 1941 [13]. Ao cabeçalho "Dois poetas de Cabo Verde – 'Recordações", de Francisco Lopes e 'Ombres Immortelles' [14], de José Lopes" sucedem-se algumas dezenas de linhas em que se conta que José Lopes enviara para a redacção do jornal uma plaquette com esse título, contendo vinte sonetos em francês, "demonstração do seu completo domínio na língua de Racine". Sombrios, os poemas aludiam a grandes figuras da história e das artes, como Napoleão, Frederico II, Beethoven, Mozart, Bellini, Goethe, Voltaire, Rousseau e outros. Quanto ao livro do filho Francisco, esse era publicado através das oficinas gráficas do Jornal do Brasil. Chamava-se-lhe "herdeiro do talento paterno, um legítimo e inspirado poeta". No mesmo local se contava que era frequente colaborador de jornais cariocas, como articulista cujos escritos sobretudo incidiam em questões de transportes marítimos. Era esta a sua estreia como poeta e a mesma considerada auspiciosa pela crítica que referia haver no livro "excelentes trabalhos que lhe asseguravam uma unidade perfeita". Terá sido no entanto obra única, pois Francisco José Lopes da Silva, português de origem cabo-verdiana mas naturalizado brasileiro, suicidar-se-ia pouco depois [15]. Por motivos de intrigas na sua actividade profissional consubstanciadas em invejas de superiores e companheiros, pôs fim à vida na ilha de Caju com um tiro na cabeça. Deixou viúva, quatro filhos… e três cartas de despedida: ao Secretário de Segurança Pública do Estado, ao almoxarifado da companhia onde prestava serviço e à esposa, Leonor. Na primeira, despedia-se do "pai e [de] todos da família de além-mar". Tinha 53 anos, quando foi enterrado a 19 de Junho de 1947 [16]. José Lopes sobreviver-lhe-ia 15.
[1] José
Lopes da Silva (São Nicolau, 1872 – São Vicente, 1962). Entre outras
actividades profissionais que desenvolveu, foi professor primário na ilha da
Boavista e depois no Mindelo, de Latim, Português, Francês e Inglês no Liceu
Infante D. Henrique, antecessor do Liceu Gil Eanes.
[2] Um outro
discurso, feito durante o banquete de homenagem ao embaixador, este pelo Dr.
João Gomes da Fonseca, teve publicação em São Vicente (ed. Sociedade de
Tipografia e Publicidade), também em 1933. Existe, na Biblioteca Nacional de
Lisboa.
[3] O
cardinal é de difícil leitura, talvez 21 ou 24.
[4] O senador
Augusto Vera-Cruz representou os interesses de Cabo Verde no parlamento
lisboeta desde 1912 a 1926, quando a ditadura substituiu a I República em
Portugal.
[5] P. 2.
[6] Supomos
que se tratará da 2.ª edição da obra que teve 1.ª em 1929, pela mesma editora
lisboeta.
[7] Por
exemplo, o famoso poema "Ao Brasil", escrito anos antes, em 1919.
[8] P. 2.
[9] A ilha
situa-se no delta do rio Parnaíba, no estado do Maranhão.
[10]
30.01.1938, p. 7.
[11] Poeta
inglês do século XVII.
[12]
09.02.1938, p. 4. Getúlio Vargas (1882-1954) foi Presidente da República do
Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954, tendo terminado o seu segundo mandato
por suicídio do político.
[13] P. 2.
[14] Ed. J.
Rodrigues e Ca., Lisboa, 1940. Existe na Biblioteca Nacional de Lisboa.
[15] Posteriormente
à saída deste artigo no Terra Nova
verificámos que Francisco Lopes da Silva publicou pelo menos outro livro, "Recordações",
Rio de Janeiro, Brasil, 1940, e um pequeno opúsculo, "José Luís de
Melo", Rio de Janeiro, Brasil, 1939. A indicação foi-nos dada verbalmente
por João Manuel Nobre de Oliveira e depois confirmada no seu monumental livro
"A Imprensa Cabo-Verdiana, 1820-1975", ed. Fundação Macau, Direcção
dos Serviços de Educação e Juventude, Macau, 1998.
[16] Ver várias referências na imprensa brasileira desta data e de datas subsequentes próximas.
Lido com prazer, Dack.
ResponderEliminarImagine-se o proveito de quem teve este homem como professor primário.
ResponderEliminarExcelente trabalho. Outros tempos, outros homens.
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