sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

[7565] Um conto de Natal para a ilha de S. Nicolau, pela escritora e poetisa cabo-verdiana Maria Helena Sato residente em S. Paulo, Brasil

Um sonho de Natal na Ilha de São Nicolau

Há muitos e muitos anos, quando no mundo pouco se ouvia falar em Papai Noel, Pai Natal ou Santa Claus, as crianças ganhavam brinquedos feitos de barro e folhas de bananeira no dia de Natal. Querem outros crer que Papai Noel já existia, só que não viajava em renas nem tinha uma roupa vermelha e botas quentes, mas usava um pequeno barco que percorria todas as ilhas e continentes em uma noite apenas. Por isso, contavam os mais antigos, a noite de Natal era sempre noite de vento. No entanto, era uma noite de paz. Assim, para simbolizar a paz na natureza, tornou-se hábito trazer uma árvore para dentro de casa e enfeitá-la, resguardando-a da ventania que Papai Noel, na correria, provocava. Tudo isso para festejar a grande festa do Menino Jesus! 

Daquele tempo resta, porém, fraca memória. Fala-se muito mais da época em que Papai Noel começou a espalhar sonhos, desejos e brinquedos pelo mundo. Foi então que ele passou a procurar um lugar onde pudesse guardar parte dos presentes de Natal. Não que ele quisesse deslocar do Pólo Norte a sua grande Central de Brinquedos, mas porque, com a crescente população do mundo, fizera-se necessário ter uma base perto do hemisfério sul, que facilitasse o transporte de presentes para o mundo inteiro. 

Duendes encarregaram-se de buscar o melhor lugar para o grande depósito no sul. Decidiram que deveria ser um canto isolado, para que não fosse descoberto facilmente: nem por adultos, que logo inventariam impostos e tornariam mais caros os brinquedos, nem por crianças, a fim de que não perdessem a surpresa dos presentes que encontrariam na noite enfeitada pela Grande Estrela de Belém.

Debruçados sobre o mapa mundi, os duendes do Pólo Norte indicaram um pequeno ponto. Ficava entre outros nove. Fizeram cálculos e recomendaram a Santa Claus que adotasse como Depósito uma montanhosa ilha, de 388 m2, cuja população era alvo de frequentes ataques de piratas. Prontamente, Santa acedeu.

Logo chegaria o Natal. Duendes de calção vermelho e camiseta verde passaram a circular pelos ares, alegres como a brisa. Sua pele muito clara logo ficou bronzeada, pois trabalhavam o dia todo para montar as novas instalações. Santa Claus em pessoa veio na noite de Natal inaugurar o novo depósito, que passaria a chamar-se Central Sul. A seu pedido, o local foi iluminado por estrelas. No seu coração bondoso, o maior presente para todos seria a Alegria! Em todas as casas, no sorriso das crianças, no olhar de cada família!

Não se sabe como: mesmo sem qualquer divulgação da presença de Santa e seus ajudantes na ilha, todos sentiam algo mágico no ar. E nessa noite houve fogos de artifício e música no coreto da praça.

Por alguns anos, os duendes do sul trabalharam incansavelmente. Contudo, foram aos poucos rareando, pois havia cada vez menos crianças esperando que chegassem. Deixaram de receber cartas e já não sabiam o que cada um dos pequeninos desejava ganhar. Parecia que a magia estava sumindo do mundo. Um dos duendes inventou uma caixa de mágicas e naquele ano quase todos os meninos e meninas em idade escolar ganharam uma de presente. Mas isso não foi suficiente para restaurar a esperança de ver o impossível, nem o entusiasmo de fazer algo novo.

Foi justamente nessa altura que um navio clandestino deixou escravos na ilha, sem poder prosseguir com eles para o continente americano, onde era intenção entregá-los a comerciantes. O choro dos pequeninos, os lamentos da escravidão e os maus tratos sofridos fizeram com que os duendes lhes dessem pronta atenção, abrindo-lhes as portas do grande armazém. Esperando atenuar o sofrimento desses novos moradores da ilha, os duendes ofereceram-lhes roupas, canções e iguarias. Naquela noite, o luar brilhou intensamente. E até mesmo animais da vizinhança vieram acolher os recém-chegados.

A partir desse ano, o Central Sul deixou de enviar brinquedos para o mundo. Passou a abrigar quem chegasse à ilha sem endereço certo a buscar. Foi o único jeito que os duendes encontraram para manterem abertas as portas do grande depósito. Jamais se revelou quem o abastecia mensalmente. A verdade é que nada faltava aos mais desvalidos.

Por outro lado, durante muito tempo, aqueles que haviam sido destinados a serem escravos, mas que a ilha tornara livres, receberam a visita de um homem bondoso e feliz que vinha tocar e cantar lindas canções nas noites de Natal. Ninguém sabia o seu nome. Da última vez, já bem velhinho, perdeu um lenço no meio das brincadeiras que fazia com a criançada. Na manhã seguinte, um menino chamado Baltasar encontrou o lenço, que trazia um nome gravado: Nicolau.

Então, a liberdade tomou conta dos sonhos de Baltasar.

(in “Caleidoscópio”, Maria Helena Sato) 




2 comentários:

  1. Um conto de Natal muito original e que se inscreve num imaginário em que a memória histórica dialoga com o sonho de liberdade. Parabéns à autora.

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  2. Agradeço a A. Miranda Lima o gentil comentário. Feliz 2024!

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