Zito Azevedo |
Eu fora a S. Tiago tratar da papelada para depois seguir para Angola, como funcionário administrativo, com guia de marcha, guia de vencimentos, protocolo de adiantamentos em numerário, requisição de passagem para Lisboa, etc. etc., um monte de papelada que me lembrei de acomodar numa daquelas pastinhas de capitão de palhabote, imitações de pele com um fecho de correr em três dos seus quatro lados e que dava ao portador um aspecto de pessoa ocupada e quase importante, carregando uma pasta negra repleta sabe-se lá de que segredos.
Corria o ano de 1956, estaríamos aí em Outubro ou Novembro e o dia tinha amanhecido carrancudo, lá na Chã de Areia, em casa de Ti Nanda, tia da minha, na altura, noiva, e que era casada com Polú, professor da Escola Técnica, mas um mestre em carpintaria, marcenaria, mecânica, engenharia naval e civil, electricidade, metalurgia, um homem para quem as ciências práticas não tinham segredo… Ficaram célebres os seus cachimbos extraordinários, especialmente os de raiz de roseira, as suas cadeiras de baloiço e muito mobiliário de mogno com acabamentos lacados, arte milenar que ele interpretava como ninguém. Este homem foi o mais completo repositório de conhecimentos que até hoje conheci e que até construíra o bote em que eu, nesse dia fatídico, haveria de naufragar…
Corria o ano de 1956, estaríamos aí em Outubro ou Novembro e o dia tinha amanhecido carrancudo, lá na Chã de Areia, em casa de Ti Nanda, tia da minha, na altura, noiva, e que era casada com Polú, professor da Escola Técnica, mas um mestre em carpintaria, marcenaria, mecânica, engenharia naval e civil, electricidade, metalurgia, um homem para quem as ciências práticas não tinham segredo… Ficaram célebres os seus cachimbos extraordinários, especialmente os de raiz de roseira, as suas cadeiras de baloiço e muito mobiliário de mogno com acabamentos lacados, arte milenar que ele interpretava como ninguém. Este homem foi o mais completo repositório de conhecimentos que até hoje conheci e que até construíra o bote em que eu, nesse dia fatídico, haveria de naufragar…
Foto Joaquim Saial (clique na imagem) |
Ao princípio da tarde, e debaixo de um céu plúmbeo de quase meter medo, lá fui para o cais do porto para apanhar um “gasolina” que me haveria de levar a bordo de um dos navios da Sociedade Geral de viagem para Lisboa via Porto Grande, fundeado a meio da baía. Foi na altura em que todos ouviram o lúgubre lamento do alarme da Capitania do Porto avisando a cessação de trânsito das embarcações mais pequenas por via da calema… Lá se ia a minha hipótese de chegar a bordo do navio que me levaria a S. Vicente e Lisboa.
A calema é uma situação, creio, característica das águas tropicais, em que de formam ondas por vezes de grande porte, entre curtos períodos de acalmia quase podre… Não me parece que se saiba quando e porque se formam e também julgo que ninguém saberá quando vai a calema amainar, o que quer dizer que eu estava metido numa camisa de onze varas, pois nem com uma gratificação extra se conseguia uma oferta de transporte. Foi quando o Tio Polú se lembrou do botezinho que tinha construído, meses antes, no seu estaleiro privativo de Chã de Areia. O bote era minúsculo e éramos eu, o moço dos remos, a minha mala da roupa e a minha preciosa pastinha de mão, repleta de documentos e bastante dinheiro para a época… As ondas da calema, dizem, acontecem de sete em sete mais pequeninas, quase imperceptíveis e foi num desses hiatos de acalmia que nos lançamos à água fria do porto, com o navio à vista mas parecendo tão distante…Tão distante, efectivamente, que nunca chegámos a alcança-lo. Creio que, se não foi à primeira foi à segunda ondona que o barquinho ficou repleto de água mas, graças a Deus manteve-se à tona e nós muito sentadinhos comigo segurando a alça da minha mala e a pastinha apertada debaixo do braço, com toda a pressão possível. Estaríamos a entrar em pânico, quando ouvimos uma voz gritar o conhecido “homem ao mar!”… Levantámos os olhos e lá estavam três ou quatro marinheiros à ré de um navio de casco escuro e altíssimo, para cujas cercanias a onda nos tinha arrastado! Um deles segurava uma bóia, que nos foi lançada segura a um cabo, enquanto nos recomendavam que não tentássemos levantar-nos pois sentados estaríamos mais seguros. Tudo se passou com tal rapidez que nem deu tempo para pensar em ter medo e poucos segundos depois estávamos a ser içados para bordo, a minha mala e a minha pastinha bem seguras, molhados até aos ossos mas felizes como passarinhos acabados de libertar da gaiola...
A calema é uma situação, creio, característica das águas tropicais, em que de formam ondas por vezes de grande porte, entre curtos períodos de acalmia quase podre… Não me parece que se saiba quando e porque se formam e também julgo que ninguém saberá quando vai a calema amainar, o que quer dizer que eu estava metido numa camisa de onze varas, pois nem com uma gratificação extra se conseguia uma oferta de transporte. Foi quando o Tio Polú se lembrou do botezinho que tinha construído, meses antes, no seu estaleiro privativo de Chã de Areia. O bote era minúsculo e éramos eu, o moço dos remos, a minha mala da roupa e a minha preciosa pastinha de mão, repleta de documentos e bastante dinheiro para a época… As ondas da calema, dizem, acontecem de sete em sete mais pequeninas, quase imperceptíveis e foi num desses hiatos de acalmia que nos lançamos à água fria do porto, com o navio à vista mas parecendo tão distante…Tão distante, efectivamente, que nunca chegámos a alcança-lo. Creio que, se não foi à primeira foi à segunda ondona que o barquinho ficou repleto de água mas, graças a Deus manteve-se à tona e nós muito sentadinhos comigo segurando a alça da minha mala e a pastinha apertada debaixo do braço, com toda a pressão possível. Estaríamos a entrar em pânico, quando ouvimos uma voz gritar o conhecido “homem ao mar!”… Levantámos os olhos e lá estavam três ou quatro marinheiros à ré de um navio de casco escuro e altíssimo, para cujas cercanias a onda nos tinha arrastado! Um deles segurava uma bóia, que nos foi lançada segura a um cabo, enquanto nos recomendavam que não tentássemos levantar-nos pois sentados estaríamos mais seguros. Tudo se passou com tal rapidez que nem deu tempo para pensar em ter medo e poucos segundos depois estávamos a ser içados para bordo, a minha mala e a minha pastinha bem seguras, molhados até aos ossos mas felizes como passarinhos acabados de libertar da gaiola...
Vesti um pijama do capitão do cargueiro português que nos havia “pescado” e o meu companheiro uma farda de trabalho de um tripulante, enquanto a nossa roupa secava e, como a noite já tinha caído e as emoções abrem o apetite, não nos fizemos rogados quando o capitão nos convidou para jantar. Foram momentos de descontracção que vieram a calhar depois daquele estranho naufrágio mas, terminada a refeição e seca a nossa roupa, regressei à terra e constatei que o problema, afinal, subsistia e até se agudizava pois, momentos antes, tinha assistido à saída do navio a bordo do qual eu era suposto estar, a caminho de S. Vicente… e no mar, havia calema!
Foi quando o capitão me levou perto da amurada e apontando para um grupo de tripulantes do navio me disse:
-Meu amigo, estes são os oito melhores remadores que tenho a bordo. Se você os convencer a levá-lo e ao seu companheiro, a terra, eu autorizo a utilização de um dos escaleres salva-vidas do navio!
E ilustrava a palavra “convencer”, esfregando, significativamente, o polegar no indicador da mão direita… Claro que não levei muito tempo a negociar e ofereci 500 escudos, de caras; o patrão fez notar que eram oito, eu percebi a lógica aritmética e meia hora mais tarde, lá fomos, cavalgando as ondas da calema, eu, o meu remador – que não tinha dito mais do duas palavras desde que saíramos de Chã de Areia – a minha mala da roupa e a preciosa pastinha negra onde, pasme-se, não entrara uma única gota de água!
Havia sobrevivido ao meu primeiro naufrágio e, como contarei um dia, acabei por chegar a Angola!
Zito Azevedo
Queluz, 21 de Novembro de 2011
Uma história do Porto Grande, uma entre milhares, com azar e sorte dentro - como sempre foi próprio dos portos de todo o mundo. A mesma água que traz as necessárias e cobiçadas mercadorias, pode transportar as mais tristes notícias.
ResponderEliminarEnfim, mesmo sem "Lusíadas" na pasta, este quase náufrago saiu vencedor da procela e aqui conta a sua stóra, para nosso deleite.
Braça,
Djack
As epopeias maritimas têm sempre um sabor especial e esta aventura de um "marinher d'aga dôce" tem mais sabura por se situar em lugares que (quase) todos conhecemos.
ResponderEliminar'A medida que fui lendo vivia como se fosse eu um protagonista (cheio de ciùme) da aventura do amigo Zito.
Efectivamente a aventura é das que ficam asinaladas em uma vida.
Força, Zito!!! Aproveita deste espaço saialense que, afinal, é de nôs tude. Né devera?
Acho que deves ter engolido alguns golos de água do mar mas que estás a ocultar, talvez por vergonha (hehehehhee).
ResponderEliminarAgora, não sabia que o céu poderia ficar "plúmbeo", melhor, nem conhecia esta palavra (ainda bem que existe o google).
Abraço e continua porque está um bom texto e gostei
A minha desmedida paixão por S. Vicente e pelo Porto Grande faz-me muitas vezes variar... Claro que no texto do Zito se diz que ele estava em Santiago e iria para Lisboa via S. Vicente. Daí, eu dizer no meu comentário ali em cima "Uma história do Porto Grande..." Substituamos então essas palavras por "Uma história de porto...", com a devida vénia ao da Praia. Paixões dão sempre nisto: os cinco sentidos ficam como que embotados. Terminemos portanto com um Viva!!!, a todos os portos.
ResponderEliminarOi, Valdemar!
ResponderEliminarPassada a curva ascendente da vida, restam-nos as recordações dos sítios, das gentes, dos acontecimentos e, assim revivemos as nossas felicidades passadas, acompanhados por vós. Obrigado pela companhia...
Oi, Daivarela!
Saúdo a sua promissora juventude e desejo que não permita, jamais, que o seu coração fique plúmbeo...Obrigado, também, pelo estímulo...
Oi, Jack!
Amor é cego, meu caro: só um cego não vê!
Zito Azevedo
Um episódio pessoal contado com muita graça e reportando um incidente que só não resultou num registo "trágico-marítimo" da história do porto da Praia graças ao oportuno socorro náutico. Eu só não aglutinei o vocábulo "cómico" ao "trágico", porque o meu coração fica "plúmbeo" sempre que me lembro dos que pereceram "derriba d'aga de mar".
ResponderEliminarAgradeço as plavras amigaas de A.M.L. É que, se me dá prazer escrever, muito me agrada, claro, que haja quem me leia. com algum interesse.
ResponderEliminarZito Azevedo
Mais uma crónica muito interessante! Não há por aí nenhum editor interessado em publicar as crónicas do Zito? :-)
ResponderEliminar´Beijinhos
Paula
Olá, Paula...Já me basta que haja quem se interesse em lê-las!
ResponderEliminarBeijão,
Zito