Nova e última excepção nos próximos tempos, eis mais um texto longo, escrito hoje de manhã, melhorado em início de tarde e pronto para publicar agora. Cheira a pó, suor e peixe frito, mas ainda assim achamos que será bem apetitoso para os leitores. Chega uma semana depois da data de que fala, mas isso não o invalida porque para o ano que vem há novo Sanjon...
Como todos sabemos, depois de ter criado o Mundo, Deus sacudiu as mãos da terra que elas ainda continham, atirando-a para um sítio no Atlântico, mais ou menos entre as latitudes 14 e 17 Norte e longitudes 22 e 25 Oeste, perto do continente africano - o que deu dez ilhas, alguns ilhéus e mais umas quantas rochas anónimas. Tratava-se de Cabo Verde. Depois, Deus lavou as mãos nas águas do oceano e esqueceu-se do arquipélago que inadvertidamente tinha criado. Ainda por cima, nem gente lá pôs.
Coube essa tarefa a uns rapazes que da cara da Europa saíram nos alvores do século XV para o Mundo, em busca de comércio, aventura e terras para expandirem o pequeno rectângulo onde viviam. Claro que, a partir daí, os ditos cujos fizeram algumas tropelias. Mas também se portaram com categoria, noutras ocasiões. E numa dessas, em que estavam bem dispostos, após terem chegado às ditas ilhas, criaram o Homem e a Mulher cabo-verdianos, simpáticos seres como não há outros iguais à face da terra... excepto os portugueses, claro está, e talvez os brasileiros! Simpáticos, os ilhéus, porquê? Porque para além dos genes e cromossomas que muitos deles traziam de África, de onde emigraram forçadamente, herdaram dos mondrongue os de árabes, visigodos, celtas, romanos, lusitanos e sabe-se lá mais de quem que os portugas de há muito transportavam no sangue... Concluindo, tudo boa gente! Nem mais!...
Passou o tempo e os portugueses também se foram esquecendo de algumas das ilhas, sobretudo da de S. Vicente, talvez por esta ser uma das mais carecas de vegetação. Até que, para contrariar a incomodativa pirataria que nela de vez em quando se alojava, os lusos acordaram e resolveram povoá-la, quase no final do século XVIII. Segundo rezam as crónicas, vinte casais e cinquenta escravos foguenses, chefiados pelo capitão-mor João Carlos da Fonseca Rosado, natural de Tavira, criaram a pequena aldeia de Nossa Senhora da Luz à qual, o futuro governador Pusich se lembrou de dar em 1819 o estapafúrdio nome de Leopoldina... Graxa, dizemos nós, graxa queria ele dar à família real, pois Leopoldina era a austríaca esposa do príncipe Pedro, então em forçado (e dourado) exílio brasileiro, futuro imperador do Brasil e Rei Pedro IV de Portugal (neste caso, apenas por uma semana)...
Imagem eBay - Rbera d'Julion, talvez a horta de nha Camila de Café Cantante, de que muitos ainda se lembram |
Mindelo foi o nome definitivo, liberal e chamativo, que no crioulo da ilha acabou por perder o finalizante "o", ficando ainda mais falável. E a ilha e a cidade foram crescendo, sob a égide de S. Vicente, o santo marítimo do dia do achamento e padroeiro de Lisboa que emigrou para Cabo Verde ao mesmo tempo que os descobridores aproaram ao território. Mas faltava qualquer coisa. Sentia-se uma necessidade de folia que ainda não tinha o Carnaval para ser saciada. Que se poderia fazer, que se poderia arranjar, para a suprir? Foi então que entrou em cena o santo onomástico. Que diabo, afinal era ele o defensor maior da ilha, aquele a quem, em caso de necessidade de qualquer ordem - embora sempre sob a égide de Nossenhora da Luz - competia interceder pelos mindelenses, sobretudo os que se aventuravam no Mar de Canal ou lá longe nos States, na pesca da baleia. Ora o santo, aproveitando um dia em que Jesus e S. João estavam a conversar, sentados numa nuvem do quadrante 46898/3 do céu, resolveu falar-lhes no assunto. E foi este, exactamente, sem tirar nem pôr, o teor da conversa tripartida que aqui relatamos:
Disse S. Vicente, ao chegar junto a eles:
- Jesus, S. João, bons olhos vos vejam, há que tempos não nos encontrávamos.
- É verdade, Vicente, há muito que não nos vemos. Senta-te aqui nesta confortável ponta da nuvem e diz-me: que tal a tua ilha? Como vai aquele pessoal? - perguntou Jesus, mostrando-se interessado.
- Triste, Senhor. Aquilo é muito boa gente, do melhor que há na Terra por Vós criada, mas falta-lhes qualquer coisa, algo que os divirta e lhes dê energias para prosseguirem o dia-a-dia com outro vigor. Eles bem trabalham, coitados, mourejam, tiram das rochas escalavradas e do mar o sustento mas andam sempre abatidos, sem nenhum ligria. Senhor, morabeza ca ta tchegá pa ser feliz (cabe dizer que S. Vicente já arranhava o crioulo...).
- E que achas que se pode fazer? - perguntou João, o santo pastor.
- Sei lá, talvez inventar-se uma festa. Um farra, um fistinha anual, qualquer cosa divertide, pa tude munde fcá filiz, c'um missa, dança, coladera, funaná, pastilim de midge c’pêxe, sucrinha, um grogue… Talvez, tude djunte.
Jesus cofiou as longas barbas, pensou, pensou e repensou, e ao fim de mais de meia hora resolveu responder:
- Uma festa religiosa, adoçada com coisas do mundo, queres tu dizer?
- Sim, Jesus, por exemplo no meu dia – avançou São Vicente, pensando dar mais cor ao seu 22 de Janeiro.
Mas João, sábio e expedito (e um pouco molestado, diga-se), retorquiu logo:
- Jesus, acho que aqui o Vicente quer açambarcar tudo. Desde 22 de Janeiro de 1462 que a ilha, mesmo sem gente, comemora o seu dia – que foi o da descoberta. Já lhe chega, acho eu. Bem podia ser no meu, que no Mindelo ainda não tem grande significado. Mas Tu, na Tua imensa sabedoria é que tens a última palavra.
Jesus coçou a cabeleira, afagou o bem delineado nariz, olhou para ambos – para o expectante João e para o não menos ansioso Vicente –, espreitou durante uns minutos por um vasto buraco que havia na nuvem e depois de matutar mais alguns uns minutos, disse:
- Tens razão, João, tens imensa razão, como sempre, meu bom amigo. O Vicente já é amado em toda a ilha, até possui uma bonita imagem na igreja de Nossenhora da Luz, de barquinho na mão e tudo, e a ti ninguém te liga, ao contrário do que acontece na terra do dragão, no norte do país dos descobridores, onde até martelinhos em seu nome inventaram e têm um São Jorge Qualquer Coisa da Costa, de carne e osso, para competir contigo. E virando-se para São Vicente, acrescentou: - Bitchenta, tu és bom rapaz, já se sabe, mas agora é a vez do Djon. Estive a observar aquilo lá em baixo e perto do Mindelo está um terreno mesmo adequado para um arraial anual a 24 de Junho: acho que lhe chamam Rbera d’Julion ou coisa parecida, até ali cresce milho quando é época de azágua. Bom sítio para a festa, acho eu, com espaço para as barracas de comes e bebes e para o bailarico. Assim, o Mindelo fica com festa religiosa vicentina, no início do ano, e joanina mista, a meio. Isto, para não falar das restantes como a de Nossenhora da Luz. Contenta-se a santidade toda. Que tal? Que dizes? Achas bem?
Imagem eBay - Quando o milho crescia do nada e a verdura não era miragem |
São Vicente, que de facto era compreensivo, embora tenha ficado algo triste por perder uma festa que desde logo se afigurava bem divertida, acabou por cedê-la ao companheiro. E logo regressou ao arquipélago, numa longa jornada, desde lá acima até cá abaixo, incorporando de novo a imagem que ainda hoje vemos na igreja matriz do Mindelo, do lado direito ou da Epístola. De modo que foi dali que durante alguns meses inculcou nos fiéis, sem que eles disso se apercebessem, essa ideia que obviamente frutificou e no sítio pretendido, a Rbera. Claro que houve uns quantos exageros picantes na liturgia mundana da festa, como aquel stóra de “colá Sanjon”, que agora já é impossível remediar, de tão arreigada que está no coração do povo: está feito, está feito. Jesus não se tem mostrado preocupado com isso, Sanjon ainda menos e Sanbitchenta, esse continua todos anos à espera do 22 de Janeiro para comemorar com brilhantismo o seu dia e depois sair a correr da igreja da pracinha a caminho do aeroporto Cesária Évora, para apanhar o avião que o levará a Lisboa onde continua a festa, na Sé, à vista do Tejo que faz estrada com o Atlântico e o Porto Grande. E, quando no Verão tem tempo, ainda dá um saltinho ao lisboeta bairro do Alto da Cova da Moura, para ver o amigo Djon que ali também tem poiso certo a 23 de Julho, com homens dançando dentro de barquinhos embandeirados e apitos a soar e tudo…
Joaquim Saial
Barcos de Colá Sanjon, na Biblioteca Municipal do Mindelo |
Gostei muito da história. Está muito bem escrita e cheia de humor. Valeu a pena lê-la!Conta-nos mais histórias.
ResponderEliminarCom amizade
Dina Dourado
Espero que tu e o pessoal do lado de cá do mar tenha percebido algum crioulo que aqui aparece, à mistura. Mas é mesmo assim, Cabo Verde sem crioulo seria como champanhe sem bolhas...
EliminarUm abraço,
JS
Detectei uma gralha: ali na primeira linha era "tenham", obviamente.
EliminarDesculpas joanino/vicentinas...
JS
Meu amigo, San Jon na Ribêra de Julion, com mais ou menos poeira deve ser coisa única no universo e ler a sua história é, certamente, um processo delicioso de estar quase dentro dela...Adorei o estilo de "era uma vez..." e o ambiente de conto de fadas com que V. embrulha uma realidade pagã sancionada pelos Santos do Povo só lembraria, claro, a um Historiador que, por sorte, também é um contador de histórias.
ResponderEliminarThank you, brother!
Zito
O "crime" do escriba aconteceu por via do postal que tem milho espigado, possivelmente assim desenvolvido após uma daquelas chuvadas raras mas de afogar gente em que Cabo Verde é pródigo, de anos a anos - por vezes, de décadas a décadas.
EliminarFoi de facto o postal o motivo do crime. Hoje de manhã pus-me a olhar para ele e quando dei por mim a stóra estava andar mais depressa do que eu a conseguia acompanhar e escrever...
Talvez ainda leve um ou outro arranjo daqui a dias, como é habitual (escrita é como lavrar a terra, custa que se farta, e de início nem sempre fica como a gente quer), mas no essencial a coisa está feita.
Braça
Djack
Sabe, sabin de mund! Segue brevemente?!... Braça rija e votos de bom fim de semana! Manel de Xanda
ResponderEliminarCaro amigo, quem seguiu foi o Adriano. Eu fiquei por cá... cheio de inveja, claro.
EliminarBraça
Djack
Mas que stora sabim sobre o nhô San Jon!
ResponderEliminarNão tenho palavras para explicar o quanto me divertiu esta saborosa narrativa do nosso Djack. Ler isto é sentir a maresia no nariz, o vento a açoitar os cabelos, o rufar "repnicod" dos tambores e apitos, o aroma de midje in grom e pêxe frit, o surdo batimento sincopado dos ventres, enfim,um sem número de sensações inolvidáveis que mexem com as nossas mais secretas energias.
Mas, Djack, não segui para lado nenhum. Desde 2 de Janeiro que não saio de Tomar... Mas bem que gostaria de poder rumar à minha ilha por alturas de San Jon se não me tivessem mexido alarvemente nos bolsos.