Crónica de Outubro.2012
CRISE DE TRABALHO E MANTIMENTOS EM CABO VERDE: UMA POLÉMICA EM 1948
Nos finais dos anos 40, Cabo Verde tinha 180.000 habitantes, a fazermos fé no número divulgado pelo Diário Popular de 23 de Janeiro de 1948. Substancial parte dessa população debatia-se então com séria crise de trabalho e grande aumento do custo de vida, devidos a três anos sucessivos de seca – drama que, na Assembleia Nacional lisboeta, o deputado pelas ilhas, Dr. Adriano Duarte Silva, fazia cruamente saber aos seus confrades. Mas ao mesmo tempo o tribuno afiançava que a crise não era devida à falta de mantimentos, pois, segundo ele, os Governos local e nacional tinham sabido orientar as «correntes comerciais no sentido de se abastecer convenientemente o arquipélago». Nesse aspecto, afirmava, fora determinante a acção do governador João de Figueiredo (que exerceu entre 1943-49), o qual «teve de lutar com o egoísmo de uma minoria de intermediários traficantes, que costumavam enriquecer quando morriam aos milhares os seus compatriotas.» Afirmação grave, que não personaliza, mas que amplia ao dizer que o governador «teve de assegurar o aprovisionamento e por isso adoptar as medidas necessárias, demonstrando assim que o interesse comum não [podia] ser lesado pelos interesses particulares monetários dos que exploravam a desgraça dos portugueses de Cabo Verde».
Dr. Adriano Duarte Silva |
Digamos portanto que, ao que parece, as instâncias governativas de Lisboa e da Praia se tinham portado mais ou menos bem desta vez mas que era preciso ir mais longe. Urgia arranjar trabalho para o exército de desempregados que deambulava pelas ilhas, à procura de ocupação. É que desemprego e fome andam sempre de mãos dadas e aqui não se fugia à regra. Para Duarte Silva, havia sobretudo falta de poder de compra, devida à crise de trabalho. Por isso, embora agradecendo a ajuda que tinha vindo de Lisboa, considerava ser absolutamente necessário aumentar a mesma. E a notícia concluía com sintomática frase: «Esperemos igualmente que além do Estado se lembrem daqueles infelizes os que enriqueceram à sua custa nas crises anteriores, em especial, e de uma maneira geral todos os portugueses para quem a caridade não é um metal que tine ou um sino que soa».
No dia seguinte, no mesmo jornal, liam-se alguns esclarecimentos de Adriano Duarte Silva que dizia que na Assembleia Nacional afirmara sobretudo que o excesso de mortalidade verificado até ao Outubro anterior, quando viera de Cabo Verde para Lisboa, ficava muito aquém do que se tinha registado em ocasiões semelhantes e que esse facto se devia a ter-se gasto até então a verba de 17.000 contos tirados dos recursos da colónia e provenientes da ajuda metropolitana. Na mesma coluna reproduzia-se uma carta de José Inocêncio da Silva, funcionário dos correios e escritor – curiosamente próximo do regime salazarista – ao director do jornal, sobre o mesmo assunto. Ali, felicitava o periódico por ser «o primeiro jornal do País que se ocupou da situação de Cabo Verde, tão desassombrada e carinhosamente nos seus largos comentários, ressaltando as verdades com todas as letras»…
E a 25, no DP, ainda se insistia no assunto. Respiguemos dali algumas das frases mais significativas, relacionadas com a ajuda concedida anos antes: «Simplesmente, em virtude do mau arranjo das correntes comerciais de importação e distribuição essa ajuda foi anulada, revertendo as vantagens em benefício dos escassos poderosos e egoístas traficantes que enriqueciam com a miséria dos cabo-verdianos. Agora o caso mudou de figura. O auxílio da Metrópole é profícuo porque se modificou patriótica e sadiamente a estrutura habitual (mas errada e nociva em tempo de crise!) do comércio de importação e da distribuição. Esta é a opinião geral e de quem conhece o assunto. É aliás, a conclusão lógica do que se diz: ‘Não há crise de mantimentos’. Não há, é evidente, porque desta vez as autoridades centrais e locais conseguiram vencer o sórdido egoísmo dos especuladores.»
Mas a polémica só se instalaria verdadeiramente, quando a 23 de Fevereiro o jornal publicou uma carta de [Júlio] Smith Benoliel de Carvalho (1899-1982), sócio e gerente da Sociedade Luso-Africana, Lda., com sede em Lisboa e que se dedicava ao grande comércio de importação e exportação da colónia. Escrevia ele que a sua classe fora «tão rude quanto injustamente visada nas colunas do jornal», embora recebesse de braços abertos e aplaudia «entusiástica e gratamente tudo quanto o Governo central [tinha] feito e [prometia] fazer em socorro da colónia.» E fazia ao autor dos artigos do DP três perguntas: 1 – Em que consistiu aquela «patriótica e sadia modificação da estrutura habitual do comércio de importação e distribuição»? 2 – Quais os «intermediários traficantes», os que «exploravam a desgraça», «os beneficiários egoístas das crises», «os escassos poderosos e egoístas traficantes»? 3 – Quais os casos de especulação havidos na colónia? É que, conforme expressava, as modificações feitas até ali em Cabo Verde na estrutura do comércio de importação haviam consistido em determinações locais sempre tendentes a impedir o mesmo comércio de importar mantimentos o qual apenas [pedia] que, pelo menos, o [deixassem] contribuir com essas importações, trazendo assim para a colónia maiores quantidades de géneros alimentícios e aceitando de boa mente tabelamentos, bem como toda a fiscalização que se [entendesse] necessária e dando-se por satisfeito com margens de lucro que [eram] das mais pequenas de todo o território português. Finalizava, perguntando como poderia haver especulação se houvesse abundância de produtos.
Como resposta a esta carta, o jornal revelava a seguir que em Abril do ano anterior, a uma reunião de comerciantes de S. Vicente, apenas haviam faltado a própria Sociedade Luso-Africana, João Benoliel de Carvalho e António Miguel de Carvalho, irmãos do autor da carta e Aguinaldo Vera-Cruz, seu cunhado, facto que merecera o reparo do presidente da Associação Comercial e que aqui reproduzimos quase integralmente, dado o seu interesse histórico: «O que se pretende, a meu ver, como ao de alguns aqui presentes, é acabar com a “Saga” – tratava-se do Serviço de Aquisição de Géneros Alimentícios, criado para defesa da vida dos habitantes de Cabo Verde em 1942 e depois melhorado com geral benefício, explicava o jornal – para surgir uma outra que julgo mais perniciosa para todos nós, suponho.» E continuava o presidente da AC: «Não nos devemos esquecer de que estivemos durante alguns anos, à mercê da Casa Khan (a Sociedade Luso-Africana, Lda., de que era sócio e poderoso elemento o sr. Heinrich Khan, conforme voltava a esclarecer o jornal, para facilitar a compreensão do texto pelos leitores), a qual só vendia a quem queria e depois de atender quem bem entendesse e, para cúmulo, dava-nos cinco centavos de lucro em quilo de açúcar. Deve tudo isto estar ainda bem presente na mente de todos os presentes… Vê-se, claro, o que se pretende: monopolizar em benefício de alguns a importação de um artigo que só por si mantém uma casa em desafogo, atento o volume do negócio.» Mas também lembrava o presidente que os comerciantes eram culpados da situação, por desentendimentos vários entre si. Se tinha de haver monopólio, antes este fosse da “Saga”. E rematava com uma frase significativa: «Não somos nós os únicos sacrificados… Nós ainda vivemos e alguns muito bem; e lembremo-nos de que na nossa terra muita gente, mesmo muita, não vive, vegeta, quando não morre de fome por falta de trabalho em que possa angariar um mínimo para viver.»
Numa era de enormes dificuldades para Cabo Verde, como foi parte substancial dos anos 40, é nítido que, para além da insignificante assistência estatal, sempre parca ou atrasada, havia internamente quem, segundo parece, prosperava no comércio local, apesar do ambiente de miséria que grassava nas ilhas. Para o relembrar, aqui ficam estas notas bebidas num bem informado e considerado vespertino lisbonense da altura. E também o sinal de alguma desunião, pois na contra-corrente do sentir dos comerciantes de Barlavento, a Associação Comercial e Agrícola de Sotavento apoiava a carta de Benoliel de Carvalho, da qual tivera conhecimento antecipado… Porém, estes dados históricos não nos impedem de sentirmos admiração pela firma de grande prestígio que foi e ainda é a Sociedade Luso Africana, Lda. Longeva de mais de meio século, recordamos por fim que teve entre os seus gerentes Filinto Jóia Martins, pessoa respeitada em São Vicente, que também foi presidente da Associação Comercial e Agrícola de Barlavento – o que, pelo menos, demonstra posterior pacificação entre as duas entidades mindelenses.
Temos aqui uma prova cabal da contribuição de Adriano Duarte Silva ao debate (denuncias ) sobre o problemática da seca e da fome nos anos 40, aquilo que se antevê como sendo uma oposição velada ao regime de Salazar, para quem teria dúvidas sobre a superioridade moral do senhor. Para além disso, nós que estivemos envolvidos com o governo de Cabo Verde no contencioso sobre a Casa Adriana é preciso não deixar passar a questão da demolição da casa para o esquecimento. Aquele monstruoso e feio mausoléu está aí para nos lembrar sempre. Lembro a todos nós que estivemos a liderar o processo, embora agora as nossa preocupações sejam outras hoje, que a possibilidade de ser ressarcido (Mindelo) por este enorme prejuízo patrimonial nunca pode prescrever, inclusivamente podemos um dia reconstruir este património e honrar a memória de ADS. Por outro lado já é tempo de se reabilitar politicamente o homem e enquadrá-lo no seu tempo e no espaço. Isto seria uma prova de maturidade política cultural e cívica. A CMSV devia tomar medidas neste sentido com devida pompa e circunstância.
ResponderEliminarJosé Fortes Lopes
Um dia virá, brevemente, e cidadãos idóneos da Ilha da nossa Terra farão tudo para que a justiça se faça para que o Dr. Adriano Duarte Silva seja reconhecido como um dos mais representativos e defensor de Cabo Verde, sua terra natal. Um dia virá em que os responsáveis pela vandalisação da Casa que deu como herança à Ilha do Porto Grande serão julgados e classificados no mais triste capitulo da nossa Historia.
ResponderEliminarQuer queiram quer não, a figura deste Ilustre de uma Ilustríssima Família nunca serà esquecida e os descendentes de quem tanto trabalha para a sua reabilitação continuará a lembrar a gratidão por esta figura ímpar.
Há gente que sofre a ressaca colonial como uma doença para o resto da vida, uma permanente caça às bruxas de índole cruzadista, tentando a todo o transe implementar uma filosofia de pan-africanismo radical como se a coabitação fosse um pecado e o ideal uma espécie de "apartheid" de sinal inverso ao do sul-africano...Não me parece que manter vivos os fantamas do passado, fora do seu tempo e do seu contexto hitorico-social seja legítimo, salvo em mentalidades que, elas próprias, vivem do passado e, por isso, são incapazes de construír o futuro...A sanha anti-Adriano Duarte Silva é disso paradigma e reveste-se de uma injustiça tão revoltante que ultrapassa as raias da insanidade! Acordem, corvos da desgraça e ajudem a cuidar dos cisnes do futuro!
ResponderEliminarComentário de Adriano Miranda Lima:
ResponderEliminarÉ verdade,um dia, quando assentar completamente a poeira que entorpece a lucidez do espírito, será feita justiça ao grande cidadão que foi Adriano Duarte Silva. Ou seja, quando a História se fizer com verdade, e sem atropelo à objectividade científica que a preside,libertando-se das paixões e peias conjunturais, Adriano Duarte Silva será finalmente resgatado do esquecimento a que o quiseram votar os que não conseguem separar o trigo do joio. A demolição inominável da sua Casa, contra a qual alguns cidadãos terçaram armas até à exaustão, é, infelizmente, a demonstração cabal de duas realidades distintas, qual delas a mais verdadeira: ainda não conseguimos fazer as pazes com a nossa própria consciência; há pessoas que nos governam que não lobrigam o verdadeiro alcance das suas responsabilidades. Portanto, ou a destruição da Casa foi um acto deliberadamente pensado, com um propósito determinado, ou ela foi simplesmente um acto gratuito, filho da ignorância e da incultura.
Abraço
Adriano