quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

[0310] Continuação do texto/entrevista de José Fortes Lopes

José Fortes Lopes
2ª Parte − A situação do Centralismo em Cabo Verde e as reformas necessárias: a sociedade civil, os partidos e o poder.

P − Muitos defendem que o centralismo político-administrativo era um mal necessário, no arranque da independência. Está de acordo?
R − A pergunta que se coloca, antes de mais, é porque é que o então partido no poder, o PAIGC, não equacionou a instalação da Presidência da República no belo palácio cor-de-rosa do Mindelo e/ou a colocação de alguns ministérios e secretarias de estado na ilha, para manter um mínimo de equilíbrio territorial (entre os dois grupos do arquipélago) no que concerne à distribuição dos órgãos de soberania. Tal medida teria proporcionado outro dinamismo ao conjunto nacional, mercê da articulação funcional e da concorrência salutar entre dois pólos históricos irradiadores de desenvolvimento regional e nacional. Repare-se que isso teria, antes de mais, gerado efeitos psicológicos favoráveis à boa harmonia nacional, na medida em que desarmaria qualquer pretexto para queixas reivindicativas de um tratamento mais igualitário. Além disso, e não menos importante, teria assegurado condições concretas para a fixação das populações de uma forma mais equilibrada, evitando a crescente assimetria demográfica que com o tempo se foi acentuando. Isto porque o investimento interno e externo passaria a não ter a Praia como destinatário exclusivo, e desta maneira outras portas seriam abertas para a demanda do emprego. Mas atenção que estamos a falar de uma medida de desconcentração de órgãos de soberania e não de regionalização. Mas ela teria sido a antecâmara de uma posterior regionalização, que se faria com um mínimo de rupturas e constrangimentos.
Será então caso para perguntar se haverá hoje num Cabo Verde democrático algum impedimento formal para que o Presidente da República resida em permanência no Mindelo ou para que alguns ministérios e secretarias de estado tenham nele a sua sede. As práticas centralistas associadas a conceitos leninistas do poder terão impedido a tomada de decisões óbvias e tempestivas olhando também para S. Vicente? Por que não se seguiu o exemplo dos Açores, onde os órgãos do poder soberano regional foram distribuídos pelas três mais importantes ilhas? Ou das Canárias, onde o mesmo poder regional se distribui no essencial pelas duas mais importantes ilhas?
A história desta ilha e a de Cabo Verde seriam bem diferentes se uma parte da máquina do Estado estivesse institucionalmente dispersa, ou, se quiser, desconcentrada. No meu entender, se não revertermos a marcha do centralismo em Cabo Verde, o país irá desertificar-se humanamente e culturalmente, no sentido em que se transformará num país unipolar, com um centro aspirador, aglutinador e sorvedor de tudo, e uma periferia amorfa. Se nada se fizer, estaremos a falar de outro Cabo Verde, não o caracterizado pela na sua diversidade humana e paisagística, decorrente da sua natureza arquipelágica. As assimetrias de que sofre Cabo Verde podem ainda hoje ser corrigidas com políticas acertadas de regionalização e de descentralização. É por isso que nos organizamos em movimento.

P − Em concreto, que vícios ou inconvenientes mais importantes aponta ao actual Estado centralizado?
R − São vários os exemplos do centralismo gritante em Cabo Verde, de que os cidadãos se reclamam com justa razão. Aponto-lhe apenas as seguintes situações elucidativas:
− Qualquer decisão, grande ou pequena, só pode ser tomada na Praia, face à ausência de qualquer delegação de poderes. Se virmos que a obtenção de um simples bilhete de identidade não se dispensa do escopo da capital, calcule-se então o que não será com actos mais importantes da administração pública;
− Os principais órgãos informativos, nomeadamente a rádio e a televisão estão excessivamente centralizados e estatizados, dando cobertura exclusiva à capital e a Santiago;
− Com efeito, toda a máquina do Estado está concentrada na Praia, de modo que qualquer assunto oficial ou do interesse directo dos funcionários públicos depende exclusivamente da capital;
− Com esta inércia, os serviços e empresas tendem a ser transferidos para a Praia, inclusivamente os que eram tradicionalmente associados ao Porto Grande do Mindelo e ao Aeroporto do Sal;
− E a consequência é o emprego escassear na periferia e obrigar a mão-de-obra qualificada, em geral, e os jovens licenciados, em particular, a procurá-lo na Praia, onde tudo se concentra, dinheiro, influências e oportunidades, provocando uma hemorragia demográfica e fuga de recursos humanos e cérebros das ilhas para a capital.
− De resto, é preciso estar-se na Praia para se ter boas conexões ou beneficiar das benesses do poder. Dito isto, veja-se o quão é esta situação desencorajante para quem não vive na capital e quer ver os seus negócios ou problemas particulares resolvidos em tempo devido e no estrito respeito pelas regras. Seria exaustivo mencionar a lista de reclamações do cidadão que, no seu dia-a-dia, se vê claramente prejudicado em relação a quem é residente na Praia.
Acresce a isto tudo um conjunto de sinais nítidos de reforço da tendência centralista, como: o lançamento da cidade administrativa, o paraíso dos burocratas, que vai custar, segundo fontes noticiosas, a bagatela de várias centenas de milhões de euros; a candidatura da Praia a um estatuto especial; a proposta para que os deputados residam na Praia.
Há quem veja nisto tudo, e denuncie, uma estratégia organizada, uma marcha para a constituição da chamada “República de Santiago”. Caberá aos poderes (incluindo partidos e elites do poder) desmentir estas acusações. Este é o panorama actual do país, a que contrapomos a inscrição da agenda da regionalização, como um desafio e uma oportunidade para Cabo Verde. A resposta sincera às propostas de regionalização e de descentralização será a prova de verdade que se impõe, um autêntico teste às vontades. Pretendemos que a regionalização seja acompanhada por um conjunto de reformas do Estado, que se traduzirão essencialmente na descentralização do poder e na desburocratização da máquina estatal, e, como consequência, no reforço da democracia e da co-participação dos cidadãos em tudo o que se relacione com a vida pública.

P − Estará o povo cabo-verdiano preparado para o desafio da regionalização e das reformas do Estado? Entenderá o alcance destas reformas?
R − Sim, com certeza. Efectivamente, a regionalização é uma matéria dotada de certa complexidade, pois tem a ver com uma nova forma de organizar o poder e o Estado, revestindo aspectos técnicos cuja compreensão pode ultrapassar as pessoas mais informadas, quanto mais o povo anónimo. Não é algo que possa ser tema de digladiação em disputas partidárias ou puramente ideológicas do género a que estamos habituados em Cabo Verde. A regionalização exige uma análise muito delicada da situação sociopolítica cabo-verdiana, do seu passado, presente e futuro, ou seja, requer uma visão mais alargada e de longo prazo, do género de semear para colher mais tarde. Para as pessoas que estão mais preocupadas com os problemas básicos do seu dia-a-dia, mais viradas para o imediato, a regionalização pode não dizer nada, à primeira vista. Mas se lhes forem explicados os seus benefícios directos, aí sim, vão entender e aderir. Por isso, nesta fase, todo o trabalho dos activistas consiste, primeiro que tudo, em apontar os malefícios da centralização na vida das populações e em enfatizar as vantagens da descentralização e da regionalização, designadamente: como seria melhor a vida do cabo-verdiano se o país fosse descentralizado, quais os benefícios para as populações de um poder local verdadeiro e forte. Pois, a regionalização não é um devaneio de mindelenses lunáticos, mas uma necessidade imperiosa e uma conquista para todos os cabo-verdianos. Todavia, penso que os mindelenses, devido a uma contingência do destino, pela sua vivência mais urbana, pela sua maior abertura ao mundo, pelas suas tradições de luta, de sindicalismo, está muito apto a perceber esta mensagem, e acreditamos que esta ilha será o palco da batalha da regionalização, como o foi outrora em momentos decisivos da nossa História contemporânea. Por isso, estamos a concentrar ali o foco da discussão, mas isso não invalida que amanhã apareçam um ou vários movimentos cívicos congéneres na Praia, como reacção e como catalisadores locais do debate que propomos ao país. O problema é que ainda não apareceram e esperamos que isso ocorra. Para além disso, associamos a este processo a consecução de objectivos cívicos de cidadania e de democratização de Cabo Verde, país jovem mas infelizmente já anquilosado politicamente. Apostamos em que a regionalização seja a 3ª vaga democrática que irá varrer o país, que transformará a actual democracia formal numa democracia local mais real e mais próxima dos cidadãos. Só a regionalização materializará a concretização dos princípios de autonomia, subsidiariedade e proporcionalidade, que enformam o espelho mais cristalino dos valores democráticos. Aliás, queremos ser membros de parte inteira no clube dos países democráticos, o que implica partilhar os valores e as práticas da dianteira civilizacional, como: o aprofundamento constante da democracia, a descentralização e a regionalização, entre outras conquistas.

P − E quanto à sinceridade e verdadeira convicção do JMN e do PAICV, assim como do Carlos Veiga e do MPD, e mesmo de alguma elite residente na Praia, relativamente a este processo, tendo em conta algumas contradições já vindas a lume? É que o JMN já tinha manifestado a ideia de um debate e mesmo a abertura de um livro branco, o que por enquanto não passou de mera intenção. Portanto, em que fase de ponderação acha que estarão o governo e os partidos quanto a este processo?
R − Até prova em contrário, acreditamos nas promessas de JMN de abertura de um debate e da abertura de um livro branco. Só que já la vão 6 meses, por enquanto “nem fum nem mandod”. Há um espaço aberto de diálogo e a oportunidade única para um debate profundo sobre Cabo Verde, as reformas a implementar no Estado e no país. Todavia, parece que há neste momento uma atitude táctica, de avaliação e de posicionamento no terreno. Poderão estar os partidos a observarem-se uns aos outros, para ver quem dá o primeiro tiro, ou então estarão a municiar o seu arsenal, de ideias, claro. Ouvi falar de declarações e posições de Carlos Veiga favoráveis aos nossos propósitos e tudo indica que ele é pró-regionalização. No entanto, compete ao governo, ao partido que o suporta, assim como à oposição, responder aos desafios que os movimentos da sociedade civil estão a lançar. Estamos a aguardar serenamente a resposta do governo e dos partidos. Que saiam das suas trincheiras. Todas as cartas estão na mesa.

P − O PAICV propõe uma Regionalização Administrativa e o MPD propõe uma Ilha Região sem especificar a sua natureza concreta. Como interpreta isto?
R − Todos os defensores da regionalização têm convidado o governo a não enveredar pela via da regionalização administrativa. Se tal for o caso, o que estão a propor é algo minimalista que manterá o centralismo intacto, quando o centralismo é a raiz do mal e a causa da nossa luta. A ideia de governadores nomeados não funciona, visto ser uma solução ultrapassada, do passado, uma experiência já testada em Cabo Verde e que não resultou, precisamente porque não passava de um simulacro de reforma. Se querem manter um diálogo aberto, não se pode usar expedientes, truques, ou estratagemas para distrair ou constituir manobra de diversão em relação a um tema que é sério. Por outro lado, a proposta do MPD sobre a lha Região é coerente com o que tem anunciado, mas nunca explicitaram o conteúdo do que pensam sobre a regionalização. Os barões deste partido poderão querer também uma regionalização minimalista? De resto, há uma grande dificuldade em Cabo Verde de as pessoas e os partidos definirem ou clarificarem o seu pensamento em muitas matérias atinentes ao futuro do país. Mas aqui o que está em causa é um princípio fundamental, a reforma do Estado e não expedientes administrativos dilatórios. Portanto, a ideia da regionalização Administrativa será combatida. Nada de delegados do governo, autênticos paus mandados. A regionalização terá de corresponder à criação de mais um nível de democracia local, pelo que terão de existir órgãos regionais democraticamente eleitos (deputados regionais e Presidente) pelas populações.

P − Quais são os principais objectivos, metas, timings, calendários do movimento?
R − Numa primeira fase, contamos com o aprofundamento da mobilização cívica em torno da regionalização, a ocorrer não só em S. Vicente como em todo o país e na Diáspora. Todavia, esperamos que o governo, os partidos e a sociedade civil representada por nós e vários outros parceiros, iniciem um diálogo e um debate profundo já no primeiro trimestre de 2013 sobre o tema “Regionalização de Cabo Verde, a Reforma do Estado”. Deverá haver, ao longo de 2013, várias reuniões formais e informais tanto a nível dos movimentos de cidadania como com o governo e os partidos. Acertar as metodologias de trabalho e os grupos de reflexão e de trabalho. Esperamos fixar a meta de 2013 para concluir a discussão sobre a Reforma, já incluindo o modelo de regionalização e seu calendário de implementação, assim como o conjunto de reformas de que o país precisa. Em paralelo, deve-se proceder à desconcentração da máquina do Estado e sua a realocação em S. Vicente e noutras partes do arquipélago. Por exemplo, porque não ter ministérios localizados em S. Vicente ou porque não instalar a Presidência da República em S. Vicente?

P − Haverá necessidade de uma reforma constitucional?
R − Sim, acredito. Este assunto já é em si bastante técnico, mas tem uma forte componente política. Deixaremos os aspectos mais técnicos para uma discussão aprofundada por especialistas, que, eles sim, é que deverão apresentar aos políticos e aos representantes da sociedade civil as soluções baseadas em estudos aturados e necessariamente com envolvência multidisciplinar. As equipas de trabalho têm de incluir, por exemplo, juristas, constitucionalistas, geógrafos, economistas, etc. Neste momento, estamos a tratar da política da regionalização, que é uma questão política prioritária. Mas como deixou bem claro o Presidente da UCID, Lídio Silva, na mesa redonda recém-realizada em S. Vicente, a regionalização vai necessariamente requerer uma alteração da Constituição, pelo que temos que ter um olho na política e outro nas questões técnico-jurídicas. De qualquer maneira, o peso de cada uma das ilhas vai ter de ser discutido, pois reduzir a democracia a uma aritmética dos votos é reduzir Cabo Verde, que é uma realidade arquipelágica, e como tal diversa e rica em sensibilidades, a uma expressão demasiado simplificada e pouco congruente com as suas potencialidades humanas. A igualdade de direitos de oportunidade de acesso tem de ser garantida a todos de acordo com a capacidade e inteligência de cada um e não em função da ilha de origem, filiação partidária ou outros factores diferenciadores. Daí que seja bem-vinda a ideia que atribuem a Onésimo Silveira na criação de um Senado ou órgão similar, onde o peso de cada ilha estaria proporcionalmente representado, algo um pouco inspirado no modelo federal americano, de modo a promover um reequilíbrio democrático em Cabo Verde, um 2º nível de democracia. Hoje em dia, o facto de o princípio da igualdade estar inscrito nas leis democráticas não implica, por si só, o seu respeito integral, como bem sabemos. O conceito de “discriminação positiva” das minorias é cada vez uma realidade incontestável nas democracias ocidentais avançadas, pela percepção de que se tem de ir para além da democracia dos números, que, sendo embora o embasamento formal desse regime político, não pode contudo restringir o seu leque de virtudes.
Uma democracia simplesmente formal, impossível de aperfeiçoamento, sem níveis nem mecanismos suficientemente flexíveis de controlo, de fiscalização e de balanceamento, sem ‘actores’ democráticos suficientemente formados e activos, e limitada a uma leitura numérica, e se os agentes democráticos se acomodarem a algo considerado acabado e impassível de aperfeiçoamento, pode-se transformar paradoxalmente num sistema autocráticos. Por todas estas razões enunciadas proponho que este assunto seja escalpelizado em cima na mesa, no debate que se espera alargado, profundo e participado.
(Continua)

1 comentário:

  1. Não há dúvida de que a regionalização é o único caminho que resta à ilha de S. Vicente para que ela retome a via do progresso. A tarefa é árdua e é difícil, uma vez consumada a concentração maciça de todo o Estado numa ilha. Um Estado que se tornou o vórtice de toda uma dinâmica de desenvolvimento e progresso, cujo inconveniente, e grave, é precisamente ela estar capturada por uma única ilha. Situação esta à revelia do que a boa política aconselharia em nome dos mais elementares princípios tendentes à igualdade de oportunidades e de condições entre todas as ilhas.
    Desmontar a monstruosa realidade é atentar contra os interesses, concentrados na capital, das principais forças políticas, precisamente quem, em primeiro lugar, devia ser obreiro de reformas justas a bem do interesse público. Portanto, não se ignore que uma reforma política profunda vai provocar o desmoronamento dos castelos senhoriais, na medida em que a regionalização implica a fragmentação das suas forças, e desde logo a emergência de actores locais e porventura desligados de inquinadas fidelidades partidárias. Haja consciência de que não será fácil obstar a certos atavismos, mas haja também a noção de que a cidadania deve emergir em toda a sua pujança e pureza para levar de vencida o que for de justiça.
    Muito bem, José!

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