M. Brito-Semedo - Foto "A Semana" |
1. A escolha de um título de uma obra nunca é inocente e procura-se que seja a sua identidade, na sua expressão mais reduzida. Ele é algo sério, ponderado, propositado e que se quer significativo. E um título no nosso crioulo genuíno de SonCent chama a atenção, predispõe qualquer um, provoca curiosidade e causa alguma empatia. O Dr. Arsénio Fermino de Pina, que é um marinheiro de muitas viagens, que é como quem diz, autor de vários livros, sabe disso e é hábil nas suas escolhas de títulos. São disso exemplo, Uli-me li! (1999), Fi d’ cadon! (1999), Passadores de Pau (2009), Quel Canapê de Três Pê (2010), Ês ca ta cdi! (2011).
O título escolhido para esta mais recente colectânea é, na verdade, a combinação de títulos de duas de suas crónicas, Adeche! [1] – escrita entre 2010 e 2012, ao se ter conhecimento da criação e próxima aprovação do Estatuto Especial para a Praia (pág. 19-43) – e Vendilhões em Vários Templos – escrita em 2011, na qual o autor fala sem papas na língua pela boca do Frei Capuchinho Fernando Ventura, reportando-se e fazendo paralelo com um acontecimento narrado no Evangelho de São Mateus, capítulo 21, versículos 12 a 16, sobre o episódio da purificação do Tempo ou de quando Jesus expulsa os vendilhões do Templo (pág. 87-96).
Detenho-me nesta crónica pelo paralelismo estabelecido e por ser, segundo o seu autor, uma “imagem que nos anima, nos tempos que correm”.
A verdade é que o mundo do primeiro século não era diferente do actual: havia homens ricos e pobres, virtuosos e criminosos, livres e escravos.
O templo em Jerusalém constituía-se em um lugar de peregrinação para todos aqueles que confessavam o judaísmo como sua religião. Era um lugar visitado por pessoas e comunidades de todas as nações. O templo (que já era o segundo) possuía quatro pátios. O primeiro era o pátio dos gentios, o qual era ocupado pelos mercadores que realizavam trocas (câmbio) de dinheiro e vendiam os animais.
Os frequentadores do templo juntamente com os seus líderes religiosos haviam transformado o templo em "casa de comércio" e em "casa de privilégios” e a crença, uma “religião de conveniência”.
Historiadores afirmam que os movimentos comerciais relacionados ao templo eram monopolizados pelas famílias dos próprios sacerdotes, Anás e Caifás, os quais recebiam lucros provenientes da venda de animais para o sacrifício e também do câmbio de dinheiro envolvido nos tributos do templo. Como se não bastasse, existia uma disputa cerrada pelo poder, a exemplo dos fariseus e saduceus que eram partidos políticos rivais. É, pois, diante desse cenário que Jesus se indigna e expulsa do templo comerciantes e cambistas dizendo: “A minha casa será chamada casa de oração”.
Com esta composição de título – Adeche! e Vendilhões em Vários Templos – está dado o mote e o tom e definidas as linhas com que o autor vai coser as suas crónicas. E, diga-se, não dá ponto sem nó, porque há uma de tomada de posição e o exercício de uma cidadania activa procurando “influenciar pessoas, bulir com elas, espicaçá-las, mas apenas para as ajudar a pensar por si próprias e a agir” (pág. 10)!
2. Produzidos com uma finalidade utilitária e pré-determinada, essencialmente para serem veiculados na imprensa, seja nas páginas de uma revista seja nas páginas de um jornal, estes textos têm uma estrutura de crónica. E o facto de a crónica ser publicada no jornal já lhe determina vida curta, pois, à crónica de “hoje”, seguem-se muitas outras nas edições seguintes.
Abro parênteses para lembrar que existem semelhanças entre a crónica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter, o cronista inspira-se nos acontecimentos diários, que constituem a base do seu texto. Entretanto, há elementos que distinguem um tipo do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um toque próprio, incluindo elementos como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém. Com base nisso, pode dizer-se que a crónica se situa entre o Jornalismo e a Literatura e o cronista pode ser considerado o “poeta dos acontecimentos” do dia-a-dia.
A crónica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado na primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está em diálogo com o leitor. Isso faz com que a crónica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver o seu estilo e ao seleccionar as palavras que utiliza no seu texto, o cronista está a transmitir ao leitor a sua visão do mundo. Ele está, na verdade, a expor a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam. Geralmente, as crónicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária, o que contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba por se tornar no porta-voz daquele que lê.
3. Este trabalho, que o Dr. Arsénio Fermino de Pina ora dá à estampa compreende um conjunto de 50 textos, produzidos de forma sistemática entre 2011 e 2012, publicados com intervalos regulares nos jornais da praça, em suporte de papel e on-line. Tal tipo de periodicidade e de suporte faz com que os textos produzidos sejam consumidos no imediato ou num tempo limitado, sendo, por isso, com uma duração e uma actualidade efémera. São, contudo, um testemunho vivo sobre a actualidade de um momento ou de uma época, quando vistos de uma forma sincrónica e dinâmica, já que datados. Daí que, recuperá-los e guardá-lo em formato de livro é um trabalho meritoso em todos os sentidos.
Grosso modo, pode-se considerar que estas crónicas estão organizadas em três grandes tópicos: [i] leituras de livros de publicação mais ou menos recente [ii], entrevistas de personalidades insuspeitas em matéria política, económica e financeira, que a comunicação social raramente aborda, e, ia dizer sobretudo, [iii] a proposta do Movimento para a Descentralização, Regionalização e Autonomia de Cabo Verde.
Adeche! Vendilhões em Vários Templos, pelos temas abordados e pela forma frontal como as posições são assumidas, é um livro para ser lido com calma, aos bochechos, com a vantagem de estar escrito num português escorreito e algum sabor regional, que lhe dá um certo tempero, mesmo ao nosso paladar.
Adeche, vocês esperavam que eu viesse cá analisar os textos? Bocês ta fcá que vuta [2]! Façam o favor de fazer a vossa leitura pessoal. Esta foi a minha. Obrigado!
[1] Exclamação tipicamente mindelense, de pasmo, espanto.
[2] Expressao de S. Vicente que significa "Vocês ficam com vontade".
Este texto só podia ser de um menino de Chã de Cemitério. Aahaha!!!
ResponderEliminarO Prof. Brito Semedo é mais um desses meninos que nos demonstra a impossibilidade de acabarem com o nosso "ser de cabo-verdiano" ou seja, gente sem complexo aberto a toda cultura que seja construtiva.
Esta prosa é mais um convite a ir depressa à livraria buscar o seguimento de "Es ca ta cdi" e outros tantos da lavra do Dr. Arsénio de Pina.
Só quem não foi educado na cultura do nosso tempo é capaz de repudiar a sua origem.
Obrigado, Prof. Brito Semedo, Parabéns Dr. Arsénio de Pïna
O amigo Brito Semedo entende, entre muitas outras coisas doutas, de templos. Foi a pessoas ideal para a apresentação da obra do companheiro Arsénio. Excelente
ResponderEliminarLi com gosto este texto, assim como o do autor do livro. O Djack conseguiu assim levar-nos de bote, com valentes remadas, atá à Praia de Bote e dali até ao salão do velho Gil Eanes, onde decorreu a apresentação do Adeche. Obrigado, Amigo!
ResponderEliminarEssa é a missão do PRAIA DE BOTE. Nem mais nem menos...
ResponderEliminarBraça com todo o gosto,
Djack
Gracias, Amigos! O mérito do furo jornalístico é do Djack e achei que fazia sentido o meu texto sair no Praia de Bote primeiro e só depois ficar na Esquina do Tempo a "guitar" [espreitar] os passeantes.
ResponderEliminarBraça a todos.
Gritante o texto de Brito Semedo sobre as crónicas do Arsénio. Obrigada pela partilha. Abraço a todos, Brito Semedo de Praia de Bote.
ResponderEliminarCorrijo, Brito Semedo e bloguistas de Praia de Bote.
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