sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

[0663] Um conto de Natal

Adriano Miranda Lima
UMA LUZ DE NATAL NO ALTO DO MONTE (1) - Veja estatística do dia em que este conto saiu, no final do mesmo

Conto de Natal, em homenagem à mulher anónima cabo-verdiana que ao longo dos tempos lutou arduamente para criar os seus filhos, e às vezes até netos, com honradez e dignidade.

Nha Sabina, mulher de rija têmpera, tinha da vida uma experiência agridoce, na sua maneira peculiar de sofrer as agruras do quotidiano sem hipotecar todas as reservas do seu ânimo. Os seus cinquenta e cinco anos de idade ensinaram-lhe desde cedo que o poder da imaginação logra por vezes autênticos milagres no encontro de novos estímulos para a vida. Por vezes, bastava-lhe a simples contemplação das luzes que bruxuleiam à noite nos mastros das embarcações estrangeiras fundeadas na baía para logo sentir o palpitar do mundo que se abre para lá da imensidão líquida do oceano. E é quando lhe vêm à lembrança os filhos da terra que saíram para longe a bordo de vapores estrangeiros. Por onde andariam, que destino deram às suas vidas? Este e outros devaneios do género transformam-na, com frequência, em avatar da vida fervilhante das grandes cidades que uma ou outra vez viu estampadas em coloridos postais. Mas ela logo se devolve, satisfeita consigo própria e com o pouco que tem, à pobreza honrada do lugar em que exerce a soberania do seu viver. A sua pequena casa, modesta, fica naquela zona do Monte junto à Muralha (2), permitindo-lhe um convívio permanente com a visão do mar. Não se poderá dizer que a sua habitação seja um tugúrio porque ela sabe mantê-la caiada e asseada, digna na elementaridade do seu recheio, e até mesmo o seu quintalinho atrás, palco da sua labuta diária, é um primor na arrumação do fogão de carvão de pedra, do pilão e do tambor de água de Madeiral. 

Este dia é véspera de Natal e seria mais um igual aos outros, não fosse o sonho que ela vinha acalentando e que graças ao seu Deus queria ver realizado logo à noite. Como sempre, levantara-se aos primeiros alvores da madrugada para pilar o milho destinado aos bindes de cuscuz que garantem o seu sustento, mais o do seu netinho Daniel de seis anos. Afora isso, concorrem também para o seu magro orçamento familiar os pastéis de milho e peixe com malagueta que fornece à mercearia de nho Ventura. Este, que aprecia o seu cuscuz, costuma exclamar mal ela franqueia a porta da mercearia segurando o recipiente com a ainda fumegante iguaria: “Sabina, o aroma do teu cuscuz lembra-me sempre um campo de milho em flor.” Esse piropo deixa-a feliz e satisfeita com o que faz.

Foi precisamente numa prateleira daquela mercearia que o sonho de Sabina começou a ganhar forma. Há muito que desejava ver-se livre daquela lamparina que mal lhe alumiava a casa à noite. Pensava ela: “isto é coisa com fraco jeito, fumega exalando um cheiro que já não suporto, e ainda por cima não me dá aquela luz que entra pela alma dentro. 

E por isso aquele candeeiro de vidro brilhante como cristal, exposto no estabelecimento de nho Ventura, desafiou-a durante os últimos dois meses. Mulher de imaginação viva, seduzia-se com as figurinhas gravadas a estilete de aço no vidro do candeeiro, que no seu entender só podiam ser obra de mão carinhosa.

E foi assim que começara desde há algum tempo a amealhar um escudo hoje, outro amanhã, e por vezes valores mais avultados quando o dia lhe corria de melhor feição. Arranjara uma antiga lata de conserva com uma ranhura e dela fez o cofre que haveria de realizar o milagre do seu sonho natalício da noite. Mas não seria só isso. A Sabina queria dar um “bedje” (3) de Natal ao seu Danielim, o neto cuja mãe a morte levou a seguir ao parto. Mãe solteira que foi da sua saudosa filha, passou a sê-lo também do seu netinho, com um desvelo extremo, prometendo criar e fazer dele um homem de bem, com a ajuda de Deus e do seu trabalho honesto. 

O Danielim, de seis anos de idade, vinha, pois, olhando embevecido, desde há tempos, para os carrinhos de arame que saíam das mãos habilidosas de nho Sarafe Funileiro. Com formato de automóvel ou de camioneta, aqueles carrinhos eram um deslumbre para a meninada e até os mais velhos se quedavam a admirar a perfeição da sua construção. Reduzidos a arame vulgar, de espessura variável com a natureza de cada um dos seus componentes, pareciam quase transparentes na sua vaga substância material, e a funcionalidade das suas rodas de uma circunferência precisa, com o respectivo mecanismo articulado de direcção, emprestava ao brinquedo a aparência de um estranho e enorme insecto animado. Pois, o Danielim ia ter logo à noite um “bedje” de Natal que ia regalá-lo...

Quando o Sol se pôs, a Sabina já estava em casa a esfregar as mãos de contente por ter realizado um dia de venda lucrosa. Compôs a sua mesa com especial esmero e nela dispôs os ingredientes da ceia natalícia, não coisa de gente rica, mas algo sempre melhor e mais composto do que no comum dos dias. Depois, quando já escurecia, foi buscar o candeeiro dias antes comprado a nho Ventura, seu “bedje” de Natal. Atestou-o de petróleo, aguardou que a torcida se embebesse do combustível, nivelou-a o suficiente, riscou um fósforo e chegou-lhe a chama. O compartimento foi subitamente inundado de uma luminosidade nunca antes vista na sua casa de único compartimento. Ela elevou a torcida ainda um pouco mais, na ânsia de atingir o máximo da incandescência, e de repente todo o interior da habitação pareceu ganhar tons caleidoscópicos, realçando-se os pormenores antes ocultados pela luz baça da antiga lamparina. Convidou a sua amiga e vizinha Josefa, viúva e a viver só, para a ceia. E a Josefa teve logo este espontâneo desabafo, mal entrou: “Sabina, isto hoje está outra coisa, mulher. É como se a luz deste candeeiro lavasse e renovasse tudo, incluindo os nossos corações”. A Sabina não coube em si de contente com o reparo da amiga. 

Cearam e conversaram longamente sobre o seu passado de raparigas novas, relembrando a dureza da vida de “mulher fêmea” em Cabo Verde, com as suas artimanhas e traições, mas também com as ilusões que se douram e renovam com a luz do sol nascente de cada dia. A cumplicidade entre a duas mulheres prosseguiu noite dentro até que o Danielim começou a dar sinais de sono. Foi quando a Sabina lhe fez a surpresa com o seu “bedje” de Natal, que o petiz não esperava dado o sigilo bem guardado. O menino deu um pulo de satisfação e fez-se logo chofer exímio da sua viatura, pois já se tinha habilitado com carta de condução mediante a simples observação do que vira fazer a um outro menino dono de idêntico produto saído das mãos de nho Sarafo. Começou a rodar o volante em curvas e mais curvas no chão da habitação, buzinando vez por outra: aguuuga, aguuuga. Radiante com a felicidade do seu neto, a Sabina a esmo foi observando as curvas que o brinquedo ia delineando nas suas mãos, umas mais largas e outras mais apertadas. E então comentou para a Josefa: “Vê tu, amiga, que a vida das pessoas é feita de curvas e mais curvas, como as que faz este carrinho de arame; tanto vale ser pobre ou rico, que a vida é, assim mesmo, feita de curvas, mas convenhamos que as do pobre são as que riscam mais fundo e deixam marcas inapagáveis”. A Josefa concordou, conhecedora das divagações do espírito da sua amiga, que muitas vezes não conseguia decifrar. 

Horas depois, o Danielim já dormia o sono da inocência e a sua amiga se tinha despedido. Lá fora silenciaram-se finalmente os ruídos da noite festiva, sempre mais pródiga de eflúvios do que o normal, mas para os lados da Praça Estrela ainda se ouvia estalejar um ou outro foguete natalício. Sabina ficou acordada mais algum tempo, sozinha com os seus pensamentos, inalando sofregamente a luz do seu novo candeeiro, sentindo um renovo de alma, como que banhada por outra luz, a luz divina.

Tomar, Dezembro de 2013
Adriano Miranda Lima

(1) A palavra Monte reveste aqui um duplo significado, simultaneamente real e metafórico. É que, para quem não saiba, Monte era, ao tempo recuado em que se quer situar este conto, um bairro periférico e pobre do Mindelo, e a designação se deve ao facto de ser uma zona de cota alta relativamente ao núcleo original da cidade. 
(2) Muralha foi o nome por que ficou conhecida a parte do lugar do Monte separada das antigas instalações da Companhia Miller’s por uma encosta alta e abrupta cuja consolidação foi solucionada com a construção de uma enorme parede. 
(3) “Bedje” é o termo em crioulo de S. Vicente com o significado de prenda.


9 comentários:

  1. Li, há já muitos anos, um conto de Antonio Aurélio Gonçalves (Nhô Roque), que tive, depois, o grato prazer de comentar encomiásticamente no programa Revista Sonora que produzia para a Rádio Barlavento que, vá-se lá saber ao certo porquê, me veio à lembrança mal comecei a ler estoutro, do amigo Adriano...Será que porque são ambos sobre mulheres humildes, os seus dramas e os seus sonhos? Será que porque contam histórias de vidas sofridas e do pouco que é preciso para lhes dar alguma luz? Será porque ambos se desbobinam na penumbra das fronteiras da "morada"? Será porque ambos denotam uma extrema sensibilidade dos autores e a mesma forma elegante e noibre de nos colocar ao lado das suas personagens e viver com elas as suas dores e os seus sorrisos? Só sei que me senti duplamente saciado e honrado por ter lido ambos! Obrigado!

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  2. Um excelente texto relatando este quotidiano crioulo, com um pouco mais de luz graças ao candeeiro do pai natal que iluminou esta Noite de consoada na casa de Nha Sabina. Um retrato perfeito da vida de um mindelense morando fora da 'morada', para lá da Praça Estrela. Bravo Adriano por nos iluminar este dias trazendo esta luz crioula a este Natal soturno ensombrado pela crise. Um feliz Natal para ti e todos os leitores de Praia de Bote e muita inspiração para 2014 para escreveres mais deliciosas crónicas.

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  3. O conto do Adriano fez-me viver passagens felizes da minha meninice, particularmente no largo de Chã do Cemitério.
    Se nunca tive um carrinho de arame que os meus amiguinhos tinham, tive em contra partida automóveis fabricados pelo meu tio, carpinteiro de profissão que, muitas vezes utilizava as rodas do Telégrafo (1) que vinham da Inglaterra.

    Curiosamente, o autor fala de lugar onde vivi algum tempo (Rua de Muralha). Também, coincidência ou não, um dos seus protagonistas tem nome (Ventura) de um caixeiro de Santo Antão onde ia comprar géneros. Mas as visitas mais frequentes que fazia à sua lojinha eram para - às escondidas do meu pa i- comprar tabaco para o meu tio.

    Bons tempos ora relembrados neste saboroso conto de Natal.

    Já agora,

    Que o vosso Natal seja Alegre

    Abraço

    V/

    (1) As rodinhas eram célebres e as crianças iam pedi-las porque não eram recicladas. Quando acabava um rolo de fita de papel para as màquinas de telegrafia, deitavam-nas fora. Ou melhor, guardava-nas para a criançada.

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  4. Os meus agradecimentos aos que até agora comentaram esta crónica/conto de Natal (somos sempre os mesmos comentadores, ou quase). A ideia foi lembrar que a mensagem natalícia pode conter-se nos sentimentos e nas coisas mais simples, desde que sabiamente iluminadas com o que temos de melhor. E de facto, José, precisamos da luz da clarividência na nossa terra, para abrir os caminhos do futuro que continuam nublados de dúvidas e incertezas. E a nossa gente mais humilde, na simplicidade da sua grandeza, pode dar lições aos políticos e intelectuais que se julgam detentores da verdade. No mínimo, não se pode fazer tábua rasa dos seus anseios e sentimentos.
    Como dizes, Zito, nho Roque era um homem de fina sensibilidade humana e literária. De uma forma ou outra, somos sempre influenciados por ele e outros que foram mestres exemplares da nossa educação e formação. A mim só me honra e estimula entrar no imaginário daquele meu antigo professor, fiel reprodutor que ele é do imaginário daquela nossa gente boa e humilde, sempre esperançosa de um futuro melhor. Sinto-me lisonjeado com as semelhanças que assinalaste, mas elas não passam disso.
    É claro, Val, que o que escrevemos tem sempre alguma coisa a ver com as nossas memórias pessoais. E elas são matizadas com tudo o que de bom e mau constituiu a vida colectiva do nosso povo, uma vida de pobreza e dificuldades que nos tocaram a todos transversalmente. Penso que isto é um estigma psicológico que devia ser uma severa advertência aos que actualmente ostentam na nossa terra formas de vida ostentosa que são desproporcionadas com a realidade do cenário social cabo-verdiano.
    Um Feliz Natal e um Bom Ano de 2014.

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  5. Eis uma maneira de terminar o ano em beleza, no Pd'B. O conto de Adriano Miranda Lima, assaz interessante pela forma e pelo conteúdo (definitivamente mindelense) já não prova nada, dado que de há muito sabemos que ele escreve muito, mas mesmo muito bem. Tem apenas um defeito, o rapaz. Não há meio de pensar em publicar em papel as prosas que vai produzindo e que assim de certo modo se perdem. É que se o que sai na Internet é útil (quando bom, como neste caso), o que é dado à luz no papel ainda é insubstituível.

    Grande braça para o mais cabo-verdiano dos nabantinos,
    Djack

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  6. É incrível como conseguimos passar da Praia de Bote para a Esquina do Tempo, blogues irmãos, sempre evocando e exaltando SonCent. Mas mesmo entre irmãos há ciumeiras :-). Assim, cá ficamos à espera que o Colaborador e Amigo Adriano Lima apareça por aqui. Nós já nos contentávamos com uma visita pelo Dia de Reis :-). Um abraço e votos de Feliz Natal pa tud Criton.

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  7. Passei no blog do (já amigo) Zito e encontrei este Praia do Bote. Logo o titulo do post me encaminhou... e aqui estou encantada com que li. Mais parecia eu estar a ver toda a cena e personagens ao natural, fruto da forma como está escrito. Enorme sensibilidade e gôsto, num tema tão próximo da realidade. Mas também não duvido da existência de mais valorosas Sabinas. Grandes Mulheres! E tantas vezes passando despercebidas...

    Gostei muito, voltarei. Fiquei seguidora.

    Feliz Natal!
    Dilita

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  8. Este conto, na esteira dos mestres Baltasar Lopes e António Aurélio Gonçalves, reproduz lembranças da infância do Adriano (Didi, para os amigos) no Monte, onde viveu a infância, na casa em que veio a viver e morrer o maior compositor de mornas, o imortal B.Leza. A rua de Muralha, que na altura possuía umas escadas e donde se podia assistir ao movimento de entrada e saída dos barcos no Porto Grande, hoje perdeu o seu espaço visual devido a construção de duas estúpidas torres que a Câmara Municipal nunca deveria ter autorizado. Nessa rua de Muralha nasceram dois irmãos meus – Manuel e Miguel. E a lojinha de Nhô Ventura, santantonense de gema, especialista no seu pequeno comércio de aproximação, baseado em pequenos créditos mensais e frente ao largo John Miller, é uma realidade que resiste ao tempo. A imagem matriarcal da avó, que de braços abertos recolhe as dores e as alegrais dos filhos e netos, é uma boa lembrança que partilho, pois vivi com a minha avó. Um certo matriarcado existiu sempre em Cabo Verde, dando à mulher, mãe ou avó, uma certa responsabilidade, para não dizer o papel de chefe de família. E a lembrança do netinho e o seu carrinho de arame recorda-me dos construtores dos tais carrinhos de arame que se desfilavam todas as tardes quando nos encontrávamos para brincar. Eu dava preferência ao meu naviozinho de lata que levava à Cova d’Inglesa com o qual sonhava passar um dia o mar de canal e chegar à França, país donde vinha os meninos…
    Feliz Natal meu caro Didi.

    Abraços do colega e amigo de infância,

    Luiz Silva

    Paris, 24/12/2013

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  9. Por ter já nascido e vivido sempre fora de Cabo Verde, não tenho a vivência que me permita ter referências próprias sobre esta descrição da mãe/avó/chefe de família que tem sido a mulher cabo-verdiana. Porém, identifico nesta narração o que de Cabo Verde me foi contado pelos meus pais, avós e tios que, ao partirem para a Terra Longe, levaram consigo as suas vivências que se tornaram memórias e com estas nos incutiram o Sentir cabo-verdiano.
    Um lindo texto, cheio de ternura e coragem maternal. Gostei muito!

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