sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

[0703] O corsário Francis Drake na Ribeira Grande de Santiago - Mais um valioso texto de Nuno Rebocho

Nuno Rebocho
Texto publicado inicialmente em CIDADE VELHA 1462.

Como se sabe, as investidas de corsários a Santiago, principalmente contra Ribeira Grande, centraram-se sobretudo na segunda metade do séc. XVI: “A partir da década de 1560, a concorrência cada vez mais acentuada de mercadores estrangeiros que inundam a Guiné com um diversificado leque de produtos, deprecia gradualmente o algodão produzido em Cabo Verde e usado pelos moradores no resgate na costa africana” (in História Geral de Cabo Verde). Os corsários foram uma das armas usadas nesta “guerra comercial” visando fragilizar o domínio de Portugal e Espanha nos territórios atlânticos, dado que as potências do norte da Europa não reconheciam o chamado mare clausum resultante do Tratado de Tordesilhas e punham em causa o poder da Santa Sé. Em consequência, “o arquipélago entra numa nova fase em que os sistemas de desgaste do modelo inicial se tornam evidentes, culminando na crise que se abate sobre a sociedade insalubre já nos fins da década de seiscentos” (“História Concisa de Cabo Verde”, coordenada por Maria Emília Madeira Santos, IIPC).

Francis Drake, por Jodocus Hondius
Há uma certa tendência da literatura historiográfica, sobretudo cabo-verdiana, para desvalorizar e menosprezar a actividade dos corsários, considerando-a uma acção marginal. Tal está longe de corresponder à verdade dos factos: tendo em conta que ela afectava bastante a circulação de riqueza atlântica, cuja defesa era então muito frágil, envolvendo proeminentes figuras da história europeia, conclui-se facilmente que esta acção estava longe de ser marginal e muito contribuiu para a decadência do poder de Ribeira Grande de Santiago, nessa altura o rico entreposto do tráfico de escravos. Os golpes desferidos pelos corsários, sendo perniciosos para Lisboa e Madrid, eram um poderoso instrumento das cortes que se lhes opunham.

No arquipélago de Cabo Verde vingava então uma urbe que se tornara num importante entreposto escravocrata: “o local escolhido para o povoamento da vila era um vale profundo e verdejante que era rasgado por duas ribeiras que desaguavam no mar, formando uma enseada com boas condições para a instalação de um porto que facilitasse as ligações com o exterior. 

Ribeira Grande de Santiago, dita Cidade Velha
“No período compreendido entre a instalação do núcleo de Ribeira Grande até aos finais do séc. XV, o aglomerado cresceu e desenvolveu-se em torno do seu porto e actividades comerciais dos seus moradores para, em 1497, já contar com uma Câmara a funcionar (ainda que a localidade só viesse a contar com o título oficial de vila em 1513)” (Fernando Pires, Da Cidade da Ribeira Grande à Cidade Velha de Cabo Verde).

Em consequência da carta régia de 12 de Junho de 1466, a actividade de comércio e exploração a partir de Ribeira Grande (e tal incidia sobre o tráfico de escravos) estendia-se desde Arguim à Serra Leoa, confinando-se esta actividade à zona dos rios da Guiné por outra carta régia de 1472.

Aparecem os corsários

Considerava-se que havia corsaria quando os golpes eram desferidos como actos reconhecidos e mandados executar sob ordens de um qualquer governo, recebendo então eles para este efeito carta de corso, e pirataria quando aparentemente essa disposição não existia. Embora piratas e corsários fossem a mesma coisa e igual o seu modo da actuar, aceite-se esta eufemística distinção, sublinhando que portugueses e espanhóis procediam igualmente à mesma actividade de corso ou pirataria contra os seus opositores (e muitas vezes nos seus próprios territórios).

Galeão de Francis Drake
De uma maneira geral, a história do corso (ou da pirataria), no que a Cabo Verde respeita, desdobra-se por quatro fases: na primeira fase, assiste-se a uma predominância francesa nestes ataques, que se registam maioritariamente a partir de 1530 no mar, estando as ilhas praticamente deles desprotegidas; numa segunda fase, em particular depois da assinatura do Tratado de Léon entre Portugal e França, em 1538, são os ingleses que tomam a dianteira, passando esta actividade a efectuar-se em terra, com ataques às cidades; numa terceira fase, a partir de fins de 1590, é sobretudo holandesa a acção: na quarta e última fase, verifica-se com o ataque de Jacques Cassard a Ribeira Grande de Santiago, praticamente o encerramento deste ciclo.

Para custear as despesas com a defesa de Ribeira Grande a coroa instituiu a Bula da Santa Cruzada de Cabo Verde, embora os ganhos auferidos por esta medida minguassem sobremaneira nos fins do séc. XVI (enquanto as despesas acresciam) e a Bula acabasse por entrar em desuso.

Durante o período inglês sobressaiu Francis Drake, nascido no Devonshire em 1543. Ele foi – desde 1558 (portanto, com apenas quinze anos de idade) - um dos “corsários da rainha” de Inglaterra, Isabel I (de quem alguns historiadores afirmam ser filho bastardo, com isso explicando as preferências que dela teve), juntamente com John Winter e Thomas Doughty. Os três partiram de Plymouth, com Drake a bordo do “Pelican”, em 15 de Novembro de 1577 com destino suposto ao Nilo, ainda que Drake desde logo defendesse que se dirigissem para o Oceano Pacífico, via estreito de Magalhães. 

A circum-navegação do mundo por Francis Drake
Nessa viagem, Drake surgiu em águas cabo-verdianos (primeira incursão) vindo por apelo de seu primo, John Hawkins - por volta de 1578 -, aprisionando então seis barcos que se encontravam ancorados em Ribeira Grande. Hawkins atacara pouco antes Ribeira Grande e depois mancomunou-se, em S. Filipe do Fogo, com Manuel Serradas e os partidários de D. António Prior do Crato. Tendo enganado os residentes de Ribeira Grande, Hawkins foi por sua vez vítima de uma cilada que lhe matou um punhado de homens.

Esta circunstância pôs os corsários ingleses em alerta contra as capacidades de combate da então capital de Cabo Verde - embora ainda não estivesse construída a sua fortaleza e fossem frágeis os três baluartes por essa altura existentes (S. Brás, construído em 1582, Vigia e Ribeira) – e preparou o posterior ataque de Francis Drake. Estavam os locais preparados e justamente desconfiados das intenções inglesas.

De Cabo Verde, Drake prosseguiu rota para o Pacífico (em 1578/79) ao comando de cinco navios, passando pelo estreito de Drake e seguindo pelas Índias Orientais, passando pelo Cabo da Boa Esperança, sendo o segundo europeu a fazer a circum-navegação mundial (1580, depois de Sebastián del Cano). Após esta viagem, Drake foi nomeado cavaleiro de Inglaterra.

Considerado herói pelos britânicos, recebeu deles as mais altas honrarias, enquanto Filipe II de Espanha, que o tratava por “el Drague”, pôs a sua cabeça a prémio (20 000 ducados).

Imagem do que terá sido a Invencível Armada
Em 1585, Drake voltou a atacar Ribeira Grande (segunda incursão), tendo desembarcado em Praia e vindo por terra até à capital, evitando alardes por parte dos esculcas - Drake iniciou os combates por terra, ainda que Serradas já antes tivesse desferido o seu golpe a partir da Praia.

Este processo serviu para industriar o corsário inglês com vistas a uma terceira investida sobre Ribeira Grande de Santiago, onze anos mais tarde.
Em 1587, voltou a atacar a coroa espanhola (em Cádis, la Coruña e Lisboa) e no ano seguinte, em 1588, liderou o conjunto de embarcações inglesas que derrotaram a famosa “Invencível Armada” espanhola (chamada de “Grande y Felicíssima Armada”) na batalha naval de Gravelines, apenas estando subordinado a Charles Howard e à rainha, afundando então nada menos que 23 navios.

Em 1596, Drake fez terceira incursão em Santiago, desembarcando em S. Martinho Grande (Cadjetona) – onde se pensou construir um baluarte, o que nunca se verificou - e rumando por terra para Ribeira Grande à frente de uma coluna de 600 homens, galgou a distância, assim ludibriando as esculcas e os rebates, o que lhe permitiu desferir o golpe sem que houvesse rebate defensivo. Os corsários deixavam de concentrar atenções nos navios ancorados na baía de Ribeira Grande, atacando directamente os mercadores sediados na cidade e apropriando-se dos escravos nela existentes.

Mapa do género dos  usados por Drake
Sabe-se que Drake arrasou o almoxarifado de Ribeira Grande, então localizado perto da anual escola primária de Cidade Velha, segundo o demonstram escavações feitas. A cidade foi alvo de destruições várias e as suas riquezas pilhadas. Foi um rude golpe que fez tremer e temer a sociedade de mercadores e navegadores que Ribeira Grande era então.

A defesa de Ribeira Grande reforça-se

Quando Drake procedeu à sua terceira investida, já existia a Fortaleza Real de S. Filipe, começada a construir em 1588 e concluída em 1589. A defesa recebera importantes reforços, com a instalação de companhias – onde os escravos dominavam, mas onde havia soldados e oficiais profissionais – e colocação de alguma artilharia, culminando com sistema de baluartes, a partir dos quais se fazia fogo cruzado (sete baluartes, a saber: o de S. Brás, o de Santa Marta e o de S. Lourenço, todos na margem direita da ribeira de Maria Parda; o do Presídio, junto da Muralha do Mar; os de Santo António, de S. João dos Cavaleiros e o de S. Veríssimo, na margem esquerda da Ribeira Grande, quase todos recuperáveis).

Estátua de Francis Drake, Londres
Posteriormente à segunda investida de Drake, assistiu-se à profunda reforma filipina do sistema de defesa de Ribeira Grande de Santiago: é no reinado de Felipe II que ela atinge o auge, principalmente com a construção da Fortaleza Real, segundo o traço de João Nunes de acordo com estudos mandados fazer por Diego F. Valdez e reforçados com a edificação de um conjunto de baluartes completamente integrados na sua linha de defesa.

Simultaneamente, rectificou-se a estratégia defensiva – com os navios navegando em “conserva” (de modo que o seu agrupamento minorasse significativamente a acção dos corsários), havendo galeotas que entretanto percorriam os mares, servindo-se da sua grande mobilidade e agilidade para actos de vigilância, e melhoraram-se os processos de espionagem sobre a parte contrária. Considerou-se o armamento artilheiro e outro de que Cabo Verde tinha graves carências e reformou-se a organização das tropas de terra, que desde 1582 se fez pelo sistema de companhias de ordenanças (bandeiras, tendo entre 250 e 170 homens, formadas a partir de esquadras de 25 soldados).

A unificação das coroas ibéricas (em 1580) importou num reforço das condições de segurança e, nunca como então, Cabo Verde mereceu especiais atenções na sua capacidade de combate. O redobrar desta força, que se estendeu até meados do reinado de Filipe III, foi acompanhado também por um reavivar dos ataques corsários, que se agudizaram de intensidade e ainda de poder de fogo.

Um personagem fundamental na história de Ribeira Grande 

Drake a ser armado cavaleiro por Isabel I
Sir Francis Drake, arvorado no posto de vice-almirante britânico, faleceu a 28 de Janeiro de 1596 a bordo do “Defiance” e a combater os espanhóis em S. Juan de Puerto Rico, vítima de disenteria. O seu corpo foi lançado ao mar em Portobelo. Contava  55 anos. Ficou conhecido por sua luta obstinada contra Filipe II da Espanha e por ter sido então o primeiro dos grandes da marinha inglesa. A sua vida e acção são indissociáveis da história de Ribeira Grande de Santiago, da sua antiga riqueza e posterior decadência. A sua figura e personalidade serão, por alguns, criticáveis, mas devem ser entendidas de acordo com os padrões da época. Ele foi, sem dúvida, importante para a história de Ribeira Grande, que não pode ser escrita sem o ter em conta.

Francis Drake trabalhou para a Rainha Isabel I procurando acumular tesouros e riquezas para a coroa inglesa. Porém, caso essa aliança causasse problemas de qualquer espécie para a Rainha, a rainha poderia simplesmente quebrar o acordo e responsabilizá-lo por todos os saques e ataques (sem seu conhecimento), livrando a coroa de todo e qualquer problema presente e futuro. 

4 comentários:

  1. Só agora tive possibilidade de ler mais esta importante peça historiográfica. Tudo isto constitui importante subsídio para a História de Cabo Verde, que tem de integrar e congregar todos os factos do seu passado e do seu percurso. Tudo começa com a descoberta das ilhas, o seu povoamento e o seu papel no xadrez de interesses estratégicos que tinham no médio Atlântico o seu tabuleiro, e de que Santiago/Ribeira Grande foi grande protagonista, como descreve magistralmente o Nuno Rebocho.
    Seguir-se-ia o progressivo apagamento do interesse estratégico das ilhas até à sua posterior reprojecção, desta feita polarizada numa outra ilha - S. Vicente. É quando os ventos da revolução industrial trazem novo fôlego ao arquipélago e S. Vicente passa a ser o actor da modernidade numa paisagem humana e geográfica que parecia votada ao esquecimento pelo poder central. Tudo isto é, pois, História de Cabo Verde, e nada pode ser omitido, adulterado ou submetido a crivos que não sejam os do estudo da História. Se não for assim, não se escreverá a História mas simples episódios joeirados por critérios políticos ou conveniências momentosas, o que seria um crime de lesa-ciência. Só com rigorosos procedimentos analíticos e hermenêuticos para se perscrutar as intenções e os sentidos das ações humanas, se escreve a História. O Nuno Rebocho presta-nos assim um precioso contributo nesse sentido.

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  2. No comentário da crónica anterior já tinha expresso o meu agrado por este tipo de trabalho. É uma outra maneira de apresentar a história e os factos sem coloridos ou exageros. Não deixa dúvida da importância do arquipélago de Cabo Verde no quadro da história da expansão portuguesa em todos os seus aspectos.

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  3. Por estas e por muitas outras mais, podíamos solicitar a "boa vontade" dos british's no sentido de contribuírem no desenvolvimento da Ilha do Porto Grande onde foram fecundos com a influência saxónica que entrou e só saiu devido o desenvolvimento das comunicações. Era e foi inevitável, infelizmente para um povo que contava com eles.

    Hoje não seria escândalo se fôssemos nós a procurá-los de uma outra forma, como outras tantas cidades deste Mundo têm feito com grande sucesso, propondo-lhes geminações do Mindelo com - por exemplo - as cidades de Cardiff e de Newcastle.

    Ê evidente que so seria possível se houvesse, primeiramente, a Descentralização e a Regionalização que dão ao Município a faculdade de tratar directamente com as suas congéres, sem beliscar a Autoridade Central que nunca teve e nunca terá a ideia de tal sugestão.

    Aos meus Amigos que vêm trazendo capítulos como este para refrescar-nos a memória ou dar conhecimento de factos desconhecidos aos muitos outros o meu reconhecimento.

    Avé Gente !!!

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  4. Val isto é uma grande ideia de geminação. Voltar a comunicarmos com os ingleses, vamos partir do desporto. Eles que tragam de volta o cricket o golf etc. Podiam contribuir para recuperar o nosso 'green' que tem dado tantas dores de cabeça

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