25.ABRIL.1952, Pág. 5
VISÃO NOCTURNA E BREVE DE S. VICENTE DE CABO VERDE – (do nosso enviado especial) Cabo Verde não teve sorte com as horas nesta primeira viagem do «Vera Cruz» [NOTA do Pd'B: o «Vera Cruz» regressava da sua viagem inaugural ao Brasil] … Mas nem por isso, no porto do Mindelo, S. Vicente, onde o navio entrou já noite, deixou de constituir um acontecimento a chegada do grande transatlântico ostentando a bandeira portuguesa. Logo dezenas de embarcações rodearam o navio e a lancha de onde desembarcaram as autoridades em visita oficial. Depois, pela noite dentro, embora as condições marítimas não ajudassem, sempre houve um reduzido grupo de passageiros, do qual fizeram parte em maioria – é justo dizê-lo… – os jornalistas, que foi a terra, no desejo de tomar breve mas impressivo contacto com o único pedaço do Império ultramarino português que tinham possibilidade de pisar.
Ninguém se arrependeu. É certo que o cais, sem condições, e para o qual é preciso olhar a sério, não auxilia o desembarque. Os próprios rebocadores, na maré baixa, não atracam junto ao cais e é preciso «içar» as pessoas…
Mindelo, não sendo a capital, é o único porto importante... Percorrêmo-lo, extasiados, entusiasmados como que numa devoção patriótica. Ruas calçadas à portuguesa, casas como as de qualquer vila metropolitana, em cores variadas, adormecidas no silêncio e na paz à hora a que desembarcámos. Largos, com as inevitáveis palmeiras coloniais, tão decorativas, e o busto de Camões – nota de portuguesismo eterno. A Câmara Municipal, um excelente Mercado… Visitámos, à hora adiantada da noite, o «Café Royal», onde uma negra toca melancolicamente piano numa alegria que se perdia nas trevas da noite, sem público que contagiasse… [NOTA do Pd'B: trata-se obviamente de D. Tututa] depois, os músicos, negros também, acompanham os jornalistas que percorrem a cidade e vão, tal como numa serenata coimbrã, acordando a população com as suas «mornas» tristes, nostálgicas, cantadas por vozes dolentes e tocadas em ritmos cheios de sentimento pelo «Mochinho do Monte» – um cantor ambulante cheio de intuição e de talento. A noite cabo-verdiana ia-nos cercando gradualmente…
O movimento no porto de S. Vicente está hoje muito reduzido, o que prejudica as aspirações da ilha
Visitámos mais tarde o «Grémio Sportivo Castilho», o mais antigo da cidade, onde os sócios estão em grande noite de baile. À moda da terra, logo oferecem os seus pares aos visitantes; começámos a dançar com as crioulas e de vez em quando já naquelas areias portuguesas de África se ouvem acordes estrídulos de «sambas». Mas preferimos as «mornas». – as «mornas» que vamos dançando até mais tarde, sob a égide de uma oleografia antiga de António Feliciano de Castilho, cerveja e bolos gostosos. De regresso ao cais, acompanham-nos ainda os tocadores entre enxames de cabo-verdianos que vendem colares de conchas coloridas, bugigangas, recordações – mais do que nos deixam estas inapagáveis horas ultramarinas, em terra tão portuguesa e acolhedora, uma terra cuja flagrante pobreza não exclui alegria, uma terra que tudo tem que importar… menos o seu desejo de cantar alegrias e mágoas na letra melodiosa das suas «mornas»?…
Regressámos a bordo, onde nos acompanharam dois grandes escritores cabo-verdianos que são dois grandes escritores portugueses em qualquer parte: Jorge Barbosa e Baltazar Lopes. Jorge Barbosa vive desde menino em Cabo Verde, não conhece já quase a Metrópole, mas tem-na viva na inteligência e no coração; Baltazar Lopes andou há pouco pelo Brasil, onde o seu nome várias vezes nos foi citado. E são estes dois escritores, que vieram acompanhados do jornalista J. Inocêncio da Silva, tão curioso dos temas metropolitanos como dos da sua terra, que ainda levam, alta madrugada, para a ilha as nossas saudades de Cabo Verde…
Só de manhã o «Vera Cruz» sai por entre as ilhas e se pode ver como S. Vicente é vítima da Natureza, que lhe proíbe a vegetação, a água e as condições de opulência. Se não fosse isto, na rota para a América do Sul já teria vencido Dacar, as Canárias, todos os portos que lhe disputam os barcos… e os aviões. E apesar de tudo, ainda hoje entram, por dia, em Cabo Verde, cinco navios… Mas antigamente entravam quinze ou vinte… A luta gigantesca de Cabo Verde é o seu maior título de glória!
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