1. A Centralização: uma forma de governo, uma estrutura de organização política arcaica, paralisante e ultrapassada, que não responde mais às exigências da vida moderna e da competitividade entre as nações evoluídas
Em artigo precedente (1) apresentei a problemática da Regionalização da França (1980) e mostrei que o processo que vem sendo desenvolvido nesse país desde há 25 anos (que consiste na implementação e transição progressiva para a plena Descentralização) pode ser escola e fonte de inspiração para Cabo Verde. Também vimos que De Gaule e Miterrand fizeram escola e foram dois presidentes com visão para o seu país e sobretudo convicções nas suas ideias e coragem para assumí-las. Bateram-se por este projecto de transformação do país, venceram o conformismo político, quebraram as resistências e a passividade da sociedade ‘dos velhos notáveis senadores e da classe política conservadora’, e por fim conseguiram reformar e modernizar a França. Não é todos os dias que ouvimos a dirigentes de um país afirmar: “ A centralização tal como existe actualmente constitui uma forma de governo, uma estrutura de organização política arcaica, paralisante, ultrapassada, que não responde às exigências da vida moderna e da competitividade entre as nações evoluídas “ ou “Não queremos mais exercer tutela sobre as colectividades eleitas “.
José Fortes Lopes |
Na realidade a maioria das nações democráticas mais evoluídas e desenvolvidas do Mundo optou por diferentes processos de Descentralização, Desconcentração e Desburocratização e em muitos casos pela Regionalização. Portugal, que é sempre referência e modelo para Cabo Verde, seguiu a primeira opção, a da Desburocratização, por não possuir situações de regionalismos vincados, nem um centralismo a tal ponto que Lisboa sufocasse economicamente e politicamente o resto do país, embora o debate sobre a Regionalização continua no país.
A França tem, na minha opinião, um autêntico modelo de Regionalização (2), na medida em que os outros modelos implementados no mundo são em geral formas diversas de federalismo. O modelo francês tem pois uma vantagem, a de praticamente todos, inclusivamente os centralistas, se poderem rever nele, na medida em que a França continua a ter um Estado unitário poderoso, não Federal, com um nível avançado de Descentralização política e administrativa. Os adeptos de diferentes modelos de Regionalização poderão encontrar nesse país inspiração para uma reflexão aprofundada sobre o modelo mais adaptado à realidade de Cabo Verde, na certeza, portanto, de que não se inventa mais a roda. O processo, uma vez concluído, poderá ser sempre aperfeiçoado e adaptado às novas conjunturas, pois ainda hoje, passados 25 anos desde a sua inauguração em França várias iniciativas e reformas da Regionalização e Descentralização têm sido levadas a cabo no sentido do seu aperfeiçoamento.
O modelo de Regionalização para Cabo Verde não pode ser um processo definitivamente formatado, dogmático, mecânico, ‘pronto-a-vestir’, mas sim algo sujeito a uma progressiva evolução e em constante avaliação crítica e aperfeiçoamento.
Cabo Verde é uma nação insular constituída por um território descontínuo distribuído por 10 ilhas. Tal como a França e outros países hoje regionalizados, possui especificidades e identidades regionais que se prendem com a história e a sua especificidade territorial. É hoje unânime que Cabo Verde se encontra numa encruzilhada num mundo em plena mutação, na medida em que não existe mais garantias da sua sustentabilidade do modelo de reciclagem de ajudas, sendo certo que o seu futuro vai depender da forma como se adaptar ao novo contexto mundial, tratando-se, assim, e sobretudo, de saber se estará preparado quando acontecer o maior embate da globalização na sua economia. Do ponto de vista político, o país sofre do centralismo acrescido a um problema grave de partidarismo, que vêm provocando disfuncionamentos diversos da democracia. O modelo centralizador da construção de um Estado Nação do estilo do modelo continental europeu é muito discutível para o caso de Cabo Verde e vem estando na mira dos partidários de uma verdadeira Descentralização do país. Como vimos em artigos precedentes, o actual modelo centralista existente em Cabo Verde não surgiu espontaneamente, mas é herdeira de uma tradição centralizadora que remonta à Independência no país, e que foi refinado e legitimado no regime democrático. O centralismo cabo-verdiano é herdeiro do centralismo democrático, um princípio organizativo inspirado no leninismo/estalinismo. Convém todavia ressalvar o facto qua a própria centralista democrática União Soviética, tinha regionalização, pois era um estado federal. O filósofo francês Jean Louis Talmon (3,4) caracterizou recentemente o leninismo como um progressismo que se transformou em reacção a contragosto: aspira-se a uma sociedade futurista, mas, para realizar este projecto, usa-se uma política arcaica, uma espécie de religião. Em que campo estarão a maioria dos ‘progressistas’ dos anos 70 sobre as questões ‘progressistas’ em debate actualmente?
As sequelas e os reflexos condicionados resultantes da formatação inicial de Cabo Verde estão ainda bem vincados no sistema democrático, muito impregnado de dirigismo, o que cria bloqueios ideológicos em relação à problemática da Regionalização. As elites do país foram formatadas no leninismo e elegeram obviamente o centralismo como modelo ideal de reprodução de poder. Neste sentido o regime democrático actual parece mais resultante da clonagem de princípios gerais democráticos a um sistema que tem pouco de democrático. Acresce a esta situação, o facto do surgimento daquilo que se designa de Fundamentalista Irredentista, uma corrente de pensamento que defende que a ilha de Santiago é o princípio e o fim de Cabo Verde, uma tese alimentada pelas teses revolucionárias terceiro-mundistas do retorno ao passado e à ruralidade assim como da utópica ruptura total com o passado colonial e da reconstrução do homem novo limpo das mesmas sequelas. Esta contradição ideológica do regime no poder actualmente é insanável pois esbarra-se com a realidade de Cabo Verde e do Mundo.
Os desafios da Regionalização são grandes e a ideia enfrenta fortes resistências da parte do sistema, da sua elite, num país onde a democracia engendrou um novo sistema centrado num Pensamento Único (esta corrente de pensamento pós-moderna pretende que a um dado momento da vida política só existe uma verdade a oficial re-escrita e uma via possível a escolhida pela elite no poder) no qual fundem-se o poder, a oposição e as elites dominantes. Qualquer argumentação sobre a necessidade de uma reforma real do sistema embarra-se assim contra um muro de incompreensão e de oposição instalado no seio do próprio sistema. Para além disso no caso específico de Cabo Verde os poderes políticos parecem viver numa redoma retórica, fechados no seu mundo, nas suas ‘ ilhas’, praticando autismo e protecionismo como método. Fogem dos verdadeiros debates e parecem contentar-se com a transposição acrítica de métodos políticos: não respondem às expectativas das populações periféricas que são deixadas ao abandono por um sistema que cada vez menos os representa. Copiam leis e estruturas complexas de países continentais sem se darem ao trabalho de as configurar ao próprio país arquipelágico. A importação acrítica e automática de modelos de países continentais e o empenho na construção do utópico Estado Nação, uma « república una e indivisível », marginalizam a ponderação de outros modelos organizativos mais adequados à realidade de Cabo Verde, ignorando que o país é, por vocação natural, uma estrutura regional/insular sob a tutela forçada de um Estado unitário centralista. As elites (e os interesses instalados) estão pois, em geral, votadas à causa do centralismo e opostas a uma democratização do país, e destarte actuam como verdadeiras forças de bloqueio conservadoras ou reacionárias, opondo-se a qualquer reforma do sistema que corresponda a uma maior participação das populações. A descentralização lesa, à primeira vista, os seus interesses fundamentais e o centralismo parece na realidade a ossatura de um grande negócio da nação ou da ilha capital.
Face ao debate sobre a Regionalização, as reacções oriundas do sistema, nomeadamente dos partidos do arco do poder, não têm sido claras. Sinais contraditórios têm sido emitidos, notícias positivas que fazem acreditar numa brusca aceleração do processo, alternam-se e contrastam-se ou mesmo se sobrepõem a reviravoltas partidárias espectaculares, acumulando assim já uma série de promessas incumpridas. O regime e a oposição respondem em geral ao desafio da Regionalização com declarações pouco convictas, confusas ou mesmo contraditórias, escondendo manobras dilatórias e de diversão, quando não desencadeiam ataques ideológicos gratuitos e crispados contra os regionalistas acusados de atentar à Unidade Nacional. O regime e a oposição comungam em geral de um discurso circular e de um pensamento comum e único, quando a jovem nação cabo-verdiana bem reclama e precisaria de um debate aberto sobre ideias e caminhos alternativos. De resto em relação ao tema em apreço comungam da mesma timidez, não debatem nem divulgam as suas ideias, nem os estudos realizados, o que leva a pensar que o centralismo não divide ideologicamente os partidos, mesmo que a oposição grite aos sete ventos que é um partido liberal-democrático. Até hoje, tirando um ou outro caso de pronunciamento político sobre a Regionalização, o debate público tem sido feito à margem dos partidos e envolvendo exclusivamente a sociedade civil. Os estudos partidários estão fechados a sete chaves e se debate há ele é feito entre as quatro paredes, a oposição pronunciando que é favorável a uma Regionalização cautelosa e o poder pedindo a cautela na Regionalização. Quanto aos intelectuais, fazedores de opinião, comentadores políticos de ‘faits divers’, é o ‘blackout’ total, foram para a Passárgada, não tocam nos assuntos ‘polémicos’, evitam debater os problemas do país, pois a memória do sistema centralista de partido único é ainda viva, não queiram eles cair em desgraça. Com efeito, a Regionalização é um assunto complexo que ultrapassa o nível médio do cidadão comum, incluindo mesmo muitos dos que são filiados nos partidos. Cria-se assim um grande embaraço intelectual ou mesmo ideológico, num país em que a classe média se delicia com predilecção a temas anódinos ou verdades de La Palisse. O tema Regionalização é visto com desconfiança devido à sua envolvente ideológica e aos contornos etno-culturais que implicitamente reveste, sendo assim encarada como uma batata quente demais, mesmo para os que se declaram mais liberais e democratas que todos. Neste contexto percebe-se porque muitos fogem como o diabo da cruz, mal ouvem aflorar a ideia da Regionalização, sobretudo quando se associada o Centralismo à palavra tabu que é hoje ‘S. Vicente’, a ilha que ajudou na consolidação da liberdade e na democratização de Cabo Verde e acabou por ser vítima da própria causa. Na realidade o que parece faltar em Cabo Verde é vontade política para debater problemas reais do país e discutir as reformas necessárias (Continua).
Bibliografia
(1) JOSÉ FORTES LOPES: A Regionalização francesa (1980), um processo inspirador para Cabo Verde http://www.jsn.com.cv/index.php/opiniao/584-jose-fortes-lopes-a-regionalizacao-francesa-1980-um-processo-inspirador-para-cabo-verde
(2) La Régionalisation, une histoire de plus d’un demi-siècle. Association des Régions de France (A.R.F.) http://www.arf.asso.fr/histoire-du-fait-regional
(3) « La démocratie peut-elle devenir totalitaire ? » Actes de l'Université d'été de Renaissance catholique.http://archives.polemia.com/article.php?id=5384Les origines de la démocratie totalitaire. - J.L. Talmon. http://www.monde-diplomatique.fr/1966/08/FRANCESCHINI/27399
(4) Le totalitarisme appartient à l’histoire de la démocratie, http://www.liberation.fr/livres/2010/11/13/le-totalitarisme-appartient-a-l-histoire-de-la-democratie_693317
Ninguém até agora escreveu tanto e tão variadamente sobre o tema da Regionalização como o José Lopes. Muita matéria saiu da sua pena para o esclarecimento dos cidadãos sobre o que está em causa, sensibilizando-os para que não fiquem indiferentes numa altura em que Cabo Verde pode verdadeiramente estar numa encruzilhada do seu destino. Que os nossos conterrâneos leiam e reflitam e, sobretudo, que não abdiquem de ter voz e adiram às iniciativas cívicas que revitalizam a democracia, impedindo que ela se torne um feudo exclusivo dos partidos políticos.
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