(...) O mais interessado na rapariga – e afinal aquele com quem ela mais saía – era o Albertino «Susudo», um latagão circunspecto com pretensões de poeta, do tamanho dela, que impunha respeito à distância. Na récita de final de ano, antes dos exames, ele declamara o seu poema-chave em vinte e oito estrofes «Meu ar cabo-verdiano, és trespassado pelas balas do desespero» que cheirava à légua a coisa subversiva e lhe valeu uma visita à sede da PIDE, para explicações. Mas ele lá argumentou perante o agente de serviço que as «balas do desespero» eram as carnudas baratas que em certas épocas do ano enchiam os ares do Mindelo e pousavam na cabeça e ombros das pessoas, sem pedir licença. «E as “espingardas de que o povo se deve munir”, são para matar as baratas?», insistia o pide. «Claro, senhor Rufino. Isso são as bombas do Flit, que se podem comprar na Casa Gaspar. O senhor mesmo deve ter alguma aqui no posto. É que isto é um poema para rir, um poema satírico. Uma coisa assim como aquelas do Bocage...» O polícia, que fora sapateiro num vão de escada na Rua dos Fanqueiros, em Lisboa, tinha uma quarta classe mal tirada e de Bocage só conhecia anedotas, coçava a cabeça, meio desconfiado, sem saber como havia de agir com aquele rapaz que, pela sua seriedade e aprumo não parecia corresponder aos estereótipos de terrorista (ou comunista, para ele a mesma coisa) a que se habituara na Rua António Maria Cardoso. «Então, explique-me lá o que quer dizer isso de “chegará o dia da liberdade para todos nós”. Não lhe parece que é um bocado forte para poema de Bocage?» «Ó senhor Rufino, então se o senhor ficar livre dessa barataria toda, isso não significa liberdade?», avançou o Albertino, desesperançado de se escapar do pide. Mas este não esteve para se maçar mais e despachou-o com um «Pronto, vá lá à sua vida, mas veja se escreve outras coisas. Sobre o amor, por exemplo. Não é você um dos que se andam a atirar à Isabelinha do gajo da Câmara?»
A história foi comentada e recomentada nos corredores do Liceu, na Praça Nova e em tudo o que era bar e café do Mindelo, para não falar da Rua de Lisboa, onde a gargalhada foi geral. No botequim do Orlando foi até colado um desenho de uma bomba de Flit em voo picado sobre uma barata encimada por um balão onde se podia ler «Ói nha mãe, hoje m’ta morrê!» E o Albertino, apesar da fraca veia poética, subiu no conceito dos seus concidadãos, em especial na camada jovem que viu nele um guia. (...)
Djack, já sei, o autor destes textos é o Germano de Almeida. Ele é que é quase mindelense.
ResponderEliminarAbro a segunda excepção no "não-aos-comentários" para dizer que o nosso "quase mindelense" está num nível que se situa uns bons furos abaixo do Germano Napumoceno Almeida da Silva Araújo.
ResponderEliminarSe não nasceu na ilha de Soncente adoptou-a e, parece, foi adoptado.
ResponderEliminarDizer isso não é chauvinismo nenhum mas caboverdianamente caboverdianidade