O presente texto, tal como o anterior que publicámos, já tem uns tempos. Mas, mais uma vez, também este não perdeu a actualidade e é sempre bom relê-lo.
Arsénio de Pina |
Há gente que me critica acusando-me de abusar da escrita. Para mim, escrever é exprimir factos que me preocupam ou interessam que presumo úteis e de interesse para os outros, e isso é um enorme prazer. Hoje irei abordar um pouco da História que não nos ensinaram na escola e da que nos querem impingir, por estar convencido de que o passado é património comum e a coragem de ontem um crédito incobrável.
A única maneira de sabermos o que realmente significa ser cabo-verdiano é através da História. Não é assunto menor, uma vez que, tal como sucede no caso de uma pessoa, a memória de uma nação é a base da sua identidade. Sem memória, uma nação não existe, ou só existe com base em mitos. É pois justo render homenagem à memória, tanto individual quanto colectiva.
Alguns dos nossos governantes têm demonstrado uma certa tendência em reescrever a nossa História desprezando, ou tendo em menor conta, a memória dos nossos maiores, os monstros sagrados da cultura, da ciência, da verticalidade, da integridade moral e ética, do caracter e honradez de outros tempos. É obvio que essa tendência e atitudes não podem agradar aos que ainda conservam ou conhecem a memória destes, e, com razão e justificadamente, barafustam, porque, não obstante o reconhecimento e valorização daqueles que se lançaram de corpo e alma, correndo riscos de vida na luta de libertação nacional – que não esquecemos – e nos levaram à independência, não é curial, que os governantes monopolizem o poder e se julguem detentores do dom da omnisciência, arvorando-se nos verdadeiros filhos da nação, porque houve outros, antes e depois, igualmente ou mais legítimos, seus irmãos, pais e avôs, que criaram as condições que permitiram que o cabo-verdiano se alçasse a um nível invejável no contexto africano, e não só. Outrossim, há lugar para todos figurarem na História e na memória da nação. Não há que substituir os antigos e muito menos denegri-los, mas acrescentar alguns desses patrícios mais jovens aos outros cuja cultura, modéstia e coragem eram admiráveis, que preferiram dar o seu contributo vivendo na sua terra-natal em condições precárias em vez de emigrarem ou de ficarem noutros países onde viveriam em condições mais favoráveis. Não cito nomes para não pecar por omissão, até porque nós todos sabemos quem foram, e são.
Em “Algumas ideias esparsas que bastas vezes irritam os detentores do poder”, publicado no Jornal de Saniclau e Esquina do Tempo, detenho-me um pouco sobre o assunto do desconhecimento que aqueles têm, que roça as raias do desprezo, pelo nosso património em várias ilhas, pelo que evito repetições, por ter outros ´gatos a chicotear´, como dizem os franceses.
Quando penso nos exageros cometidos nesse campo - da reescrita da História -, que ainda se cometem, embora em menor escala, recordo-me do que aconteceu, por exemplo, na URSS, depois de Estaline ter dominado o poder, em que a memória do seu rival Leon Trotski, o fundador do Exército Vermelho, figura de grande destaque nas revoluções de 1905 e 1917, e sucessor previsto por Lenine para continuar a revolução bolchevique, foi apagada e substituída pelas (falsas) de Estaline, este, substituindo-se a Trotski, junto de Lenine, com ambos a dirigirem a revolução. Aqueles bolcheviques que conservavam a memória do que se tinha realmente passado e realçavam o papel de Trotski, foram presos, torturados, obrigados a desdizerem-se em público, e, em seguida, executados como contrarrevolucionários e traidores.
Longe de mim a ideia de querer afirmar que chagámos a esse ponto, até porque a época é diferente bem como o contexto geral. Cito-o, tão-somente, para lembrar aos mais distraídos, desvairados ou fundamentalistas, o perigo da reescrita da História com negação dos nossos valores maiores de antanho e hipertrofia dos mais recentes. Devemos é orgulharmos deles e reservar-lhes as posições que merecem na nossa História e memória, julgando-os atendendo à época em que viveram e não na nossa, não fazendo sentido julgar o passado segundo juízos de valor do presente. É necessário que os mais jovens conheçam a sua integridade intelectual e reconheçam o seu contributo na formação da nossa identidade.
Como activista da sociedade civil e homem de ciência, cabe-me desafiar as opiniões daqueles que se encontram no poder quando discordo deles. Foi um juiz do supremo tribunal dos EUA que declarou ser função do cidadão evitar que o governo cometa erros, e não o inverso. Jefferson, o autor da Declaração da Independência dos EUA, ensinava que “toda a governação degenera se for deixada apenas aos governantes, dado que estes – pelo simples facto de governarem – acabam por abusar da confiança pública. O povo é o único repositório prudente do poder”, embora este seja fácil de enganar… Todavia, se os cidadãos tiverem um bom nível educacional que lhes confira conhecimentos – daí a necessidade de investimento numa melhor qualidade de ensino – e souberem formar as suas próprias opiniões, os detentores do poder trabalham para os cidadãos, por estes saberem escolher os melhores governantes. Bem sei que os governantes não apreciam o cepticismo que acompanha o conhecimento, mas este é absolutamente necessário para que as pessoas comecem a fazer perguntas incómodas sobre as instituições económicas, sociais, políticas ou religiosas. Somente dessa maneira é que poderemos progredir.
Lisboa, Março de 2014
Arsénio Fermino de Pina
Concordo com o Djack sobre a actualidade deste texto ao qual já tive acesso. E digo mais deve-se estudar a História de Cabo Verde e escrevê-la com insenção , ojectividade, pois muita leviandade é escrita numa lógica politiqueira. Cabo Verde não é uma criação de partido A, B ou C e não foi resgatada por ninguém, ele sempre existiu e continuará a sê-lo, se Deus, quiser depois de nós. Fiz 'grinha sim' um comentário ao artigo do Arsénio publicado ao lado no Arrozcatum:
ResponderEliminar'Assino por baixo sem grandes comentários pois a evidência do que está escrito aqui só cegos não vêm, para além do facto que a identidade dos pontos de vista nestas problemáticas é total.'
Está aqui um recado que justifica realmente ser relembrado aos esquecidos e reencaminhado aos que propositadamente não ouvem. Ponderações correctíssimas e chamadas de atenção de grande pertinência, com o verbo elegante, claro e apreensível que pauta a escrita deste articulista.
ResponderEliminar