terça-feira, 10 de março de 2015

[1425] Continuação do diálogo do post 1421 sobre a questão da Língua Cabo-Verdiana

II Parte (ver parte I AQUI)

Adriano Miranda Lima
Filinto:  ̶  Bem, Elísio, em que ponto ficámos ontem? Ah, já me lembro, o ALUPEC. Mas porque é que para muitos ele é tão mal amado, como se fosse algo estapafúrdio criado só para azucrinar a malta do Barlavento?

Elísio:  ̶  Pois é, pois é, não terá sido propriamente para azucrinar mas o efeito foi praticamente o mesmo se virmos a reacção negativa que ele mereceu nas ilhas do Barlavento e na diáspora. O ALUPEC surgiu em 1994 e foi elaborado pelo chamado Grupo de Padronização da Língua Cabo-Verdiana, constituído por Manuel Veiga, Dulce Almada Duarte, Eduardo Cardoso, Inês Brito, e outros. É um sistema fonético que essencialmente define as letras para representar cada som, e o objectivo é, alegadamente, uniformizar a escrita de todas as variedades do crioulo, para evitar que cada um utilize a grafia que julgue mais consentânea com a expressão da variedade dialectal da sua ilha, com o seu próprio sociolecto e o seu próprio idiolecto. Aquando da sua aprovação, prometia-se que depois de um período experimental seria encarada a sua introdução no ensino, o que parece estar agora para breve.

Filinto:  ̶  Ah sim, e que mais?

Elísio:  ̶ Bem, diz-se que a importância deste sistema se prende exclusivamente com a língua escrita, mas veremos mais adiante o grau de susceptibilidade que poderá ter ou não ter na expressão oral. Não sendo especialista no assunto, a minha opinião é apenas pela rama, mas sem deixar de valorizar as reacções negativas e as muitas opiniões que têm surgido de vários quadrantes da sociedade. Para além de uma generalizada contestação à substituição da letra “c” pela letra “k”, existe a desconfiança de que a intenção é, com o tempo, e ao contrário do que é agora propalado, padronizar todas as variedades dialectais em função do crioulo falado na ilha de Santiago. Contudo, é iniludível  a diferença significativa a nível fonológico, e não só, entre os crioulos do grupo Sotavento e os do grupo Barlavento, daí que qualquer tentativa de uniformização tenha de produzir fortes traumas, e a resistência passiva será o mais provável. No entanto, para agradar a todos, numa primeira abordagem diz-se que serão respeitadas todas as variedades porque o ALUPEC contém as soluções linguísticas adequadas para cada caso. Resta porém saber se não é um expediente dilatório, na crença de que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. E isto porque não vejo como tornar o crioulo o ambicionado instrumento de comunicação válido, escorreito e eficaz no ensino e em outras funções exigentes, com a coexistência de todas as suas variedades.

Filinto:  ̶  O que queres insinuar é que, por exemplo, se o crioulo de S. Vicente utilizar o ALUPEC, acabará mais tarde ou mais cedo por convergir com o de Santiago, não é? Estamos a falar de padronização do processo da escrita, mas seria, de facto, interessante especular se a domesticação da grafia não acabará por ter um efeito reflexivo na oralidade. Explico melhor. O ALUPEC é uma ferramenta pensada mais para privilegiar o crioulo de Santiago do que para a generalidade dos crioulos cabo-verdianos, ainda que os seus autores aleguem o contrário. Assim, em que medida a prática generalizada da escrita baseada no ALUPEC não fará transpor insidiosamente para a oralidade as inflexões fonéticas que aquele alfabeto consagra, com predomínio na letra “u”?  Contudo, tudo isto só seria possível se a escrita em crioulo se tornasse uma prática corrente e generalizada, pelo que a questão é saber como atingir esse desiderato enquanto o português não for destronado dos nossos hábitos. De facto, se, ao longo de séculos, os cabo-verdianos sempre escreveram as suas cartas, bilhetes e recados em português, que transmutação sociolinguística ocorrerá para justificar que o crioulo  passe a substituir a língua lusa nessa função instrumental? Para mais, nesta época de abertura ao exterior e de mobilidade social sem precedentes em que vivemos.

Elísio:  ̶  Bem, Filinto, estás a colocar questões de uma certa complexidade. Repito que não sou especialista na matéria e por isso me inibo de sentenciar depreciativamente o que é da lavra dos que o são, ou julgam sê-lo, embora se censure que no grupo de trabalho nomeado não tenha havido uma representação plural e equilibrada da sociedade cabo-verdiana. Em suma, no grupo predominava e predomina uma certa orientação político-partidária. E é por isso que alguns autores, de opinião tão respeitável como a dos defensores do ALUPEC, defendem a padronização dos crioulos de Sotavento em torno do de Santiago e a dos crioulos de Barlavento em torno do de São Vicente. E o curioso é que o Governo parece admitir agora essa possibilidade, como forma de atenuar o ruído de fundo, procurando agradar a gregos e a troianos. A ser assim, o crioulo tornar-se-á numa língua pluricêntrica, mas não nos iludamos com os expedientes dilatórios.

Filinto:  ̶  Interpreto isso no sentido de que passaria a haver duas formas básicas e  distintas de crioulo em Cabo Verde, mas só no âmbito da grafia, uma vez que ainda há dúvidas se a oralidade ficará imune às prescrições impostas na grafia. A sensação, para já, é que estamos a armar uma enormíssima confusão em Cabo Verde, em matéria linguística. Verdade ou não?

Elísio:  ̶  Ah, pois, nisso estou como tu. Também julgo imprevisível a influência que a grafia possa vir a ter na expressão oral. É que, em princípio, estamos perante duas situações distintas, a da grafia e a da oralidade, mas, na verdade, até que ponto se pode definir ou garantir zonas estanques no comportamento do fenómeno linguístico. E julgo que nem os próprios linguistas terão qualquer opinião avalizada sobre este aspecto particular, mas não duvidemos que estão a apostar nessa probabilidade.

Sempre teria sido aconselhável olhar com olhos de ver para o percurso histórico das línguas mundiais, no sentido de colher adequados instrumentos de análise e aferição susceptíveis de ajudar a compreender mais profundamente o nosso caso. Até que ponto uma cautelosa atitude prospectiva presidiu à decisão de oficialização do crioulo? É uma pergunta que aqui deixo.

Filinto:  ̶  Enfim, estamos para ver o que vai acontecer. Mas, para já, o ar que se respira nos círculos oficiais é de franco optimismo em relação ao sucesso da adopção e vulgarização da escrita do crioulo.

Elísio:  ̶  Voltemos um pouco atrás, Filinto. A introdução e vulgarização da escrita em crioulo parte do pressuposto de que a língua portuguesa será secundarizada nos nossos hábitos de escrita e leitura e em grande parte da comunicação oral, quer nas vivências informais quer mesmo nos actos oficiais a nível das funções do Estado. Não tenhas dúvidas acerca disso. Achas provável que isso aconteça num futuro mais próximo ou mesmo mais distante? As pessoas vão abdicar voluntariamente de utilizar a língua portuguesa, ou  será isso imposto mediante formas subtis de coacção? É que não vejo o que pode motivar as pessoas a escrever em crioulo enquanto prevalecer o português, impregnado como está nos nossos hábitos e nas nossas práticas, e sem que aparentemente se descortine qualquer vantagem na sua substituição. Bem pelo contrário, passar do português para o crioulo é como passar do garantido para o incerto, sem nada que o justifique. A não ser que para alguns seja um acto patrioteiro.

Filinto:  ̶ Mas, espera aí. O governo não diz que vai suprimir a língua portuguesa. Defende, sim, a construção de um bilinguismo social com base no crioulo e no português, e é precisamente como resposta à chamada situação de diglossia existente na sociedade cabo-verdiana que oficializa o crioulo para o colocar em paridade com o português.  Nesse sentido, um dos primeiros passos é introduzir o crioulo no sistema de ensino.

Elísio:  ̶  Tudo isto cheira-me a uma autêntica  aventura em que nos vamos mergulhar de cabeça, porque nada de verdadeiramente imperioso recomenda a alteração do panorama linguístico que ao longo de séculos foi o nosso. Repara que esta conversa oferece pano para muita manga e as questões surgem em catadupa.

Ma já bô oiá pa reloje, Filinto? Pa hoje tá tchgá. Manhã, na meme hora d’hoje, lissim na Cafê “Crióla”.

Filinto:  ̶  OK, rapaz, pa mim tud dret.

Tomar, 10 de Março de 2015
Adriano Miranda Lima

10 comentários:

  1. Um bom exemplo de que com humor (as imagens são expressivas) e com tranquilidade se pode falar, dialogar sobre assunto muito sério, este de alteração que gera muitas dúvidas no bom desenvolvimento cognitivo, no raciocínio lógico e dedutivo dos nossos alunos, que como diz um dos intervenientes do diálogo, Elísio: "uma autêntica aventura em que nos vamos mergulhar de cabeça, porque nada de verdadeiramente imperioso recomenda a alteração do panorama linguístico que ao longo de séculos foi o nosso." (Fim de transcrição).
    Obrigada, Adriano Lima pela reflexão trazida.
    Abraços
    Ondina

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  2. Filinto Elísio era bem capaz de "trialogar" com estes dois inspirados e dialogantes comparsas...Afinal, é possivel falar "ex-cathedra" com um sorriso nos lábios e a mente despida de preconceitos... Obrigado, amigos, recomendem-me ao Adriano, se o virem por aí!
    Mantenha
    Zito

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  3. Bem, tenho de me render à graça inventiva com que o nosso Djack ilustra estes "diálogos" sobre a língua. Tenho-me rido às gargalhadas. Pena é que não apareça mais gente para entrar no "diálogo", pois o objectivo é mesmo falar do assunto e não o deixar refém de uns poucos.

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  4. Agora sim ficamos a perceber em que é que consiste o famigerado Alupek. Uma grande contribuição ao debate através de uma abordagem original diria genial

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  5. A conversa vai muito animada entre o Filinto e o Elísio e muita gente preocupada vai conjecturando a cacofonia que suscita essa insistência de adulterar o alfabeto usado e adoptar um falar que, de certeza, não vai passar de instrumento de apenas alguns fanàticos. Eu não vejo um sanicolaense a falar o idioma santiageuse no dia a dia. A mesma coisa com um santantonense que não seja afecto ao partido ou mesmo um sanvicentino filho de resistentes da época em que queria impedir os alunos de falar o crioulo.
    Quanto a mim, vai haver uma resistência passiva em larga escala enquando os emissários percorrerão as ilhas com a sua propaganda. Para isso não chegam as camisolas ou o cimento como compensação.

    Augusto Galina Semedo

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  6. O meu comentàrio vai aparecer depois. Ê que não consigo ter a serenidade do articulista e dos comentaristas précédentes. Começo a escrever e saiem frases demonstrativas de desapontamento.
    Imaginem que, com Sessenta anos de estrangeiro, ainda falo o meu crioulo de SonCente, procurando evitar as influências que seguiram e que acho inadequadas.

    Mesme na Quarta Classe mim mas nhas cumpanher nô tava fazê resistência. Criole d'Mindele tem tonte duçura que B.Leza e JotaMont sirvi d'ele pa fazê muzga e Serge Frusoni traduzi Evangele.

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  7. Ninguém tem dúvida que isto tudo vai dar esturro e só por causa da mania de grandeza de alguns. A confusão vai ser grande e ninguém vai lucrar. A economia do país é que será a primeira vítima porque os efeitos vão reflectir-se nela de uma maneira ou doutra e pelas vias que os patetas nem sequer imaginam.

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  8. VOLTO, AQUI, UMA SEGUNDA VEZ PORQUE ME OCORRE QUE A COMUNICAÇÃO ORAL, SENDO UM INSTRUMENTO DE USO UNIVERSAL É UMA ESPÉCIE DE EMANAÇÃO DA NATUREZA QUE, POR NORMA, NÃO GOSTA DE SER ADULTERADA PELOS CAPRICHOS HUMANOS, EGOÍSTAS E MEGALÓMANOS...CADA MACACO NO SEU GALHO, CADA CRIOULO DA SUA ILHA!!!

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  9. QUERIA DIZER...CADA CRIOULO - NA - SUA ILHA...SORRY, BROTHERS!

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  10. Concordo que cada crioulo deve ficar na sua ilha "exacto e qual" eles existem e sempre existiram. Se não mexerem nisso o crioulo permanecerá eternamente como a forma de expressão em que os cabo-verdianos se sentem aquilo que na verdade são. Pelo contrário se o quiserem promover naquilo que ele não deseja nem está preparado, vão arruinar a competência dos caboverdianos no uso do português. Será uma vergonha chegar um patrício a Angola, Portugal ou Brasil e não falar português como falam todos os povos dos PALOP. Afinal para que queremos estar na CPLP se queremos livrar da condição essencial para estar nela? Gostaria de ir a esse café Criola para um dedo de conversa com esse Filinto e esse Elísio. Adorei.

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