Filinto: ̶ Ah, foi naquel queston de identidade nacional e sê relaçon c’nôs criol.
Elísio: ̶ Ah, pois, foi isso mesmo. Olha, para começar, há uns anos, quando o Manuel Veiga publicitou as suas ideias sobre a oficialização do crioulo e deu à luz o ALUPEC, afirmou: “Com o Crioulo é que Cabo Verde marca a sua diferença no mundo”. Esta afirmação entronca precisamente nas considerações que ontem fizemos acerca de identidade nacional, e se dúvidas houvesse acerca da questão político-ideológica que subjaz a esta problemática, aquela afirmação as desfaz por completo. Não achas?
Filinto: ̶ Pois, com certeza. Para já, é muito discutível aquela afirmação, para não dizer que é pretensiosa e abusiva. Quem é esse senhor para sentenciar o que deve ser a imagem do povo cabo-verdiano no mundo? Essa imagem não se decreta nem pode ser forjada na oficina de um ou dois artífices, por mais imaginativos que se julguem. Ela não pode cingir-se unicamente a uma língua, pois é muito mais do que isso, é um produto multifacetado que tem a sua raiz na idiossincrasia do povo, no seu temperamento, nos traços essenciais do seu carácter, nos seus sentimentos, nas suas inclinações naturais, etc., etc.
Filinto: ̶ Sabes uma coisa?, tenho o pressentimento de que, com esta aventura do Governo, estamos a entrar num terreno ignoto e cheio de armadilhas, só para satisfazer os caprichos de algumas pessoas. Ainda por cima, de uma forma imprevidente, o que me faz lembrar aquela do gato escondido com o rabo de fora. Passo a explicar. No enunciado de intenções do Governo, e segundo aquilo que recentemente me chegou aos ouvidos, o crioulo vai ser consagrado e dotado de um “estatuto social condigno”, em paridade com o português, mas ao mesmo tempo diz-se que “deverá ser equacionada a possibilidade de a língua portuguesa se manter como a língua de comunicação internacional, tanto na comunicação oral como na escrita, enquanto decorrer o processo de padronização do crioulo”. Repara que sublinhei a expressão “deverá ser equacionada”. O gato está, pois, escondido com o rabo de fora. É que tudo indica que a intenção é mesmo banir o português da nossa vida e que apenas o toleram enquanto não estiver concluído o processo de padronização dos crioulos.
Filinto: ̶ Está bem, até porque considero a introdução do crioulo no sistema do ensino a fase mais crítica e desafiadora do processo que se tenciona implementar. É preciso saber como vai funcionar tudo isso, por onde começar, até onde ir, como superar eventuais situações de bloqueamento, que metodologias serão utilizadas para a aferição do processo, que instrumentos didácticos irão suportar cada fase de transição. E, muito importante, saber com que meios e quem vai custear todo um processo que não deixará de exigir uma fatia não despicienda do orçamento. Será que até nisto vamos ao peditório internacional, para a mera satisfação de um capricho?
Elísio: ̶ Ora, aí estão elencadas algumas questões para discussão. Mas antes de metermos a foice nessa seara, convém trazer de novo à baila uma questão que terá sérios reflexos no processo de ensino. Segundo o que ouvi recentemente, e já foi ventilado nas nossas conversas, existe a promessa de que todas as variedades do crioulo serão consideradas, em pé de igualdade, no processo de padronização, normalização e instrumentalização, e isto desde logo a aplicar-se na publicação de gramáticas, dicionários, prontuários, terminologia científica e técnica, etc. Foi o que me constou, e é assunto que acho devíamos abordar antes de tratar a questão do ensino e da formação com o uso do crioulo. Queres pegar na ponta?
Elísio: ̶ Bem, deixa-me agora completar. Em suma, por simples tacticismo político, o Governo não defende ou não prescreve de uma forma clara a extinção das variedades dialectais exteriores à ilha de Santiago, por acreditar que serão absorvidos inapelavelmente pelo organismo do crioulo dessa ilha, no pressuposto de que o efeito de massa prevalecerá sobre as realidades sociolinguísticas tidas como menores. Não o dirá assertivamente, pois preferirá subterfúgios de linguagem ambígua, de modo a iludir os ingénuos.
Elísio: ̶ O tempo passou depressa sem darmos por isso. Julgo que será melhor continuarmos a abordar o tema do ensino amanhã.
Filinto: ̶ Por mim, tudo bem. Depois telefono-te.
Tomar, 12 de Março de 2015
Adriano Miranda Lima
Adriano mais uma vez parabéns por este excelente ensaio. Um dia CV te agradece
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ResponderEliminarE continuamos à espera que os invisíveis se manifestem. Visitam os blogues (aqui e algures) mas poucos se dão ao trabalho de deixar um aceno ou mesmo "descompor" quando se sentem atingidos ou, simplesmente, quando discordam com o ponto de vista dos autores.
No entanto ninguém ignora a violência verbal que abunda em certos sítios onde, na falta de face-à-face, alguns aproveitam para descarregar o bílis contra quem não compartilha as suas ideias, mesmo as mais extremistas ou "desenvergonhadas". Bem, isso é que não. Precisamos de presenças para que haja o que não existe entre nós - participação cidadã - porque, na sua falta, os malandros aproveitam da liberdade de expressão nos "jornais de borla" para nos enfiar o barrete, pensando que quem não participa capitulou
Conclui-se que nem com estes dois comparsas (o Filinto e o seu amigo Elísio) a dar o exemplo de interesse por um tema tão importante para a nossa terra, nem assim, dizia eu, os nossos patrícios aparecem a dar um ar da sua graça. Podiam perfeitamente arrastar uma cadeira e aproximar-se da mesa daqueles dois compadres que eles não se importariam. Cada um pagaria, claro, o seu puntchim, e a conversa poderia até ganhar mais animação. Não é preciso concordar, podem até dizer uns impropérios, pois que o importante é animar a malta. Com a abstenção é que não vamos a parte nenhuma. Depois, não venham dizer que não foram alertados. A não ser que a nossa gente goste de ser arrastada pela trela de um qualquer ditador ou déspota. Habituaram-se a isso com Salazar e depois com o partido único, e parece estar tudo anestesiado e pronto para a imolação. Se foi para isso que quiseram a independência, vou aí e venho já...
ResponderEliminarÉ meu entendimento que adoptar o crioulo no ensino seria um tremendo
ResponderEliminarerro estratégico , com efeitos desastrosos no futuro.
No quadro do processo, imparável, da globalização socioeconómica,
países como a China ( com centenas de dialectos), Portugal, Angola,
Moçambique, Timor, etc, e a UE no seu todo, (diversas línguas e
dialectos) estão a lutar pelo ensino de línguas, como o inglês,
chinês , alemão e francês, potenciando, assim, as suas
capacidades de não só comunicarem entre si, mas, o mais importante, além de
tais idiomas revelarem-se indispensáveis no âmbito da concorrência
económico-financeira. Por exemplo, a China envia para diversos países,
incluindo Portugal, milhares de estudantes para aprenderem a língua
portuguesa, com olhos nos PALOP e na América do Sul.
No que respeita ao crioulo, não é preciso ensiná-lo:nasce connosco e é com
este instrumento que o cabo-verdiano exprime as suas emoções. É o seu
padrão fundamental da nossa cultura.
Dvo ter entre os meus papeis uma acta, de 1989, sobre uma reunião
do PAIGC, numa "zona libertada" , onde consta uma recomentação do A.
Cabral sobre a imperiosa necessidade do ensino do português, como
meio fundamental de comunicação, não só na Guiné mas também noutras
áreas do Globo.
Não vejo como se poderá aprender outras línguas e matérias
científicas, sabendo apenas o crioulo, ou não dominando o português.
Isto aplica-se, ainda, à leitura dos clássicos gregos e romanos,
indispensáveis para o enriquecimento da cultura humanista.
Acho extremamente criativa a forma que este blogue e o autor destes “diálogos” engendraram para abordar um tema que, tanto quanto me é permitido ver, é de magno interesse para os cabo-verdianos. Não intervenho neste assunto porque não sou cabo-verdiana e me inibo de meter o bedelho em problema alheio. No entanto, não posso deixar de dizer que são muito pertinentes as questões aqui afloradas e objecto de diálogo. É enorme o risco que se corre, é semeado de escolhos e imprevistos o caminho que se quer seguir. A opção por um gueto linguístico, ainda que muito caro à expressão cultural e sentimental de um povo, é qualquer coisa que não se coaduna bem com os actuais desafios da globalidade. Há momentos em que se tem de silenciar o apelo do coração para acudir ao ruído do estômago. E por aquilo que conheço de duas visitas turísticas a Cabo Verde, existem problemas naquele país que reclamam muito mais atenção do que o problema linguístico.
ResponderEliminarNão sei porquê, mas adorei estes dois senhores, talvez por me invocarem o escritor Francisco Manuel do Nascimento, mais conhecido pelo pseudónimo de Filinto Elísio, um homem de origem humilde mas grande na sua visão do mundo em que viveu.
Tiro-vos o meu chapéu pela inventiva e pelo empenho cívico.
Margarida Lopes
Dizem que o doido se manifesta de qualquer maneira e eu digo que estupidez não tem limites.
ResponderEliminarQuanto aos inventores de tamanho abacaxi nem aparecem para dialogar pois não têm argumentos e temem o confronto, preferindo. Como o doido, manifestam-se de forma invisível com esquivas que fazer lembrar o que diz o francês:
- "La bétise est la réussite des ratés"
Ema Rodrigues