quinta-feira, 11 de junho de 2015

[1555] Divertidíssimo texto de Arsénio de Pina

Excepcionalmente e a pedido do nosso colaborador Arsénio de Pina, Praia de Bote publica este seu divertidíssimo texto escrito em 2013, mesmo sem o anterior post ter os cinco comentários regulamentares. Porém, Pd'B não publicará mais nada sem que o presente post cumpra a norma dos 5 e o anterior tenha mais três comentários (o nosso que lá está, obviamente, não conta).

Factos intrigantes ocorridos na fase de transição para a independência

Arsénio de Pina
De regresso a S. Vicente, após uma demorada permanência, embora intermitente, no exterior, acompanhei o presidente da Adeco, Eng. António Pedro Silva, em visita à Universidade do Mindelo, na apresentação, aos alunos do último ano de enfermagem, da Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes. Esta Carta vinha sendo elaborada e aferida há mais de quatro anos por colaboradores e sócios da Adeco, nos quais me incluo, finalmente adoptada pelo Conselho Nacional da Saúde na sua reunião de 20 de Dezembro de 2011, sob proposta da actual Ministra da Saúde, Dra Cristina Fontes, que a abraçou valorizando a iniciativa e empenho da Adeco na sua elaboração, e interesse da mesma na melhoria do relacionamento entre os utentes dos Serviços de Saúde e os seus técnicos e pessoal administrativo.

Nessa apresentação da Carta, aproveitei a oportunidade para dar exemplos do mau uso desses direitos dos utentes da Saúde e do descuido e negligência no cumprimento dos deveres destes e dos trabalhadores da Saúde com duas estórias de factos ocorridos no período de transição para a independência, as quais revisito para os leitores do Expresso das Ilhas como remédio desopilante dada a componente hilariante desses exemplos, nesta época actual de crise política, económica, financeira e social da responsabilidade de banqueiros e poderosos do poder financeiro, que se riem agora do Estado, fazendo-lhe manguitos e arreganhando-lhe os dentes. Seria de se dizer bem feito!, se não fosse o povo a pagar as favas que eles comeram, porque quando o Estado podia e devia tê-los metido na ordem, na altura em que, de joelhos, pediam misericórdia ao Estado que antes exigiam mínimo, ou perfeitamente dispensável na regulamentação da economia de mercado, deu-lhes a mão cheia de dinheiro para não caírem em desgraça, adiando as vergastadas merecidas para mais tarde, que nunca apareceram.

Mas, vamos às estórias, que reconto por o humor ajudar a resistir à dor, à maldade e à estupidez. Não vou fazer ironia, porque esta despreza e condena, enquanto o humor pazigua e une.

O período que antecedeu a nossa independência nacional, chamado de governo de transição, com uma governação mista, foi dos mais turbulentos em Cabo Verde. Turbulência revolucionária legítima, gratificante para os que lutaram pela causa independentista veiculada pelo PAIGC e para os que aceitavam esses ideais, inexoravelmente em vias de concretização, não obstante a hesitação e desorientação de alguns que se enganaram na causa a defender nessa altura, e, não devemos negá-lo, também de turbulência aproveitada por malcriados, desaforados e oportunistas que assustaram muito boa gente pacata habituada à resignação do ámen. Nessa altura, encontrava-me em Lisboa, no fim da especialização em Pediatria, pelo que não posso testemunhar de visu tudo quanto se passou de bom e mau, mas, o que encontrei no regresso, em Fevereiro de 1976, permite-me aferir o que me contaram dessa época.

O Hospital de S. Vicente foi dos serviços que mais sofreram com essa turbulência, até porque as instalações eram antigas, com poucas ou nenhumas condições de trabalho, o pessoal médico e de enfermagem reduzidíssimo e as exigências dos utentes desaforadamente redobradas. Devassava-se o hospital como quem percorria quintal sem dono, turbas excitadas percorriam os corredores e serviços aos gritos de nôs terra ê pa nôs pove, dado que a administração se retraía confusa e amedrontada, e ninguém tinha coragem suficiente para enfrentar super-revolucionários de águas recentes que exigiam tudo, imediatamente, esquecendo-se da nossa pobreza franciscana. Os médicos e enfermeiros passaram a ser camaradas, e mesmo os mais reticentes dessa camaradagem novíssima engoliam-na sem pestanejar, nem com engasgues, preferível à alternativa de reacionário, catchor de dôs pê ou fascista. Houve, até, camaradas serventes que se sentiam equiparados a doutores, negando-se a lavar, limpar e arrumar as enfermarias e consultórios, esperando que fossem os enfermeiros e médicos e fazê-lo, já que todos eram iguais; para esses lunáticos, chegou o Dr. Pedro do Rosário que, ao chegar ao consultório – isso na Praia -, achou-o sujo e inoperacional, tendo o servente, perante o protesto do médico, perguntado ao médico “se o camarada Rosário não podia também limpar o consultório, na base da igualdade conquistada”. O Dr. Pedro do Rosário, que não é homem para meias medidas, não se atrapalhou: pegou no balde e na vassoura e pôs o consultório num brinco. A seguir, deu o estetoscópio e aparelho de tensão ao servente, dizendo-lhe, ao sair do consultório - para que os doentes, que estavam à espera da consulta médica, ouvissem - que o camarada fizesse a seguir a consulta. Os doentes, pasmados a princípio, caíram, em seguida, sobre o camarada servente, o qual, para se safar da sanha destes, teve de ir procurar o Dr. Pedro do Rosário, pedindo-lhe mil desculpas e reconhecendo o despropósito da sugestão; não foi fácil convencer o doutor a regressar ao consultório, com o camarada servente atrás, cabisbaixo e elucidado na prática.

Reza o livro de ocorrências do Banco de Urgência do Hospital Baptista de Sousa dessa época, estando de urgência o Dr. Teixeira de Sousa, coadjuvado pela enfermeira Luzia Rendal, que um desses revolucionários de meias-águas chegou ao Banco de Urgência, excitado, com uma filhinha pela mão com uma feridinha num dedo grande do pé, a exigir, aos gritos com o mesmo slogan de nôs terra ê pa nôs pove, actuação imediata do médico. A Enf. Luzia tinha mais do que competência para resolver essa feridinha de topada dada provavelmente nalgum panfleto reacionário, mas, dada a efervescência da época e a excitação do camarada, achou por bem mandar chamar o médico, que se encontrava ocupado noutro sector do hospital. Ia, entrementes, pacientemente, como mandam as normas, tentando acalmar o homem, já que este também protestava por achar o médico demorado. O Dr. Teixeira de Sousa lá chegou, praticamente sem demora, com ar cansado – o trabalho nessa época era duro, extenuante e permanente -, magro que nem um cação, as calças bailando-lhe sobre as pernas magras, dando a impressão de que qualquer rabanada de vento o deitaria ao chão; encaminhou-se para a saleta de consulta, sem nem olhar para a enfermeira Luzia, por o homem continuar com o seu estribilho revolucionário de nôs terra ê pa nôs pove.

A criança foi vista pelo clínico que entregou à enfermeira a receita, a fim de esta explicar ao pai como proceder para o tratamento. Talvez por o pai não ter gostado do soluto de permanganato de potássio prescrito para a desinfecção da ferida, ou tivesse acordado em dia aziago, mal ouviu a explicação da enfermeira, soltou o seu último grito revolucionário e aplicou duas valentes bolachadas na cara da enfermeira Luzia. Esta ficou, uns segundos, como que aparvalhada, espantada, para, logo em seguida, atirar todo o seu peso, que não era pequeno, e fúria sobre o homenzinho, tendo os dois ido parar ao chão, engalfinhados, com a enfermeira alapada ao sujeito a matraquear-lhe a cara com uma mão e a outra a segurar-lhe os cabelos.

As enfermeiras Joia e Dadinha e mais três serventes que estavam perto e acudiram à gritaria do homem não foram capazes de arrancar a Luzia do camarada revolucionário, este já com a cara num bife batido e a roupa em fanicos. Quis o bom Deus que estivesse nas redondezas o chefe dos Bombeiros Voluntários da Municipalidade, o prestimoso Ricardo Tristão, para ajudar a apartar os dois, só o tendo conseguido, na falta de agulheta com água, com o auxílio do extintor de incêndios do Banco de Urgência.

O homenzinho, quando se viu livre das garras da enfermeira, fugiu a sete pés. Obviamente, que se tinha enganado o pobre camarada, julgando que a enfermeira e o médico não eram do povo. Enfim, efeitos chamados colaterais de revoluções…

S. Vicente, Junho de 2013          

Visitas nas últimas 24 horas... (62 de Cabo Verde). Praia de Bote deve ser o blogue mundial que tem a proporção mais destrambelhada entre os muitos quem aqui vêm e os raros que cá colocam comentários, não há dúvida.   

             

5 comentários:

  1. O bife feito pela enfermeira Luzia jà não deve servir nem para um "catchorre de quate pê". Mas gostaria de saber se ela não teve oportunidade de refazer a receita. Aparecereram muitas.

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  2. Um Facto intrigante ocorridos na fase de transição para a independência.
    Arsénio de Pina conta aqui uma cena que exemplifica muitas trágico-cómicas que aconteceram em S. Vicente e por todo Cabo Verde quando tudo o que era autoridade se evaporou e os pseudo-revolucionários pensavam serem enfim os novos donos de tudo. 40 anos passaram e a macriação saiu pela porta e voltou pela janela de maneira assustadora !!! E se a gente começasse a olhar pelos monturos escondidos debaixo do lindo tapete.
    O Arsénio que cuide ainda vai ser tomado por um 'neo-catchor de dos pés'.

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  3. Devo confessar que este texto do Arsénio foi a coisa mais gostosa que li hoje. Venha mais disto! Pegando nas palavras do Valdemar, poderia a enfermeira Luzia ter, à socapa, acrescentado à receita uma dose de brooclax para o "revolucionário" tomar logo a seguir ao tratamento da filha.

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  4. Ouvi as duas versões
    -nôs terra era pa nôs pove

    -nôs terra era pa nôs poc

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  5. Restou-me dizer que conheço muito bem a enfermeira Luzia e que a encontro regularmente nas minhas reuniões familiares. Acontece em Cabo Verde mas também aconteceu já uma vez nos Estados Unidos. Por sinal, embora já reformada, trabalha na clínica de uma minha irmã. O marido dela, o senhor Mário, num desse encontros contribuiu com um arroz de marisco, confeccionado por ele, de uma qualidade que eu nunca tinha visto coisa igual. É mesmo de se lhe tirar o chapéu. Tanto a Luzia como o marido são pessoas excepcionais em simpatia e convivência. A Luzia esteve no recente funeral da minha mãe.

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