UM RAIO DE SOL POENTE
Em memória da minha mãe
Adriano Miranda Lima |
Naquele dia, já lá vão quase 12 anos, preparei-me para ir ler um pouco no Café Del Mar, como era hábito. A mãe acompanhou-me até ao portão de ferro do jardim. Fazia-o sempre que pressentia que eu ia sair ou eu lho anunciava. Percebia-se nesse gesto o selo inconfundível de um carinho maternal. Andava preocupada comigo, por razões da minha vida pessoal, mas nunca lhe cheguei a confessar que eu viajara para Cabo Verde mais pela vontade de estar algum tempo dilatado com ela do que por outras razões transitórias.
Segui o meu caminho, e a mãe debruçada sobre o portão de ferro a acompanhar os meus passos, ali permanecendo até que a curva da rua lhe cortou a linha de vista. Eu ia mergulhado no meu solilóquio e as pedras da calçada calavam a sua frustração por esquivar-me às irregularidades do seu desenho. Não se lhes ouvia senão o som cavo do meu pisar. São pedras ansiosas de sentir quem as calca, retentoras da respiração das almas transeuntes do sobe desce daquela rua íngreme. Se soubermos impregnar nelas o sentimento dos nossos passos, serão um infindável cardápio das nossas angústias, ilusões e alegrias. Mas hoje apetecia-me escrever, não com tinta sobre papel, ou giz sobre ardósia, mas simplesmente riscar o ar com gatafunhos anódinos e indecifráveis, na ânsia de alguém as decifrar com a tábua da sua verdade. Quem sabe até onde o vento leva o eco do nosso pensamento?
Pouco li no Café Del Mar porque a mãe não abandonava o epicentro do meu espírito - era eu agora a preocupar-me com ela. De manhã, ela tinha subido as escadas para o piso superior, com a ligeireza que os seus 81 anos ainda permitiam, para me dizer que eu tinha de tomar um bom “café da manhã” porque andava magrinho. Achava que eu não estava a alimentar-me convenientemente. Eu, acabado de me tornar sexagenário, era ainda o menino a merecer cuidados. A mãe carregou sempre com as nossas vidas, e nem a idade mais avançada lhe dava descanso. É como uma flor que não murcha por mais que o ar seque, por mais que o vento a sacuda, teimando em manter-se viçosa sobre a terra áspera.
Regressei a casa, seguindo agora contra o declive da estrada. As mesmas pedras da calçada ali estavam, expectantes de escutar o reverso da minha caminhada, de arquivar mais um testemunho de transeunte vergado sobre o seu silêncio. E pensei então em quantos inscrevem na solidez quente e inerte das pedras das calçadas as histórias das suas vidas. Sem saberem que elas são as suas mais fiéis confidentes.
Soprava agora uma ligeira brisa proveniente dos lados da Lajinha. O Sol já estava a descair, talvez ansioso de sentir na água o refrigério do seu ardor voluptuoso.
Quando avistei a casa, a mãe já lá estava, no pequeno jardim da casa, como se não tivesse arredado pé do sítio onde a deixara duas horas antes. Foi o eco das pedras das calçadas lhe fez chegar os meus passos? Ou foi afagar-se com a frescura da tarde e aproveitou para aguardar pela minha chegada? Não sei responder. São coisas de mãe.
Ao aproximar-me, o que eu vi foi a imagem que para sempre guardarei da minha mãe aos seus 81 anos. Um raio de sol poente iluminava-lhe o rosto, em tons de luar de Agosto, fazendo-me lembrar o quadro de Renoir intitulado “Mulher com a Rosa”. Simultaneamente, uma leve brisa empurrava-lhe para trás os largos caracóis cinzentos. Nos lábios, o mesmo sorriso da mulher do quadro de Renoir. Suave e discreto, como o perfume que exalava do seu colo quando me embalava.
Tomar, 1 Julho de 2015
Adriano Miranda Lima
SE ISTO NÃO É POESIA PURA, DEVO TER PERDIDO O SENTIDO DAS COISAS...SÓ EM VERSO SE PODEM EVOCAR MEMÓRIAS DE CRISTAL, SÓ EM VERSO SE PODE, VERDADEIRAMENTE, CANTAR NOSSA MÃE COM TAMANHO SENTIMENTO...COMO É BELO O AMOR FILIAL!
ResponderEliminarBravo, Adriano, todas as mães deviam merecer uma memória assim...
Braça emocionado,
Zito
Testemunho emocionante de um homem/filho pois, não há idade limite para deixarmos de ser "os meninos" dos nossos Pais.
ResponderEliminarIsto continua a ser nos tais meninos da nossa geração que podiam perguntar o "porquê" aos progenitores para aprender mas nunca para contestar palavras consideradas de Evangelho. Criaram-nos, talvez sem muita riqueza material mas com um manancial de amor e de justeza, e o prémio que lhe pudemos dar é unicamente o dever de transmitir os mesmos valores, embora estes se encontrem desfasados com as teorias revolucionàrias do século.
Vendo a imagem pude mais facilmente rememorar a jovem santantonense, quase minha vizinha, que atravessou agruras duplicadas mas, mesmos assim, e talvez por isso, foi uma Mãe Exemplar.
R.I.P
Linda homenagem de um filho à sua mãe. que ela descanse em Paz
ResponderEliminarAgradeço-vos, Amigos, as vossas simpáticas palavras. Com as Memórias de Cristal, tenciono, Zito, deixar aflorar um pouco de poesia. Disse aos meus irmãos que agora ia transferir a memória da nossa mãe para a dimensão da poesia. Sempre que o tema o permita, claro, em maior ou menor grau. Há dias disse no ARROZCATUM que a poesia é o que nos resta para sarar ou aliviar as nossas feridas desta vida difícil que estamos a atravessar. As nossas próprias feridas e as da humanidade em geral.
ResponderEliminarVal, a minha mãe não é santantonense de nascença, é guineense, de Bissau. Mas foi circunstancialmente que lá nasceu. Aos cinco anos, transferiu-se para S. Antão, onde esteve até completar a instrução primária. Logo a seguir, foi para S. Vicente. Se memória da Guiné pouco conservou, a de S. Antão é sem dúvida importante porque foi onde conheceu as primeiras amiguinhas. Portanto, ela tem S. Antão na alma tal como eu. A mãe dela era de S. Antão.
Didi:
ResponderEliminarVem-me agora a odisseia da tua avozinha materna e o regresso definitivo para o solo que a viu nascer. Talvez por ter presente a raiz na ilha que adoro, situei a tua Mãezinha na terra materna, também, do Januàrio e, originalmente de uma parte da minha ascendência.
Mlle. Soulé foi o que é a maioria dos nossos irmãos que são gente com aventura no sangue. Âs vezes por opção, às vezes por razão.