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Capa da 3.ª edição, de 2000 |
Por via de ter recebido através de Arsénio de Pina cópias de repoduções fotográficas existentes no livro que indicou como sendo intitulado "Cabo Verde" do meu saudoso professor de Antropologia Cultural António Carreira na Universidade Nova de Lisboa (ali docente em parceria com Mesquitela Lima), decidi ir buscar ao baú dos textos cabo-verdianos de lavra pessoal este que tem a ver com as imagens oferecidas pelo Pina. A ficha completa do book é "Cabo Verde - Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata", Lisboa, Centro de Estudos da
Guiné Portuguesa, 1.ª edição, 1972; 2ª edição, Lisboa/Praia, Instituto CaboVerdiano do Livro, 1983; 3ª edição, Praia, Instituto
de Promoção Cultural, 2000. É precisamente esta 3.ª edição que possuo, oferecida pela minha amiga Encarnação Alves no dia em que parti da Praia, em 2002, de regresso a Portugal, depois de ter ali apresentado "Capitania". Curiosamente, das várias fotos remetidas pelo Arsénio (respigadas da 1.ª edição de 1972, suponho), só a de uma numerosa família de Assomada persiste nesta última. Enfim, mistérios editoriais... Aqui vai o texto e três das fotos para não atormentar mais os leitores, nestes tempos actuais já de si bem tormentosos...
O DESASTRE DA ASSISTÊNCIA
Texto escrito na coluna "Cabverd di meu" (na antiga versão do jornal "Liberal"), em 21 de Setembro de 2006
A queda de um paredão no Bairro do Brasil, na rampa de acesso à Achada de Santo António, Praia, em 9 deste mês, devido a fortes chuvadas, felizmente não teve consequências humanas. Porém, o caso fez-me remontar ao domingo de 20 de Fevereiro de 1949, há cerca de 57 anos, àquele que porventura terá sido o cataclismo que mais vidas ceifou no arquipélago de Cabo Verde (abstraindo as muitas e mortíferas fomes): o chamado Desastre da Assistência. 232 mortos (quiçá mais) e 47 feridos foi o balanço da catástrofe, quase todos indigentes que iam receber a sua ração diária de comida à Assistência local.
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Cadáveres retirados dos montões de pedras, aguardando sepultura |
O facto ocorreu cerca do meio-dia. Debaixo do telheiro dos Serviços Cabo-Verdianos de Assistência reuniam-se milhares de pobres que diariamente ali se deslocavam para receber alimento. Essa distribuição, que fora feita durante muito tempo no recinto do quartel do Exército, passara entretanto a ser concretizada no barracão pertença da Repartição de Obras Públicas do ministério das Colónias, próximo da Delegação Marítima. A sopa fora servida e estava-se na altura do resto da entrega alimentar, o que deu oportunidade a que muitas das cerca de 2500 almas que ali iam todos os dias já não estivessem nas imediações. Tudo aconteceu de repente. A um grande ruído sucedeu-se o desabamento e consequente soterramento das vítimas. A muralha contígua, de sete metros de altura por 30 de comprimento, incipientemente construída com calhaus rolados apanhados na costa da ilha, ruíra sobre o telheiro. Na cidade pequena, a notícia do dramático evento correu depressa e logo depois centenas de populares auxiliados por soldados e pessoal dos serviços públicos procuraram prestar os primeiros socorros, removendo pedras e terra que haviam tombado sobre o telheiro. Todos os serviços de saúde foram activados e no Hospital começaram os preparativos para a recolha dos feridos.
Demos a voz ao «Diário Popular» (Lisboa) do dia seguinte que, em prosa emotiva de primeira página, faz o relato aproximado da tragédia: «Começou então, através das ruas da cidade, o trágico cortejo dos mortos e dos feridos, cujos corpos iam sendo retirados dos escombros. Uma vaga de choros e lamentos invadia toda a cidade. O trabalho de remoção das terras prosseguia lentamente e o número das vítimas ia subindo de modo assustador, verificando-se que na sua maioria eram crianças. Pouco depois o hospital estava repleto de feridos, muitos dos quais em estado grave. Cerca de 40 jaziam ali, contorcendo-se com dores. Ao mesmo tempo, na casa mortuária, os cadáveres iam-se acumulando em número impressionante E à hora a que telefonamos [as notícias nesta altura eram em grande parte enviadas para a redacção dos jornais por telefone] encontram-se ali 232. Mas parece não ser tudo, pois as terras desabadas ainda não foram completamente removidas e é de crer que ainda se encontram ali mais vítimas. No hospital, o trabalho foi verdadeiramente extenuante e registaram-se actos de grande abnegação por parte de todos os que ali acorreram a auxiliar médicos e enfermeiros.»
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Cerimónia de enterramento de parte das vítimas |
O governador, comandante João de Figueiredo (no cargo entre 1943 e 49, influiu na criação do Rádio Clube de Cabo Verde, em 1944), tomou as necessárias providências para obter soro e pensos, dada a escassez de reservas daqueles produtos no hospital e decidiu que as despesas com os funerais das vítimas decorreriam por conta do Governo de Cabo Verde. De igual modo enviou um telegrama para o ministério das Colónias, no qual comunicava as circunstâncias em que se havia dado o desastre. Digamos que era o mínimo que se podia fazer num tal caso. No dia seguinte, abriam-se no cemitério da Praia as valas para a deposição dos corpos recolhidos nos escombros. O comércio fechou as suas portas nessa segunda-feira de luto intenso e os sinos da igreja paroquial dobraram continuamente a finados.
Recorramos ainda ao honesto discurso do DP, talvez não passado na censura ou mal observado por ela: «(…) telheiro onde os indigentes se reuniam. O número destes infelizes aumentara ultimamente, pois aos necessitados da cidade haviam-se juntado outros, vindos de diversos pontos da ilha, com a esperança de na capital obterem auxílio das entidades oficiais. E efectivamente, centenas de pobres e especialmente mulheres e crianças, ali recebiam diariamente a refeição.» Referimos a questão da provável distracção censória porque nos dias seguintes o assunto é esquecido neste jornal, o que indicia calamento forçado. Fome e mortes associadas eram coisas a resguardar…
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Algumas das vítimas a serem colocadas na vala comum |
Como sempre acontece, sobretudo para acalmar consciências, foi ordenado um inquérito ao desastre, cujo resultado desconhecemos. Mas inquéritos não ressuscitam vidas e as mais de duas centenas de mortos desse dia ficaram para sempre como marca negra na história de Cabo Verde. Digamos que estão para as ilhas como o terramoto de 1755 está para Portugal. Mas não caiamos no logro de dizer que a culpa da queda do muro foi do colonialismo, afirmação gratuita e inútil. Os muros caem quando são mal feitos, seja entre colonizados ou nas terras dos colonizadores. Por exemplo, ninguém em seu perfeito juízo poderá dizer que o paredão do bairro do Brasil caiu por culpa do colonialismo… Agora o que poderemos e deveremos questionar, como lição para futuro, isso sim, são as circunstâncias que reuniam diariamente para mendigar pão milhares de seres de uma ilha que vivera mais uma grande fome entre 1946 e 1948 (em 46 haviam perecido 30.000 naturais devido a esse flagelo). Se o Governo central e o local tivessem cumprido o seu dever de ajuda efectiva, por exemplo com criação de emprego (que não havia para aqueles párias da sociedade), o muro teria caído na mesma mas o número de mortos teria sido nulo ou bem menor. Na realidade, aquelas pobres pessoas não morreram apenas por causa do muro. Morreram também devido à miséria que desgraçadamente as fazia estar dia após dia junto a ele, estendendo a mão à caridade.
Nunca esqueci das làgrimas vertidas pelas pessoas em S.Vicente que iam tomando conhecimento do flagelo.
ResponderEliminarEste é daqueles episódios trágicos da vida dos povos que ficam para sempre estampados na memória. É certo que será gratuito apontar a culpa ao colonialismo. Até porque nem todas as administrações coloniais são iguais. Até porque uma administração colonial não tem de significar abandono e incompetência. Mas o que seria de esperar de um "Presidente de Conselho" que nunca visitou qualquer território nacional fora de Portugal continental?
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Como disse num comentário anterior não admira que alguns jovens nascidos 10 ou 20 anos antes tenham fugido revoltados contra Portugal. Neste assunto pagou o justo pelo pecador!
ResponderEliminarIsto também é uma etapa da nossa História que tal como tantos outros muito recentes deviam ser contadas as actuais gerações para que fica na "Memória" a trajectória percorrida, e que se faça uma reflexão para o futuro.
ResponderEliminarCresci a ouvir a minha mãe contar esta desgraça! E ela contava, também, escandalizada, que distribuíam, na mesma assistência, em épocas de seca intensa, rações de amendoim (mancarra), por estes frutos serem supernutritivos, e que algumas "senhoras bem" da cidade mandavam as suas criadas pedir rações dos referidos para servirem como aperitivo nos lanches de suas casas
ResponderEliminarObrigado pela participação, cara Helena. Apareça sempre.
ResponderEliminarBraça,
Djack