É o post 1888 e que melhor maneira de preenchê-lo que com memórias alusivas ao terminal da vida do Mindelo? É lá qu'Carnaval ta cabá, é lá que tude munde ta calá boca e ta pará de dzê asnera... Pois comecemos:
Eis o portão no qual apenas se passa uma vez deitado, com esferas armilares que parecem dizer que ninguém se safa de fazer o derradeiro passeio. E com a data sob a caveira e os ossos cruzados, para além da cruz que convoca os céus. A data, que na mufneza mindelense se transformou em dezote dôs ôte, é obviamente a da feitura do portão.
Era o tempo de El-Rei D. Luís, em final de reinado, primeiro e último desse nome, por assassinato do neto que viria a visitar a ilha pouco antes de também falecer de morte matada. E era igualmente o tempo destes 100 réis de prata...
Texto de 14.Outubro de 2005, publicado no antigo "Liberal"
Uma escultura esquecida de Maximiano Alves no cemitério do Mindelo
Joaquim Saial
Quando no início de Abril de 2002 fui ao cemitério do Mindelo para visitar as últimas moradas da família Vera-Cruz, dos músicos Francisco Xavier da Cruz "B. Léza" e Frank "Cavaquim" e do meu antigo professor Baltasar Lopes da Silva, não esperava encontrar, logo à entrada, a peça que de há muito procurava, supondo-a na cidade da Praia: a escultura de Maximiano Alves que podemos designar por A Dor, deitada sobre o túmulo de Ricardo José Serradas e de outros seus familiares.
A busca desta peça começou por volta de 1985 ou 86, quando estava a realizar a investigação necessária para a feitura de uma tese de mestrado na Universidade Nova de Lisboa sobre estatuária portuguesa dos anos 30 do século XX, depois publicada pela Bertrand Editora (Estatuária Portuguesa dos Anos 30, Lisboa, 1991). A única referência que conhecia dela está no livro Maximiano Alves, de A. Lopes de Oliveira (Editora Pax, Braga, 1972), que, na página 53 (Relação de algumas das suas obras), na rubrica monumentos, diz, sem fotografia: "Monumento da Família Serradas, na cidade da Praia (Cabo Verde) ". Nunca, em milhares de páginas de jornais e revistas que consultei e onde obtive dezenas de referências a trabalhos do escultor (e de Cabo Verde), tal memorial me apareceu. Por isso, sempre que a oportunidade me fazia cruzar com um praiense ou qualquer outro cabo-verdiano, a pergunta era sacramental: "Conhece o monumento da família Serradas, na Praia?". Durante anos, a resposta, sempre invariável, foi não. E cheguei a duvidar que ele existisse, até ao dia em que, acompanhado do meu amigo Virgílio Pina, antigo e prestigiado homem da marinha do Porto Grande e golfista impenitente, dei de chofre com ela... em São Vicente. Um breve olhar, logo me permitiu perceber que era peça de mão escultórica profissional e não de vulgar santeiro. Mesmo a configuração geral do conjunto, de imediato me remeteu para outra obra do autor existente no Cemitério do Alto de São João, Lisboa, erigido à memória de Machado dos Santos, herói da implantação da República em Portugal, assassinado em 1921. Bastou-me rodeá-lo pela direita, para encontrar a assinatura de Maximiano: a palavra Alves, antecedida do M que se funde com o A, para além da indicação do local de feitura, Lisboa, e a data de 1921, cerca de cinco anos posterior à data de falecimento de Ricardo Serradas (28.Março.1916). Ali estava pois, aquela a que o povo mindelense deu o nome de Nha Marquinha e que povoou os pesadelos de muitas crianças da cidade e da ilha vicentina...
Portugal tem exemplos significativos de figuras desta natureza, entre as quais se contam a de Teixeira Lopes (1866-1942), no jazigo da família Pinto da Fonseca, Cemitério de Agramonte, Porto, ou a outra do madeirense Francisco Franco (1885-1955), postada junto dos túmulos do Rei D. Carlos e do príncipe real D. Luís Filipe, no panteão da Igreja de São Vicente de Fora, Lisboa. Esta do Mindelo, portuguesa pela autoria, e cabo-verdiana pelo significado, não lhes fica atrás. Inscrevendo-se ainda na tradição naturalista do último quartel de oitocentos, o tratamento anatómico da figura é perfeito e Maximiano Alves consegue transmitir com eficácia o sentimento dramático do desgosto provocado pela perda de um ente querido, instalando a carga emocional no corpo jacente e convulso, em detrimento de possíveis expressões faciais, que aqui evita, escondendo o rosto da mulher entre os braços e a tampa do sepulcro. O mesmo não se pode dizer do memorial a Machado dos Santos, que resulta pesado, pela massa da arca mortuária e pelo aparato dos panejamentos que não favorecem a alegoria feminina – que ali tanto pode ser A Dor, como A República, em virtude do barrete frígio que lhe cobre a cabeça.
Findemos este artigo com pequena biografia de Maximiano Alves e o desejo sincero de que a excelente Dor do Mindelo – que apresenta alguns indícios de vandalismo ou erosão no braço esquerdo (ainda poucos, mas já preocupantes) – continue a ser preservada, sobretudo por se tratar de património comum de duas pátrias irmãs.
Maximiano Alves (Lisboa, 22.Agosto.1888 - 22.Janeiro.1954) – Filho de um notável gravador da Casa da Moeda, Maximiano Alves fez o Curso de Escultura na então Escola de Belas-Artes de Lisboa, concluído em 1911, onde foi aluno, entre outros, do escultor Simões de Almeida (tio) e dos pintores Luciano Freire e Ernesto Condeixa e condiscípulo de Francisco Franco. Em 20 de Junho de 1953 era inaugurada a sua última obra, o busto do dramaturgo D. João da Câmara, no Campo Grande, Lisboa, que depois passou para a praça do mesmo nome, junto ao Teatro Nacional de D. Maria II. Participou em várias exposições, entre as quais a Ibero-Americana de Sevilha (1929), a Internacional e Colonial de Paris (1931) e a do Mundo Português, Lisboa (1940). Enumeremos agora algumas das suas obras mais significativas: Monumento aos Mortos da Grande Guerra, Lisboa, Avenida da Liberdade, junto ao Parque Mayer (inaugurado em 21.Novembro.1931), em colaboração com o arquitecto Guilherme Rebelo de Andrade. Por via deste monumento, obteve o oficialato de Cristo; Monumento equestre ao governador Ferreira do Amaral, Macau (inaug. 24.Junho.1940), em colaboração com o arquitecto Carlos Rebelo de Andrade; Fontes, no sifão de Sacavém (inaug. 1940, demolido poucos anos após). Feitas em cimento armado e comemorativas do aumento do abastecimento de água à cidade de Lisboa, à época eram as duas maiores estátuas de Portugal, com sete metros de altura; na Assembleia da República, Diplomacia, na Sala das Sessões, e Justiça, à entrada do edifício. Em Cabo Verde, na cidade da Praia, encontra-se ainda o Monumento ao Dr. António Lereno, do qual falaremos numa próxima oportunidade.
Eis como se vê o 18-2.8 a partir de "Cima"
Um divertidísimo livro que dá boa perspectiva do 18-2.8 e das circunstâncias e cerimónias que o rodeiam...
Ainda uma foto já divulgada mas que fica sempre bem num post sobre o cemitério do Mindelo. Um amigo nosso, junto à campa de Francisco Xavier da Cruz, o enorme e para sempre inesquecível B.Léza.
18-2-8 (1888) se encontrava inicialmente a uns cem metros da casa que passou a ser a minha a partir de 1945. Com a mania de meter medo às crianças não vos conto quantos calafrios tive a desoras, quando fazia bem escuro. Hoje, nesse lugar como nos dos antigos cemitérios inglês e americano, estão belas residências e muita gente nova não faz ideia do que estava por baixa das belas residências.
ResponderEliminarCoisas de diasà !
Faltou-me perspicácia para olhar para o número dos posts, ahahahah. O Djack tem razão quando, nos concursos, nos manda ler com atenção. Pois é, o post 1888. Não há dúvida de que o Djack tem imaginação. Imaginação tão fértil quanto a agilidade do Djosa de nha Bia a fugir do sum'ter.
ResponderEliminarA campa de Nha Marquinha era uma legenda em CV. Eu menino quando ouvia histórias, à noite entanguia-me de medo
ResponderEliminarNa sequência do meu primeiro comentário, e depois de ler com vagar e atenção a peça descritiva da escultura de Maximiano Alves, cabe-me voltar para manifestar o meu apreço ao Joaquim pelo importante testemunho que nos dá e pela erudição com que o faz. Isto é um importante contributo para que os cabo-verdianos conheçam a qualidade da escultura mortuária jazente no cemitério de S. Vicente e também para que saibam valorizar a obra do escultor que foi Maximiano Alves. Pelo seu valor, justifica que seja divulgada e dada a conhecer às actuais gerações de estudantes e aos cidadãos em geral. Como diz o Joaquim, esse monumento não é produto de um vulgar “santeiro”, é uma obra de arte de um qualificado escultor. Tudo isto é história, e tudo isto deve ser cultivado se quisermos engrandecer o nosso património. Razão existe para que não se deixe degradar este monumento, devendo merecer os trabalhos de conservação que forem necessários. É que, tratando-se de um património, a sua manutenção deixa de ser encargo exclusivo da família Serradas, para ser responsabilidade da cidade.
ResponderEliminarObrigado, Joaquim, na parte que me toca.
A minha passagem pelos blog's amigos não têm por fim fazer aumentar o número de visitantes mas também pelo beneficio que tiro na minha instrução e no conhecimento de muita coisa desconhecida os esquecida.
ResponderEliminarVamos ao caso presente da célebre estátua no jazigo da Família Serradas situada num lugar estratégico do hoje ùnico cemitério do Mindelo. Qualquer menino que por ali passou uma vez soube que era "nha Marquinha" e que a obra foi encomendada em Lisboa. Nunca esqueci a impressão que me ficou pela dor de uma mulher pela perda do marido.
Confesso que não me veio à ideia de aproximar e ver de quem era o autor e, se isso sucedesse, a curiosidade de procurar o seu nome e as suas obras. Digamos que seria de todo impossível ter informações.
Por isso, admiro mais ainda o amigo Saial pelo seu amor à nossa ilha e pela sua disponibilidade em fazer o que nenhum filho da terra fez (ou provou saber). Também tenho a confessar que desconhecia a existência quanto mais a celebridade do escultor Maximiano Alves
Obrigado Senhor Prof. Joaquim Saial por tudo isso e ainda pela sua amizade. Outro obrigado ao não menos curioso, também Amigo, Adriano sem o qual não voltaria para este segundo comentário
Meus caros, obrigado pela vossa simpatia. Trabalhar sobre Cabo Verde já faz parte da minha rotina de escrita, tal como acontece sobre a arte pública ou Vila Viçosa, as três áreas em que sobretudo me movo "militantemente". E continuarei, espero, enquanto houver genica para isso.
ResponderEliminarBraça com amizade,
Djack
Embora tardiamente, junto-me aos comentadores que me precederam para felicitar o autor por tão excelente trabalho!
ResponderEliminarO lado sério da questão foi tratado com primor de conhecedor e de quem sabe. Mas igualmente, o lado humorístico está fantástico! Ahahah! Esta do célebre "Djosa de nha Bia" a fugir do cemitério, está de...morte!!
Abraços
O Djosa de nha Bia está sempre nos nossos pensamentos. Nunca ninguém o viu em carne mas apenas em osso (no dia em que o esqueleto fugiu do 18-2.8). É bom rapaz. Pena é que se meta tanto no grogue...
ResponderEliminarBraça djosal,
Djack