segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

[1966] "Estudos sobre Cabo Verde", de José Maria de Sousa Monteiro, public. em "A Epoca", n.º 12, 1848 (1)

José Maria de Sousa Monteiro
O texto é longuíssimo, o que não se coaduna com a filosofia bloguista, de ideário preferencialmente curto. Mas tem valor documental e por isso aqui há-de ir sendo posto, paulatinamente, pedaço a pedaço. Ainda por cima, é extremamente trabalhoso de reproduzir. Saca-se de um pdf, lança-se no bloco de notas para normalizar e depois ainda tem de se emendar palavras que saem mal reproduzidas. Trabói, trabói e más trabói. Mas muito compensador... como verão. A etiqueta será "Estudos sobre Cabo Verde", pelo que à medida que os excertos forem sendo reproduzidos será mais fácil ir à caça dos anteriores.

Quanto ao autor, José Maria de Sousa Monteiro, as informações divergem. No site Geneall, é dado como nascido na Praia, em 20.08.1846 e falecido em Lisboa a 12.10.1909 (ver AQUI). Já na Politpedia (ver AQUI) as datas de nascimento e morte são 1810 e 1881. Ali se diz também que o homem era advogado, jornalista e maçom. E que foi comerciante no Rio de Janeiro e secretário-geral do Governo de Cabo Verde.


ESTUDOS SOBRE CABO VERDE
por José Maria de Sousa Monteiro

Declaração. = Noticia do paiz. = Os pretos, canarins e mestiços. = Abastamento. = O cuscús e a batanga. = Modo de vestir. = Festas e casamentos. = Feiticeira tá come minino. Os enterros, e o gongó. = Os flagellantes, e o nojo. = O jague. = Medicos pela graça de Deus. = Modo de matar as bexigas com o doente. = Notas.

Cedendo aos desejos de alguns amigos vou narrar com singeleza o que vi nas Ilhas de Cabo Verde em perto de sete annos de residencia que alli fiz: os costumes deste povo, cuja existencia parece que apenas data de hontem pelo seu atraso, ao mesmo tempo que parece anti-diluviana pelas ruinas que alastram o chão em que habita; o seu dialecto, as leis porque se rege, a historia de seu clero e estabelecimentos ecclesiasticos, a sua instrucção, agricultura, industria, commercio, população, e rendimentos publicos tudo achará logar nos meus estudos; que outro nome não merece a serie de artigos que a tal objecto pretendo dedicar.

Não se julgue que presumo tanto de mim, e dos conhecimentos especiaes que pude adquirir pela posição quc occupei naquella Provincia, que me apresente para corrigir o que antes de mim disseram outras pessoas, principalmente nestes ultimos annos. Eu nao escrevo uma historia do Archipelago de Cabo Verde, apenas dou conta de minhas impressões; procurei ser exacto, não sahir nunca da verdade, mas não entendo refutar escriptos, e ainda menos desmentir alguem: escrevo sobre o que vi, e nada mais. 

Isto dito, entro em materia.

O aspecto exterior destas Ilhas é, fóra do tempo das agoas, o da esterilidade personalisada - montes escalvados, encostas d'um vermelho torrado, e praias d'uma aridez desoladora, já negras corno simonte, já brancas como a cal virgem. Porém, durante as aguas é mui outro: a vegetação luxuosa destas encostas e destes montes, ainda ha poucos mezes tão melancolicos por sua nudez, denuncia uma feracidade que as mais das vezes não é senão uma outra illusão.

Quem vir estas Ilhas pelo seu lado externo desde Dezembro até Julho ha-de suppôr que a fome. estabeleceu alli o seu imperio; quem, pelo contrario as vir de Agosto até Novembro ha-de presumir que ha uma superabundancia tal de riquezas agrícolas. que não é possivel que jamais se possa alli sentir, não direi ja fome, mas nem ao menos carestia.

O interior, porém, não corresponde á idéa que o seu exterior fez nascer. O viajante, que no tempo das agoas, costear a Ilha do Sal, e Boa Vista, ou S. Vicente, ou a do Maio, ha-de com razão presumir que os habitantes destas Ilhas nadam na abundancia, ao passo que elles não tem o restricto necessario, e carecem - as duas primeiras, dos auxílios da de S. Nicolau, a terceira dos da de Santo Antão, e a quarta da sua visinha de Santiago: mas se esse, ou qualquer outro, costear no tempo secco as Ilhas de Santiago, Fogo, Brava, Santo Antão, ou S. Nicolau ha-de suppôr que a fome devasta os seus habitantes, ao proprio tempo que elles tem não só o necessario, mas ainda o superfluo, que vendem para as outras Ilhas e para fora da Provincia.

Assegurai a estas Ilhas que o seu chão será fertiIisado pelas chuvas das trovoadas da Costa, e nada vos pedirão seus habitadores; mas algumas vezes acontece que as chuvas faltam em todas as Ilhas e então ha uma fome geral no archipelago, o que succede em periodos quasi regulares de 16 a 20 annos; outras vozes faltam já n'uma, ja n'outras Ilhas, e da-se então a fome parcial, em maior ou menor escala: isto tem logar quasi todos os annos. Tambem acontece de vez em quando, que uma superabundancia de agoas produz fome , como a falta dellas, pela destruição da sementeira.

Estas Ilhas foram povoadas pelas familias dos primeiros portuguezes que alli se estabeleceram, por casaes de pretos que ellas mandaram vir da Costa visinha, e por degradados que se estabeleceram na terra, e alli casaram: o cruzamento das raças deu, com o andar dos tempos, nascimento aos tres typos que hoje alli se encontram, deixando de parte os mestiços filhos de branco e preto até á segunda ou terceira geração Alguns destes mestiços, porém, principalmente na Ilha Brava tem côr rosada, e feições agradaveis como  os brancos, e por taes pretendem passar; mas em geral tem pannos pelo corpo, que repugnam á vista. (continua)


3 comentários:

  1. Fica-se com àgua na boca. Esperemos pela continuação.

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  2. Relato interessante e que espicaça a curiosidade pelo que vai seguir-se.
    Não percebo bem é esta passagem: " praias d'uma aridez desoladora, já negras corno simonte, já brancas como a cal virgem". As praias, pela sua própria natureza, são mesmo assim como ele refere. Não são propriamente jardins floridos.

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    1. Digamos que as praias das ilhas alternam entre praias de areia escura (simonte, cor da folha de tabaco) e as de cal virgem, mais brancas, como as da Boavista. O que o Sousa Monteiro queria dizer era isso: que as cores das praias de Cabo Verde variavam (e ainda variam) muito, não eram de colorido uniforme.

      Braça a tirar a areia de cima, este maldito vento das ilhas, grrr!!!
      Djack

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